O ato de falar e de escrever é marcado por relações de poder e atravessado por modelos epistemológicos que tentam suprimir línguas e formas de existir (Conceição EVARISTO, 2021). Questiona-se: quem ousa falar tem o poder de se fazer ouvir? É da complexidade que envolve essa pergunta que sugerimos a leitura de Gloria Anzaldúa. A autora, ao produzir teorias sobre a sua existência nas fronteiras, dá cores e tons a sua linguagem insubmissa que desafiou os olhos do homem branco. A tradução do livro de Gloria Anzaldúa, A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios, foi lançada no Brasil em 2021, pela editora A Bolha.
O livro reúne seis ensaios e um poema produzidos em momentos distintos da sua carreira. Neles se encontra uma amálgama de discussões sobre as questões de mestiçagem, fronteira, raça, gênero, sexualidade, classe, saúde, espiritualidade, escrita e linguagem, que são questões centrais em sua obra. Cláudia de Lima Costa e Eliana Ávila (2021), tradutoras da obra de Gloria Anzaldúa no Brasil, assinam o prefácio do livro e destacam a importância da autora para o surgimento da discussão sobre diferenças – sexual, étnica e pós-colonial – no bojo feminismo norte-americano. Já o posfácio é um ensaio de AnaLouise Keanting (2021), professora na Texas Women’s University, em estudos de mulheres, e é a atual depositária do Gloria Anzaldúa Literary Trust. Nesse texto encontramos uma importante reflexão sobre as teorias mais recentes de Gloria Anzaldúa, pós-Borderlands/La Frontera, tornando a leitura de A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios ainda mais instigante.
Gloria Evangelina Anzaldúa foi uma escritora feminista, professora, artista e ativista queer e chicana pioneira. Nasceu em 26 de setembro de 1942, no vale do Rio Grande, na fronteira do Texas com o México e faleceu em 15 de maio de 2004, em Santa Cruz, Califórnia, em decorrência de complicações de saúde provocadas pela diabetes. A versatilidade de sua produção teórica e cultural está presente no vasto acervo de textos, constituído por ensaios, artigos, cartas, anotações, diários, poesias, autobiografias, livros infantis e ontologias.
Em um ensaio epistolar publicado originalmente em 1981, Anzaldúa define a escrita como um dispositivo de resistência e de sobrevivência. A autora aponta os medos, os desafios e o poder que a escrita apresenta porque, em suas palavras, “é na escrita mesma que nossa sobrevivência se encontra, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida” (Gloria ANZALDÚA, 2021, p. 58). A carta foi o gênero literário mais apreciado pela autora por gerar o grau de intimidade desejado com suas leitoras. Anzaldúa em “Carta às mulheres escritoras do terceiro mundo” desafia os cânones educacionais, literários, culturais e políticos. Tensiona as lógicas de poder ao evocar a polifonia das línguas, dando passagem e legitimidade às falas “inaudíveis” das mulheres silenciadas que vivem “entre-fronteiras”. Para a autora, o silêncio é “ensurdecedor” e o compreendeu bem na companhia de feridas, dores e imagens que a assombraram desde o seu nascimento. A herança indígena, mexicana, encarnada na cor da pele, produziu reflexos na forma como era vista. Afirma a autora: “aos olhos dos outros eu me via refletida como estranha, anormal, queer. Eu não via outros reflexos” (ANZALDÚA, 2021, p. 67). Esse é o tom inicial da auto-história “La Prieta”, na qual a autora contesta os convencionais papéis de gênero ao desprezar os caminhos e comportamentos de uma boa chicanita que contrastava com as imagens de machona índia ladina, de uma tomboy que usava botas e que não temia as cobras ou facas, acionadas por sua mãe. Prieta é uma sobrevivente do sistema heteropatriarcal e colonial que maculou o seu corpo na sua fase adulta, em virtude de uma histerectomia, procedimento no qual o “médico brincou com a faca. La Chigada foi devassada, estuprada com a varinha do homem branco” (ANZALDÚA, 2021, p. 74). É possível considerarmos a imagem do homem branco com a sua varinha como elemento simbólico da força e de dominação diante da uma posição passiva que ela tanto rejeitara em sua vida. As marcas das violências, de mais uma ferida aberta, açoitam suas lembranças. Em “La vulva es una herida abierta/A vulva é uma ferida aberta”, Anzaldúa expõe suas feridas mais íntimas e profundas.
A autora reflete os múltiplos efeitos das violências marcados em outros corpos e chama a atenção para os processos de alienação que distanciavam e rotulavam as pessoas que poderiam ser espíritos irmanados por meio da separação por cor, classe, gênero. Ao ampliar uma crítica sobre rótulos e questões identitárias, a autora aponta o impacto dessas dimensões no processo de nomeação, de escrita e de leitura. Por exemplo, escritoras e escritores da cultura dominante não especificam a sua identidade, isto é, um escritor branco não carrega um adjetivo atenuante se comparado a uma escritora lésbica ou chicana lésbica. Por outro lado, os críticos da cultura dominante, ao acrescentarem adjetivos ao seu nome, estão olhando para a escrita e invertendo a posição. Dessa forma, tem-se a ideia de uma escrita chicana ao invés de se ter uma escritora chicana. Haveria, dessa forma, a marginalização ao reforçar esse rótulo. Já as razões advogadas pela autora em relação à utilização de termos como escritora-teórica chicana tejana, de classe operária e poeta feminista dyke1 dizem sobre o esforço para evitar a omissão dessas posições identitárias. Por isso, “rotular a mim mesma é para que a chicana e lésbica e todas as outras pessoas em mim não sejam apagadas, omitidas ou assassinadas” (ANZALDÚA, 2021, p. 129). Por outro lado, em “Esqueerzita(r) demais a escritora – Loca, Escritora y Chicana”, Anzaldúa afirma que o termo lésbica não nomeia nada em sua terra, ao contrário, é uma palavra “branca” que nomeia mulheres de classe e de uma cultura dominante. Ao exigir o direito de poder escolher com quais termos se nomear, a autora remete às palavras que a situam às suas experiências na cultura chicana e mexicana do sul do Texas. Loquita, jotita, marimacha, pajuelona, lambiscona, culera, náhutl patlache são alguns dos termos que produziram “significados viscerais” na sua experiência (ANZALDÚA, 2021, p. 126).
Afastando-se de quaisquer etiquetas que a encarceraram em uma identidade fixa, ela apostava na formação de alianças entre movimentos sociais com o intuito de promover uma mudança social. A autora aprofunda essa reflexão a partir do conceito de “El Mundo Zurdo”, que sinaliza a conjunção coletiva de espíritos irmanados, mulheres do terceiro mundo, lésbicas, feministas; e homens feministas orientados de todas as cores. Em “Ponte, ponte levadiça, banco de areia ou ilha. Lésbicas de cor haciendo alianzas”, Anzaldúa reforça a importância da criação de várias hermanindades. A escrita e a leitura contribuem para esse processo e a articulação dessas dimensões situa e difunde um conhecimento contra-hegemônico. O aprofundamento desses argumentos estão em “Sobre o Processo de Escrever. Borderlands/ Frontera”. De acordo com Anzaldúa, para compreender o processo de escrita, é preciso entender a profundidade de estar posicionada, situada, em determinados contextos, isto é, “saber onde estamos pisando e qual tipo de posição estamos tomando” (ANZALDÚA, 2021, p. 163). Assim sendo, é possível encontrar-se situada simultaneamente em múltiplos mundos? Para a nova mestiza é viável, uma vez que ela é uma nepantlera. De acordo com AnaLouise Keating (2021), nepantleras são pessoas liminares, movendo-se dentro e em meio a múltiplos mundos conflituosos. Desse modo, em à “Nova Nação Mestiza. Um movimento Multicultural” tem-se, mais uma vez, as discussões identitárias em jogo, em que a identidade mestiza está em constante mudança, conforme o atravessamento nos “diversos mundos – universitário, a comunidade de origem, comunidades do trabalho, do ativismo – pois não me basta dizer que sou chicana” (ANZALDÚA, 2021, p. 195). Nessa direção, o multiculturalismo refere-se à inclusão de narrativas da diferença.
Os diferentes ensaios e o poema que compõem A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios, apesar de terem sido produzidos em momentos distintos, estão interligados por fio teórico que articula as discussões sobre mestiçagem, fronteira, raça, gênero, sexualidade, classe, saúde, espiritualidade, escrita e linguagem. Em cada ensaio, experiências autobiográficas são reveladas, proporcionando à/ao leitora/or um encontro com a potência da sua escrita insubmissa, abrindo espaço para outras línguas ecoarem. Por tudo isso consideramos essa obra como importante contribuição para os diversos campos de estudos: feminismo queer, teoria cultural, gênero, classe, espiritualidade, linguagem e para ampliação da geopolítica do conhecimento. Diante das raras ou pouquíssimas traduções da obra de Gloria Anzaldúa para o português, esse livro é extremamente relevante por ampliar o acesso do público brasileiro a essa potente escritora chicana queer.
Nota
1 Glória Anzaldúa, ao discutir sobre rótulos e debates queer, esboça uma crítica em relação às categorias identitárias e argumenta que a palavra lésbica não a situa na cultura chicana, mexicana do sul do Texas. Ao escolher uma categoria para nomear-se na língua inglesa, escolhe dyke ou queer.
Referências
ANZALDÚA, Gloria. A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios Trad. de Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021.
EVARISTO, Conceição. Conferência Magna “Clamar no deserto: entre o poder falar e o poder de se fazer ouvir” Seminário Internacional Fazendo Gênero 12, 26/07/2021, Florianópolis, SC, Brasil, UFSC. 2021. Disponível em Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WimOFw-5gRU&t=30s Acesso em 20/06/2022.
» https://www.youtube.com/watch?v=WimOFw-5gRU&t=30s
COSTA, Cláudia de Lima; ÁVILA, Eliana. “Glória Anzaldúa, a Consciência Mestiça e o Feminismo da Diferença”. In: ANZALDÚA, Gloria. A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios Trad. de Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021. p. 9-32.
KEATING, AnaLouise. “De Fronteiras e Novas Mestizas a Neplantlas e Nepantleras: Teorias de Anzaldúa sobre mudança social”. In: ANZALDÚA, Gloria. A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios Trad. de Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021. p. 211-236.
Resenhistas
Pâmela Laurentina Sampaio Reis – Doutoranda em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestra em Antropologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da UFSC. E-mails: pamela.laurentina@posgrad.ufsc.br; pamelalaurentiasr@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6780-6381
Miriam Pillar Grossi – Doutora em Anthropologie Sociale et Culturelle – Université de Paris V (1988), pós-doutorado no Laboratoire d’Anthropologie Sociale do Collège de France (1996/1998), na University of California-Berkeley e EHESS (2009/2010). Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mails: miriam.grossi@ufsc.br ; miriamgrossi@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-4399-6544
Referências desta Resenha
ANZALDÚA, Gloria. A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios. Trad. Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021. Resenha de: REIS, Pâmela Laurentina Sampaio; GROSSI, Miriam Pillar. A escrita insubmissa de Gloria Anzaldúa. Revista dos Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e89681, 2022. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e85759, 2022. Acessar publicação original [DR]
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