YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão. Política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeios/ Fapesp, 2016. Resenha de: OLIVEIRA, Felipe Garcia de. A escravidão na imprensa: política antiescravista. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo 2018.
O debate em torno das políticas e ações que levaram ao fim o tráfico negreiro e decretaram a abolição ainda é um tema caro aos historiadores da atualidade. Não à toa, nos últimos anos, foram publicados alguns livros que refletem sobre a importância da lei de 1831, a atuação dos abolicionistas, bem como sobre a pressão inglesa e a agência escrava no século XIX para o fim do tráfico por meio das revoltas e das ações judiciais.
É dentro destas discussões que o livro ora resenhado se insere. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850), é resultado da pesquisa de dissertação de mestrado (de 2010) de Alain Youssef apresentado à Universidade de São Paulo (USP). O autor buscou, a partir do uso sistemático de jornais, panfletos e obras políticas, discutir e apresentar os embates que o trato negreiro e a escravidão ocuparam na imprensa do Rio de Janeiro no período entre 1822 e 1850. Defendendo que a imprensa se apresentou como lócus privilegiado para a questão, Youssef comprova que, ao contrário do consenso de que o tráfico e a escravidão não teriam sido temas nos periódicos, o assunto foi abertamente debatido. A questão não somente foi alvo de debate como também de atuação política, à medida que ideias eram apresentadas primeiramente no parlamento, depois amplamente defendidas e divulgadas na imprensa e, por fim, lidas e discutidas nos espaços de sociabilidade.
O livro é dividido em cinco capítulos, cuja narrativa é clara e demonstra os movimentos políticos e suas modificações. Os capítulos apresentam a exposição de muitas das fontes consultadas, o que permite ao leitor um contato maior com as mesmas.
No primeiro capítulo, o autor localiza seu objeto de interesse dentro de um cenário mundial de transformações que ocorreram na segunda metade do século XVIII e primeira metade do XIX, no sistema atlântico do noroeste europeu.2 O livro, de início, faz uma apresentação minuciosa, demonstrando as particularidades de cada unidade de análise e as conexões entre elas. Neste sentido, demonstra como na Grã-Bretanha, França, Espanha e Portugal, o questionamento acerca do trato negreiro e mesmo da escravidão, ainda que com suas particularidades, esteve vinculado ao desenvolvimento da imprensa e da emergência de novas formas de sociabilidade. Ele analisa, igualmente, como estas reverberaram nos espaços coloniais dos mencionados impérios – Estados Unidos, Haiti, Cuba e América portuguesa -, abordando, então, como os vários agentes sociais utilizaram a imprensa para colocar em pauta o tema da escravidão e do tráfico de africanos. O autor busca dar conta de um universo amplo de informações sem, contudo, desconectar os distintos processos históricos que ocorreram nos vários espaços que estavam interligados entre si e com a América portuguesa.
Ao focar sua análise em seu objeto de estudo propriamente dito, o Rio de Janeiro, o autor destaca que a imprensa não era “um corpo estranho” no espaço colonial (p. 56). Foi, no entanto, a partir do impacto que a chegada da família real trouxe para as práticas culturais de leitura e da criação da imprensa régia, ponto de mudança importante em sua análise, que ocorreu o desenvolvimento da mesma. Ainda naquele momento, a censura promovida pela imprensa régia impossibilitou a criação de uma opinião pública de tipo moderno (p. 66), algo que mudou com o constitucionalismo vintista português introduzindo a liberdade de imprensa em todo o Império. Assim, o número de periódicos passou a crescer tanto em Portugal como no território da América portuguesa, implicando em uma maior circulação de periódicos e de ideias dentro e entre estes espaços. A partir desse alargamento ocorreram condições para o emergir e a legitimação de uma opinião pública ainda que marcada pelo hibridismo. Somente a partir disso, a escravidão passou a ser politizada a tal ponto que a revolta de São Domingos foi utilizada e apresentada nos periódicos de forma diversa tanto pelos que eram favoráveis ao retorno do monarca português quanto por aqueles que queriam sua permanência.
O segundo capítulo tem o recorte que vai da independência do Brasil em 1822 até a promulgação da lei de 1831 (primeira lei de proibição do tráfico negreiro). O autor demonstra que o primeiro texto que abriu o debate defendendo que a escravidão deveria ser extinta de forma gradual foi publicado no final de 1822. Ainda naquele período era pequeno o número de periódicos que defendiam o fim do tráfico e da escravidão. Para Youssef, a explicação estaria na atuação política de José Bonifácio que, por meio da imprensa, buscava convencer e mesmo preparar o público para o debate em torno da escravidão que aconteceria na Assembleia Constituinte.
Novamente, ao buscar estabelecer conexões entre os espaços, o autor menciona o impacto da Revolta de Demerara (1823) levando os abolicionistas britânicos a defender no parlamento e na imprensa da Grã-Bretanha o fim da escravidão. Este momento de intensificação, por sua vez, reverberou no Brasil, culminando na assinatura do tratado antiescravista de 1826-1827. A partir das fontes, constata-se que os textos sobre este tratado tiveram amplo espaço na imprensa brasileira e que, se num primeiro momento foi visto com bons olhos, após sua assinatura passou a ser uma via de crítica contra d. Pedro I. Nesse sentido, os jornais passaram a estar cada vez mais imbricados com a política, acompanhando em suas publicações a “lógica interna do parlamento” (p. 101). Para o autor, até a abdicação, as diversas críticas direcionadas ao monarca, intensificadas após 1826, e as poucas publicações em sua defesa podem asseverar que a assinatura do tratado foi um dos motivos que contribuiu para sua perda de apoio político. Retomando um debate ainda importante da historiografia do século XIX, alinhado a autores como Beatriz Mamigonian e Tâmis Parron, o autor defende a impossibilidade em tomar a lei de 1831 como “lei para inglês ver”, pois, considerando que os periódicos passaram a colocar em pauta projetos que abordaram o que deveria ser feito após a extinção do tráfico e mesmo com o possível fim da escravidão, haveria uma certeza de que o tráfico acabaria.
O terceiro capítulo aborda o período pós abdicação até 1835. Os primeiros anos da regência são marcados pela euforia política e pelo alargamento dos espaços públicos, na medida em que ocorreu a fundação de várias associações e jornais fundamentais para os debates, para a conquista de público e mesmo para a definição de atuação política dos grupos de oposição ao monarca. Naquele momento, tais grupos eram os partidos dos liberais moderados, liberais exaltados e restauradores (caramurus). Ao assumirem o poder, os liberais moderados empreenderam medidas para dar fim ao tráfico e, embora não fossem capazes de acabar com ele, tais medidas não podem ser vistas como um fracasso completo. Uma delas foi a descentralização do Judiciário concedendo mais poder ao juiz de paz que passaria a dar liberdade aos africanos escravizados ilegalmente e a punir os responsáveis.
Reavaliando o impacto da Revolução de São Domingos no Brasil, Youssef destacou que, diferentemente dos efeitos que ocorreram em outros países escravistas – Estados Unidos e Cuba -, o haitianismo era muito mais uma retórica utilizada para fins políticos de defesa ou oposição aos moderados. Ao longo do capítulo, o autor tenta perceber o impacto de algumas revoltas do período. Analisando o levante dos malês (1835) conclui que, de fato, ele foi capaz de reacender as ideias antiescravistas, mas que foi por um período curto, não perdurando mais que quatro ou cinco meses (p. 168). No mais, este evento não teria servido como impulso político para que um grupo tomasse medidas eficientes contra o trato negreiro, ainda que propostas fossem apresentadas em âmbito municipal e nacional.
Para o autor, o levante dos malês e os boatos de várias revoltas escravas possibilitaram um temor mais concreto em relação ao haitianismo. No entanto, dado o clima político, estes eventos deram base para a formulação de críticas a uma ala dos moderados, pois a política empreendida por Feijó e Evaristo estaria, segundo os críticos, levando o país à ruina (p. 169). Vale ressaltar que não somente os adversários tiraram proveito da situação; os partidários utilizaram o discurso de medo do haitianismo para defender suas posições, o que fez com que os oposicionistas acabassem abandonando a retórica. Neste sentido, os eventos e mesmo o temor que era espalhado passou da crítica à propaganda política, sendo uma “peça no jogo político” (p. 174). O autor conclui, portanto, que a imprensa teve um peso importante para a propagação desse medo do haitianismo neste momento regencial, propagação esta que, segundo suas hipóteses, teria contribuído para a vitória de Feijó.
Até 1834, nenhum jornal defendia a continuidade do tráfico. Entretanto, o autor demonstra que a defesa do trato negreiro e da escravidão passou aos poucos a ocorrer quando o campo cafeeiro ganhou força, momento em que a economia mundial estava se reorganizando, e, também, com as dissidências e disputas políticas dentro dos partidos. No final de 1834, Feijó escreveu um artigo defendendo abertamente, pela primeira vez, a continuidade da escravidão e a revogação da lei de 1831, o que mais tarde ganhou força e ajudou em sua eleição. Neste sentido, as modificações na configuração econômica e política propiciaram o retorno da defesa do tráfico e da escravidão, ponto analisado com mais afinco na sequência.
O quarto capítulo aborda o período de 1835 a 1840, discutindo como a imprensa teve papel fundamental na propagação das ideias regressistas para a reabertura do tráfico. Após a posse de Feijó, as medidas contra a escravidão permaneceram baseadas na política moderada, apesar de este ter defendido a revogação da lei de 1831 durante a campanha. Os regressistas colocaram em pauta a reforma do código do processo criminal de 1832, a reinterpretação do ato adicional de 1834 e a revogação da lei de 1831. Segundo o autor, as duas primeiras questões incidiam em uma tentativa de maior centralização diretamente sobre o Judiciário.
Para conseguir suas pautas, parte dos regressistas atuou politicamente por meio da imprensa, principalmente na implementação de uma política do contrabando negreiro (p. 182). Neste sentido, articulados com os fazendeiros, defendiam a entrada de africanos e a proteção da posse ilegal dos que por lei eram livres. Foi na imprensa, como já mencionado, que a agenda dos regressistas trouxe a continuidade do trato negreiro a partir de 1835. Com a saída de alguns periódicos que eram contra a continuidade do tráfico e com o avanço das publicações a favor, a opinião dos regressistas aliados aos fazendeiros avançou, ao ponto de, após 1836, a oposição ficar em silêncio. Assim, eles utilizaram a imprensa para publicizar suas propostas de reabertura do tráfico e para informar medidas que relaxavam as punições contra os traficantes. Os periódicos teriam, segundo o autor, possibilitado que a letra da lei contra o tráfico fosse considerada morta. A lei, apesar de não ser abolida, não era obedecida. Desse modo, o contrabando passou a operar em nível sistêmico (p. 201).
O autor questiona a ideia historiográfica de que a continuidade do tráfico ilegal pode ser explicada a partir das políticas liberais de descentralização do Judiciário, à medida que muitas vezes os juízes de paz – eleitos – eram fazendeiros e, portanto, teriam atuado pela continuidade, ponto que tem sua origem entre os coevos do século XIX. Para o autor estas análises baseadas principalmente em âmbito local ou na atuação do juiz de paz não conseguem responder completamente à pergunta. Em sua perspectiva, um exame mais amplo das dinâmicas econômicas, sociais e políticas daria respostas melhores e ajudaria a entender porque o tráfico atingiu seu maior número logo após a medida de centralização dos conservadores. Desse modo, ele acredita que, apesar de não podermos deixar de lado a questão local, os processos amplos que possibilitaram o surto cafeeiro e a continuidade do tráfico precisam considerar a articulação na imprensa e no parlamento dos políticos regressistas com os fazendeiros.
Ao verificar a importante função que a imprensa possuía já no século XIX, Youssef questiona a noção historiográfica que colocou no Estado ou na Coroa o papel principal de conformador da sociedade Ele aponta que, apesar de não ter dados empíricos para verificar a formação de uma classe social de fazendeiros que usou a Coroa para seus fins, havia uma relação forte entre os políticos e plantadores do centro-sul do país que informou a continuidade do tráfico e sua defesa. Considerando a imprensa como “umas das organizações privadas” que constitui a sociedade, ele afirma que ela foi importante para a direção e defesa do Regresso.
O quinto e último capítulo aborda o papel da imprensa no período de 1841 até 1850. Discutindo o peso das posições acerca do tráfico negreiro na “diferenciação e na consolidação dos dois partidos durante os primeiros anos do Segundo Reinado” (p. 241), o autor aponta que as críticas feitas nos periódicos ajudaram na consolidação e na diferenciação, ocorrendo em um momento de crescimento maior da produção de café, ao mesmo tempo em que a pressão inglesa aumentou. O autor defende que a pressão britânica foi fundamental para que o debate do tráfico viesse à tona na década de 1840. Momentos como o vencimento de acordos feitos ainda no Primeiro Reinado (1840) fizeram emergir propostas e críticas contra a possibilidade de novos acordos com os ingleses; a bill Aberdeen (1845), apesar de eficaz no início, não conseguiu acabar com o tráfico e foi utilizada pelos saquaremas para retomar suas ideias escravistas; e, por fim, a abolição do tráfico reativou as discussões diplomáticas entre brasileiros e britânicos por conta da bill Aberdeen.
Em sua análise, o autor aponta que as revoltas e as conspirações escravas tiveram papel importante para reacender o debate acerca do tráfico na imprensa, ainda que por pouco tempo. Em vista disso, ele defende, reafirmando uma ideia já apresentada na historiografia, que não foi a agência escrava ou a febre amarela, mas “só a intensificação da pressão britânica foi capaz de impelir as Saquaremas rumo à abolição” (p. 279). Argumentou que um dos mais importantes jornais saquaremas publicou propostas para uma gradual abolição e para a regulamentação dos africanos escravizados ilegalmente após 1831, o que informava aos senhores de escravos que, com o fim do trato, o número de escravos não seria reduzido.
Neste momento próximo ao fim do trato, conservadores e liberais buscaram defender que suas ideias políticas contra ou a favor do tráfico e da escravidão fossem formuladas a partir da “opinião pública”. Ao postularem a ideia de “opinião pública”, os saquaremas acabaram despolitizando a defesa que faziam do contrabando, relegando a culpabilidade por quase 20 anos de escravidão ilegal à “opinião pública”, algo que foi acolhido pela historiografia do século XIX, mas que o livro, de forma incisiva, cuidadosa e brilhantemente matiza por meio dos jornais, demonstrando como os saquaremas tiveram papel na reabertura, no fim do trato negreiro e, mesmo, no projeto de um Brasil com sistema escravista, como permaneceu.
O livro é denso e muito bem escrito. Sua narrativa consegue apresentar a relação da sua unidade principal de análise com as outras. No mais, sua leitura evidencia o quanto a imprensa, desde há muito, é utilizada como palco político.
Referências
BERBEL, Marcia Regina; MARQUESE, Rafael de Bivar; PARRON, Tâmis. Escravidão e política. Brasil e Cuba, c.1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010. [ Links ]
2 BERBEL, Marcia Regina; MARQUESE, Rafael de Bivar; PARRON, Tâmis. Escravidão e política. Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010.
Felipe Garcia de Oliveira – Mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo. Email: f.g.o.410@hotmail.com.
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