Narra a mitologia romana (e a Wikipédia) que na região que hoje é a Itália, havia um homem que tinha trazido riqueza e prosperidade a partir da agricultura e do comércio. Janus era um homem de fisionomia curiosa, pois em sua única cabeça habitavam duas faces, cada uma olhando para lados opostos. Não tardou muito e os romanos logo o alçaram a categoria de deus, impondo a ele diversas manifestações, sendo a mais conhecida a sua relação com as mudanças e transições.
Por ser comumente reproduzido como um homem cuja cabeça tem duas faces em direções opostas, seu poder serviu de alegoria para diversas representações, sendo uma de interesse aqui: a questão do resguardo, enquanto sentinela, de alguma porta ou passagem, em especial a que liga o passado ao futuro e vice-versa.
Em 2020-2021, Janus ainda mantém seu poder. Em meio à pandemia de COVID19, que ceifou milhões de vida ao redor do mundo, Janus foi implicitamente resgatado para lembrarmo-nos das diversas pandemias e epidemias que ocorreram na história da humanidade. Lives, workshops, dossiês de revistas diversas, artigos acadêmicos especializados, colóquios e simpósios foram os espaços mais comuns para rememorar o poder de tal deus.
Foi nesse ínterim que o Fotógrafo e Historiador Roger Silva publicou Banzo, livro de auto fotografias e textos autorais e de convidados, para relatar as agruras da pandemia pelas lentes de homem negro, citadino e periférico. A proposta do livro foi assim explicada pelo autor:
O termo banzo era usado pelos africanos escravizados, na época da escravidão no Brasil, quando eles queriam dizer que estavam com saudades de sua terra natal, que estavam muito tristes, diziam estar banzos. Por outro lado, banzo também era uma forma de resistência, se entregar a tristeza profunda era não aceitar aquela sobrevida escrava. É importante salientar que houve diversas formas de resistência por parte dos escravizados: fugas para os quilombos, desobediência aos ditos senhores, lutas, insurreições e etc… Banzo era mais uma forma de lutar pela liberdade (p. 7-8).
O livro, como foi escrito acima, é recheado de textos que invocam esse passado histórico brasileiro: o tráfico de seres humanos da África; a escravidão brasileira até o século XIX; a passagem da escravidão institucionalizada à marginalização negra dentro do mundo do trabalho “livre”; histórias pessoais de infância e juventude do autor; e um ótimo jogo de significados a partir das últimas palavras de George Floyd: “I can’t breath”, expondo, assim, o silenciamento da história dos povos africanos e subalternizados do mundo.
Contudo, onde entra Janus nesse ensaio de Roger Silva e no conceito de Banzo?
Dentro do conjunto de suas 24 (25, se contarmos a capa) fotografias, chamam a atenção 3 imagens por mostrar uma máscara com dupla face (fotos 13, 14 e 15) e 1 fotografia que mostra uma máscara de tripla face (foto 21).
A dupla face, à primeira vista, nos remete ao Janus romano e sua visão entre passado e futuro. Porém, em que momento o presente estaria representado? Sabe-se que, tanto na história como na filosofia, o presente não existe por conta de sua efemeridade (todo presente é um futuro de um passado e um passado do futuro que se tornou presente, como bem alertaram Marc Bloch e G. Hegel). Todavia, para Roger Silva, o banzo é um presente que nunca se apaga porque é a rememoração de um passado que custa a ser ultrapassado – e mesmo quando a ultrapassagem acontece materialmente, volta a impor o tormento no plano do simbólico. Suas máscaras de dupla-face invocam essa retroalimentação e, estruturalmente, negam a separação: a relação racismo ↔ escravidão ↔ tráfico de africanos ↔ formação da sociedade brasileira ↔ racismo contemporâneo ↔ ser negro no Brasil “democrático”.
Porém, Roger Silva não é um cientista que analisa a questão preta-negra pelas lentes de um dissecador de cadáver (para utilizarmos da expressão provocadora de Clóvis Moura). Roger Silva, a partir de Banzo e de seu banzo, denuncia o presente, elucida um passado e projeta um necessário futuro. Nesse sentido, ao propor esse futuro emancipatório, o fotógrafo nos mostra um momento de ruptura: a máscara de três faces.
Visível na página 42 (foto 21), o artista se mostra frontalmente, ornado com uma máscara em que o lado de sua orelha esquerda não nos é possível enxergar, tal qual a face de seu lado direito. No entanto, sua face “frontal”, por assim dizer, está sorrindo de boca fechada. Um sorriso sinistro, que nos lembra de todos os textos publicados na coletânea Banzo: da permanência no presente de um passado ainda reavivado e reabilitado pela classe social dominante ainda muito interessada na conservação da atual situação da sociedade brasileira.
Mas, se todo o ensaio tem um tom crítico do uso de Banzo e banzo enquanto denúncia, qual a razão do uso de uma máscara cujo sorriso macabro poderia nos remeter à exatamente os principais financiadores, propagadores e mantenedores do contexto e construção histórica criticada por Roger Silva?
Acredita-se que a chave interpretativa de Pathosfoerlm ajuda a problematizar (e não colocar um ponto final) a macabra máscara de tripla face de Roger Silva.
Proposta por Aby Warburg e resgatada por Carlo Ginzburg, a leitura do Pathosfoerlm invoca a possibilidade de analisarmos toda a obra de Roger Silva e da categoria de banzo dentro das emoções visíveis de suas máscaras e do choque das emoções invisíveis daquele que as está usando. Em todo seu ensaio, as máscaras selecionadas exprimiam expressões de lamento, dor, sofrimento. Seus poderes emocionais são constantemente potencializados pelo uso do corpo e das mãos, em demonstrações que também nos lembram súplicas, falta de ar, agonia e até mesmo desespero.
Volta-se para a leitura pela Pathosfoerlm e a utilizemos para desmanchar a armadilha da análise Fisiognomônica (outro conceito, dessa vez de E. Gombrich, e também resgatado por Carlo Ginzburg, cuja significação é: de tentarmos encontrar a definição de uma obra de arte a partir da leitura direta de seu contexto histórico ou traços “óbvios” em demasia): enquanto a máscara de tripla face sorri sinistramente, seu modelo, o fotógrafo negro Roger Silva, não necessariamente estaria igualmente sorrindo.
Tal situação geraria até mesmo um desconforto. Afinal, se a emoção velada fosse igual à emoção exposta, não haveria, portanto, a necessidade de termos tantas personas – além de tornar a análise da obra supérflua, uma vez que a forma se tornaria igual ao conteúdo, acabando, assim, com a contradição e a dinâmica, como bem salientou Marx: “E toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente”. José Saramago, em seu romance, A caverna, exprimiu a mesma concepção por outras letras, que nos remete às fotografias de Roger Silva:
Saberíamos muito mais das complexidades da vida se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições em vez de perdermos tanto tempo com as identidades e as coerências, que essas têm obrigação de explicar-se por si mesmas.
Essa máscara sorridente, e tripla, poderia ser a ruptura de Roger Silva e de seu Banzo, pois invocaria também a posição tripla da dialética hegeliana na fórmula da aufheben (suprassunção): sua aceitação, e igualmente sua superação, mas ainda conservando tudo aquilo que Banzo carrega e continuará carregando. Enquanto chora seu banzo por dentro, Roger Silva sorri por fora, aceitando e escondendo o banzo na formação de ser, mas dando a entender que o macabro de seu sorriso não é a da conservação de sua situação atual, mas a superação a um futuro, como se estivesse alertando aos verdadeiros conservadores que seu tempo histórico está em vias de findar-se.
Mas se o Banzo de Roger Silva representa a superação da atual situação, quantas faces teria o Janus? Três ou duas?
Acredita-se que Roger Silva luta e vislumbra uma sociedade completamente diferente das dos dias atuais, e, por isso, seu Janus tem que ser igualmente suprassumido, novo, revolucionário.
Um Janus negro de uma face, tal qual aparece em várias páginas de seu livro.
Se os romanos tinham versões diferentes do mesmo deus (e até mesmo Janus carregava em seu mito mais de uma representação), Roger Silva põe em simultânea implosão e explosão seus dois Janus: o Janus de dupla face, ambas com suas emoções de sofrimento, demonstrativo do presente que olha a todo o instante para o passado, absorvendo-o, mas sem perspectiva ou chance de superação; e o Janus de tripla face, em que a do meio é sinistramente sorridente, irônica, falsa, dissimulada, mas também arteira, esperta, pronta para o ponto de ruptura. Máscara dialética e, por isso mesmo, transgressora, macabra e sinistra.
Tudo isso não invocaria, é óbvio, nenhum reinado de pura felicidade utópica. A maioria das fotos de Roger Silva trajando sua máscara de uma face demonstra exatamente o que ele tem a oferecer enquanto ser humano (na acepção radical de Frantz Fannon): tristezas, perplexidade, dores, sorrisos, tranquilidades, alegrias, etc.
Se em parágrafos anteriores, pus a oferecer ao leitor uma leitura de que todas as máscaras exprimem sentimentos negativos, é-se somente com uma segunda leitura, embebida dessa vontade de ruptura e transformação, que nos faz reler todas as máscaras e acabar por vê-las com outras expressões. Esse tipo de poder artístico, de fazer o leitor olhar em uma máscara mais de um sentimento e imitá-las em cada vista que damos1 , é a marca registrada de Roger Silva e de seu Janus negro, de uma face, mas de várias emoções.
Nota
1 Essa ação lembra o sentimento da leitura da poesia “As litanias de Satã” (Les litanies de Satan), de Charles Baudelaire, onde o leitor, não importando o quanto seja fervoroso religiosamente, é pego fazendo uma oração a satã. Não seria essa, portanto, a função da obra de arte? Tirar-nos do conforto pseudocientífico da distância e nos puxar para dentro de seus espaços?
Resenhista
Alex Rolim Machado – Professor da rede pública do Estado de Alagoas. Doutor em História.
Referências desta Resenha
SILVA, Roger. Banzo. Prefácio: Marcela Bonfim. Apresentação: Nego Júnior & Wilson Smith. Escritores convidados: Felipe Santos & Pedro Paulo. Revisão textual: Janny Araújo, 2021. Resenha de: MACHADO, Alex Rolim. O Janus negro: Roger Silva, Banzo e a dor de atravessar a História. Crítica Histórica. Maceió, v. 13, n. 25, p.265-269, jul. 2022. Acessar publicação original [DR}
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