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A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero | Oyèrónke Oyewùmí

Oyèrónke Oyewùmí | Foto: Stine Boe/Por dentro da África

A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero, fruto da tese de doutorado da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí, foi lançada originalmente em 1997, nos Estados Unidos, e teve sua primeira edição brasileira publicada no ano de 2021, pela editora Bazar do Tempo.

É logo no prefácio que Oyěwùmí antecipa à leitora aquilo que sua obra não é, a saber, um estudo sobre o que, no pensamento ocidental, se convencionou chamar a questão da mulher. Nos moldes daquilo que vem sendo proposto pelas abordagens do feminismo negro e decolonial, a autora problematiza as teorias feministas hegemônicas que preconizam a ideia de que as categorias de gênero seriam universais, totalizantes e atemporais. Ela argumenta que, no caso dos Oyó-iorubá, sociedade investigada em sua pesquisa, tais categorias não são autóctones, ou seja, não existiam antes do contato com o Ocidente, iniciado através da colonização inglesa na Iorubalândia.

Em um esforço arqueológico de retomada das bases epistemológicas iorubá e africana, Oyèrónkẹ Oyěwùmí tem como objetivo desvendar o processo por meio do qual as concepções ocidentais de gênero se tornaram relevantes para a análise da sociedade iorubá. Tal objetivo permite que se coloque sob apreciação uma série de categorias, conceitos e teorias cujo caráter colonial e generificado contribui para desvelar o próprio conhecimento acadêmico como um campo de produção discursiva de gênero. Em conformidade com o que sugere epistemologicamente a obra de Michel Foucault, a socióloga assume o compromisso de desfazer a noção de que os saberes contemporâneos – mais propriamente aqueles relacionados ao gênero – são verdades objetivas e universais. Diante deste objetivo, o método arqueológico se torna fundamental para o questionamento de certos enunciados que, sobretudo no meio acadêmico, são com frequência reproduzidos como se fossem descobertas e não invenções. Nesta direção, Oyěwùmí salienta o paradoxo dos estudos de gênero: o fato de que, para lidar com as categorias de gênero, conhecê-las, analisá-las e, até mesmo, superá-las, é preciso, antes de tudo, torná-las visíveis, criá-las e inscrevê-las como categorias relevantes na constituição de determinada sociedade. Em suas palavras, “[…] tornar o gênero visível também é um processo de criação do gênero.” (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 23).

O primeiro capítulo, “Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos”, enfatiza a centralidade que a biologia e o sentido visual possuem para a percepção de mundo nas sociedades ocidentais. Na cosmovisão do Ocidente, o corpo evoca um olhar de diferença em que “o mais historicamente constante é o olhar generificado” (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 28). A visão, enquanto sentido privilegiado para a apreensão da realidade, promove a separação entre sujeito e objeto, denotando uma relação de dominação entre aquele que olha e aquele que é objeto do olhar (Jonatas FERREIRA; Cynthia HAMLIN, 2010). A ênfase no visual estaria, portanto, ligada à produção de uma lógica masculina e patriarcal, em que o distanciamento promovido pela visão seria subjacente à falta de compromisso entre o “eu” e o “Outro” investigado.

Nem mesmo o feminismo, a partir do foco na diferença sexual e na ideia de que o gênero é uma categoria relevante em qualquer contexto social, teria conseguido se afastar da ênfase na visão. Desde uma abordagem transcultural, Oyěwùmí afirma que, embora o pensamento feminista ocupe um espaço de radicalidade do ponto de vista local, quando aplicado a contextos culturais diferentes daquele que o produziu, ele encontra muitas limitações. Como apontam Jonatas Ferreira e Cynthia Hamlin (2010), esta lógica é representativa da tendência dualista e ambígua que perpassa todo o discurso civilizador ocidental, inclusive aquele que, como o feminismo, se propõe emancipador.

No segundo capítulo, “(Re)constituindo a cosmologia e as instituições socioculturais Oyó-iorubás”, a objeção à ideia feminista de universalidade e atemporalidade do gênero é explorada a partir da “cosmopercepção” iorubá (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 29). Mediante a análise histórica de instituições pré-coloniais, Oyěwùmí aponta que era a senioridade1, e não o gênero, o princípio organizador fundamental da sociedade Oyó. Naquele contexto, obìnrin e okùnrin, fêmea e macho, respectivamente, consistiam em categorias de diferenciação anatômica e fisiológica cuja finalidade era a reprodução, não indicando classificações ou hierarquias sociais generificadas. O não-reconhecimento do gênero como princípio organizador da sociedade iorubá pré-colonial tende a colocar em xeque o potencial emancipador universal do feminismo hegemônico. Essa constatação encontra respaldo em parte do pensamento feminista decolonial, para quem o gênero é elemento estruturante da colonialidade (Heloisa Buarque de HOLLANDA, 2020). María Lugones (2008), por exemplo, em ensaio que é considerado um marco na inserção da categoria gênero nos estudos decoloniais, afirma a existência de um sistema moderno-colonial de gênero que tem relação com a colonialidade do poder (Aníbal QUIJANO, 2005) e que, portanto, não seria constitutivo das dinâmicas pré-coloniais.

Apesar da importância do trabalho de Lugones, vale mencionar que a perspectiva defendida pela autora e partilhada por Oyèrónkẹ Oyěwùmí na obra aqui resenhada – obra que, deve-se frisar, foi publicada originalmente no ano de 1997 – não é unânime entre as feministas decoloniais. Rita Segato (2014), por exemplo, nos fala acerca da existência, em sociedades indígenas pré-coloniais, de um patriarcado de baixo impacto, como expressão das hierarquias de gênero próprias da vida nos mundos-aldeia. Com o processo de colonização, esse patriarcado de baixo impacto teria sido substituído pelo patriarcado moderno, “[…] de alto impacto, y de muy ampliada capacidad de daño” (SEGATO, 2014, p. 597).

O segundo capítulo também aborda o papel do colonialismo na criação de categorias generificadas. O argumento de Oyěwùmí reside no fato de que a transposição acrítica de categorias e conceitos próprios do feminismo europeu, como mulheres, gênero e patriarcado, para contextos culturais distintos quase sempre ocorre a partir do apagamento de categorias locais e regionais, que podem ser muito mais relevantes na percepção autóctone do que aquelas oriundas do Ocidente (Raewyn CONNELL, 1987 apudOYĚWÙMÍ, 2021).

Esta discussão é aprofundada no capítulo seguinte, “Fazendo história, criando gênero: a invenção de homens e reis na escrita das tradições orais de Oyó”. Na Oyó colonial, a criação de categorias generificadas estaria fortemente relacionada ao processo de transformação das tradições orais iorubás em história escrita, momento em que a tradição é reinventada a fim de atender aos interesses políticos e econômicos dos colonizadores europeus e, como consequência, a história da sociedade iorubá passa a ser apresentada como dominada por atores masculinos (Eric HOBSBAWN; Terence RANGER, 1983 apudOYĚWÙMÍ, 2021). Oyěwùmí demonstra que o processo de escrita da história iorubá, desde a colonização europeia, é sobretudo um processo de atribuição de gênero, “[…] no qual reis e homens foram criados a partir de tradições orais que eram originalmente isentas de categorias de gênero” (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 136). Se antes da colonização, os cargos de poder e liderança eram decididos a partir da linhagem e da senioridade, e não pelo sexo, nas tradições escritas, por sua vez, os aláàfin (governantes) são apresentados exclusivamente como homens. Tal movimento faz parte de um processo de patriarcalização da história de Oyó que levou, pari passu, à feminização de posições e atividades específicas, detentoras de pouco ou nenhum prestígio.

A autora se dedica no quarto capítulo, “Colonizando corpos e mentes: gênero e colonialismo”, a analisar os sistemas administrativo, educacional, legal e religioso instituídos na Oyó colonial a fim de compreender como as políticas, as práticas e as ideologias coloniais contribuíram para a criação das mulheres iorubás como uma categoria residual e não especificada do Outro. Embora não utilize o termo “interseccionalidade” (Kimberlé CRENSHAW, 2002, p. 177), importante contribuição do feminismo negro estadunidense que “[…] busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação” (CRENSHAW, 2002, p. 177), Oyěwùmí aponta que a combinação de fatores de raça, gênero e classe foram determinantes para a constituição hierárquica da situação colonial. Isso porque a patriarcalização das esferas pública e privada desencadeou a exclusão e a desapropriação das mulheres iorubás, escancarando uma forte lacuna de gênero no acesso à riqueza e levando a um intenso processo de feminização da pobreza.

No quinto e último capítulo, “A tradução das culturas: generificando a linguagem, a oralitura e a cosmopercepção iorubás”, destaca-se o papel importante que a linguagem e a tradução possuem para o estudo em questão, apontando que o contato próximo entre a língua iorubá – sem especificidade de gênero – e a língua inglesa – fortemente generificada – tem sido crucial para a produção de cultura, de valores e de conhecimentos na sociedade Oyó contemporânea. Esse debate nos incita a refletir acerca do papel que a intelectualidade exerce nos processos de dominação e de emancipação social, já que a compreensão do gênero como princípio organizador da sociedade iorubá desvela um complexo processo de dominação cultural que perpassa o campo da produção de conhecimento, da documentação histórica, da memória e da interpretação do mundo (María LUGONES, 2020).

Tal argumento é respaldado por um conjunto de produções bibliográficas no campo da teoria social, cujo foco consiste em desvelar o viés androcêntrico e eurocêntrico “[…] que continuam a definir não apenas a teoria, mas todo o campo da sociologia.” (Syed Farid ALATAS; Vineeta SINHA, 2017). Para Alatas e Sinha, o significado de eurocentrismo vai além do sentido literal de centralidade europeia: trata-se de uma forma de ver e, sobretudo, de não ver, que está arraigada a um conjunto de concepções problemáticas como a dicotomia sujeito/objeto e a separação entre corpo e mente, provenientes do dualismo cartesiano.

A publicação tardia no Brasil de obra tão importante para os estudos de gênero e decoloniais é bastante sintomática do quanto o espaço acadêmico brasileiro ainda é colonizado por perspectivas epistemológicas hegemônicas, eurocêntricas e androcêntricas, apesar das transformações positivas na última década. Mais do que um estudo importante acerca das relações de gênero, tendo muito a contribuir para a evolução nesse campo do conhecimento, A invenção das mulheres constitui leitura fundamental para todas aquelas que almejam incorporar o paradigma decolonial em suas práticas científicas e cotidianas.

Nota

1 Na sociedade Oyó-iorubá pré-colonial, a senioridade era entendida como uma categoria relacional e situacional, na medida em que dependia de quem estava ou não presente em determinada situação. Diferente do gênero, ela não é uma categoria rigidamente fixada no corpo ou dicotomizada, mas sim compreendida como parte dos relacionamentos (OYĚWÙMÍ, 2021).

Referências

ALATAS, Syed Farid; SINHA, Vineeta. Sociological theory beyond the canon Londres: Palgrave Macmillan, 2017.

CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan./jun. 2002.

FERREIRA, Jonatas; HAMLIN, Cynthia. “Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 811-836, set./dez. 2010.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. “Introdução”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p. 11-34.

LUGONES, María. “Colonialidad y género”. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-101, jul./dez. 2008.

LUGONES, María. “Colonialidade e gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais . Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p. 52-83.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero Trad. de wanderson flor do nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. In: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latino-americanas. 2005. p. 117-142.

SEGATO, Rita Laura. “El sexo y la norma: frente estatal, patriarcado, desposesión, colonialidad”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 2, p. 593-616, maio/ago. 2014.


Resenhista

Laura Gomes Barbosa – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS/ UFRRJ) e pesquisadora do projeto Mulheres Eleitas/Laboratório de Eleições, Partidos e Política Comparada (LAPPCOM/IFCS-UFRJ/PPGCS-UFRRJ). E-mail: lauragb.barbosa@gmail.com  https://orcid.org/0000-0002-8484-8839


Referências desta Resenha

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Trad. wanderson flor do nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. Resenha de: BARBOSA, Laura Gomes. O gênero, assim como a beleza, está nos olhos de quem vê. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e90155, 2022. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e85759, 2022. Acessar publicação original [DR]

 

Itamar Freitas

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