Working the System. A Political Etnography of the New Angola | Jon Schubert
A relação das pessoas comuns, seja um feirante usando transporte público, seja um professor universitário do alto de seu gabinete, com a estrutura de um Estado autoritário – esse é o tema do recente estudo de Jon Schubert “Working the System. A political etnography of the New Angola” sobre a Angola do pós-guerra civil. Procurando mapear a partir de uma pluralidade de sujeitos de diferentes estratos sociais da sociedade luandense a relação com o Estado, corporificado materialmente e simbolicamente no que os informantes chamam de “o sistema”, Schubert procurou tocar em várias questões sensíveis da história recente de Angola para ir além de análises mais generalizantes que se detém aos grandes movimentos da política e da economia da reconstrução do país: a estabilização autoritária da política interna, o crescimento econômico vertiginoso do país por causa do petróleo, a concentração de poder nas mãos do maior partido político, o lado vitorioso da guerra civil, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
Seus questionamentos são em torno de como esse “sistema” funciona no cotidiano das relações sociais, retomando reflexões gramscinianas de como pessoas que estariam excluídas da participação do processo decisório – que estariam às margens do sistema – acionam essa estrutura política de forma criativa e até subversiva, negociando espaços e tencionando o sistema vigente. Como sugere o título em inglês, o termo “working” no gerúndio sugere o estudo do funcionamento cotidiano do sistema assim como do que faz o sistema funcionar, seja estudando os grupos políticos que se consolidam no poder material e discursivamente após o fim da guerra, seja entendendo os termos de negociação da sociedade civil frente a esse regime e suas características.
O subtítulo do livro, “uma etnografia política da Nova Angola”, anuncia uma criação discursiva bastante específica desse regime estabelecido que é a da construção de uma “Nova Angola”, um país que seria separado do passado do colonialismo e dos conflitos subsequentes, dinâmico e moderno, adotando os ideários de governança e democracia da atual hegemonia neoliberal. Abordando ao longo dos seis capítulos do livro temas como a guerra civil, o passado e a memória da luta anti-colonial, as relações raciais, o compadrio e o consumismo, Schubert procura confrontar discurso oficial do governo com uma polifonia de agentes sociais, sem descartar a relação dialética entre esses dois universos, entendendo quanto os valores dessa peça semi-ficcional de uma “Nova Angola” se materializam no cotidiano dos moradores do centro desse sistema, a cidade de Luanda. Nesse ponto se localiza o que parece ser o maior limite dessa análise, que é o seu recorte geográfico ao se limitar a pesquisar essa relação entre Estado e sociedade somente na capital – estando longe de ser o único estudioso de Angola a realizar essa escolha – perdendo de vista que muitos desses processos, que se manifestam de formas plurais ao longo do território do país, têm seu valor e sua produção em contextos que ultrapassam os limites de Luanda; sendo, portanto, uma boa etnografia política da “Nova Angola”, mas uma análise ainda circunscrita sobre Angola. A etnografia de Schubert deve, portanto, servir de incentivo a uma agenda de novos estudos sobre a política angolana do pós-guerra que sejam sensíveis para as imensas diferenças regionais que caracterizam o país.
Fundamental para a formação do conceito de uma “Nova Angola” é a narrativa oficial de oposição ao passado que antecederia a paz vinda a partir de 2002. É sobre essa narrativa que o autor constrói o capítulo 1 do livro que, como sugere o nome “2002, Year Zero”, revisita o discurso vitorioso do MPLA sobre o passado que antecede a “Nova Angola”. Reivindicando-se como o “Arquiteto da Paz”, o então presidente José Eduardo dos Santos corrobora uma oposição entre a “confusão” do período da guerra frente à prosperidade trazida com a vitória militar de seu partido. Nessa leitura, os responsáveis pela guerra seriam os partidários da UNITA (União para a Independência Total de Angola), que seriam os agressores financiados pelo imperialismo ocidental e pelo governo do apartheid da África do Sul, e não um outro movimento de luta pela libertação nacional como reconhecido nos tratados com Portugal em 1975. Não havendo interlocutores legítimos e sendo os únicos reais representantes do movimento de libertação nacional do país, o MPLA justificaria assim a falta de necessidade de reconciliação no pós-guerra, sendo que a solução para o país se resumiria ao processo de reconstrução física do país, para compensar as perdas materiais do que consistiria em uma longa luta pela libertação nacional, que seria iniciada em 1961 e continuaria até 2002, com a derrota dos últimos “fantoches” do imperialismo.
Ao final do capítulo, para mostrar a operacionalidade da narrativa oficial, o autor procura analisar o discurso sobre dois episódios sensíveis do período da guerra civil: o 27 de Maio de 1977 e as eleições de 1992. O primeiro, que foi entendido como uma tentativa de golpe de Estado por parte de membros do interior do partido, cujo mentor teria sido Nito Alves, foi seguido de uma dura repressão e perseguição a possíveis dissidentes – que significaria por um longo período o fim das possibilidades de questionamento aberto ao regime. O segundo consistiu numa tentativa fracassada de tratado de paz entre o MPLA e a UNITA em que, com o fim das hostilidades de ambos os lados seria realizada uma eleição presidencial – e, após a vitória de José Eduardo dos Santos nas eleições, Jonas Savimbi recusaria o resultado e sairia de Luanda, o que, somado aos boatos de violência no interior, reacenderia o conflito por mais uma década. Partindo dos locais de memória de um dos principais municípios de Luanda, Sambizanga, que Schubert, no capítulo 2, revisita esses acontecimentos, somados ao fechamento do mercado Roque Santeiro em 2011, a partir da interpretação dos moradores que viveram esses períodos. Mais do que contrapor as trajetórias e interpretações individuais ao discurso oficial do poder, nesse capítulo o autor procura entender como os sujeitos mobilizam os marcadores físicos de memória do bairro (o Bairro Operário, os locais atacados no 4 de fevereiro de 1961 – o início da luta anticolonial na história oficial do MPLA, a antiga casa de Savimbi, o mercado Roque Santeiro) para construção de suas imagens, reivindicando a sua própria interpretação do passado frente à do governo.
No terceiro capítulo o autor propõe-se a tratar de um grande tabu da sociedade angolana que é o das relações raciais. Com o lema lançado por Agostinho Neto de que Angola seria “de Cabinda ao Cunene, um só povo, uma só nação”, o autor se depara com o contraste entre uma suposta unidade inconteste do povo angolano, que não seria separado por grupos étnico-raciais, propagada pela narrativa oficial e uma realidade empírica em que os sujeitos discutem o tempo todo sobre raça, como bem demonstrado com a ocasião da coroação de Leila Lopes, uma angolana crioula, como Miss Universo em 2011. Questão fundamental nesse capítulo é a definição da propriedade ou não de um direito de “angolanidade” para determinados grupos étnico-raciais, focalizando a análise sobre os crioulos de Luanda. Mesmo que o autor cometa alguns deslizes na análise histórica sobre a questão, associando processos sociais e políticos que não foram simultâneos, não muda o fato que o seu ponto principal da análise, que é que a formação histórica de uma elite crioula, cuja relativa ascensão social foi permitida pelo colonialismo português de séculos na região, é fundamental para compreender o ressentimento de grande parte da população frente a esse grupo social – que atualmente seria relacionado ao MPLA.
Levando em conta a participação histórica de importantes quadros crioulos no interior do MPLA, em vários de seus informantes Schubert encontra a afirmação de que o partido não seria um legítimo representante do povo angolano, e sim desse grupo circunscrito dos mulatos. Isso é exemplificado pelo acrônimo irônico de que a sigla MPLA significaria “Mulatos e Pulas [Portugueses] Libertaram Angola” que, com a mudança do nome do partido após o Congresso de 1977 para MPLAPT (Partido do Trabalho) passaria a ser “Mulatos e Pulas Libertaram Angola – Pretos Também” – realizando uma oposição clara frente aos outros movimentos de libertação de Angola, a UNITA e o FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), que teriam uma base social mais clara. Dessa forma, o questionamento político ao partido majoritário mobilizaria um questionamento da real angolanidade desses representantes que, por supostamente não serem realmente provenientes do povo angolano, seriam elementos estrangeiros que não possuíam real compromisso com o povo. O questionamento da autoctonia da classe política alcança o próprio José Eduardo dos Santos, cujo suposto nascimento em Luanda é questionado por vários dos informantes, sendo que um deles chega a afirmar categoricamente que:
(…) nosso presidente é um estrangeiro. Ele é são-tomense. (…) Se ele nasceu nesse bairro [Sambizanga], quem é o seu avó, quem é o seu pai? Por que ele teria ido para São Tomé para enterrar a sua mãe? Você sabe, o FNLA e a UNITA, eles são os verdadeiros representantes do povo angolano. Mas o MPLA? Eles são todos caboverdeanos. Sim, [Agostinho] Neto era cabo-verdeano! De outra forma ele não nos traído com esse são-tomense! Eu só espero que um dia um angolano vá tomar o seu lugar e fazer o melhor ao país.2
No capítulo 4, o autor realiza importante reflexão sobre a relação das pessoas com a burocracia do Estado, detendo-se na análise da mobilização de “cunhas”, nome dado a conexões pessoais, para alcançar os seus desejos dentro de uma estrutura de poder aparentemente intransponível. Assim como o objeto homônimo que mantém a porta aberta, os cunhas são sujeitos de dentro do sistema cujo parentesco situacional é acionado cotidianamente, seja em relações reais, como o exemplo que ele levanta do próprio pedido de visto, que necessitou a interferência de vários conhecidos que transitavam dentro da burocracia estatal para o sucesso do procedimento, até relações fictícias, em casos mais rotineiros, como a enunciação de que o sujeito é próximo do delegado de polícia para se livrar de uma multa de trânsito, ou mais excepcionais, como o sujeito que, com um documento de identidade falso, alegou ser filho de José Eduardo dos Santos e conseguiu centenas de milhares de dólares em favores comerciais.
Se opondo a uma visão de inspiração weberiana que denunciaria o caráter patrimonialista do Estado angolano a partir desses casos de clara corrupção política, o autor parece ir por caminho análogo ao traçado pelo trabalho clássico de Maria Sylvia de Carvalho Franco, “Homens Livres na Ordem Escravocrata”, que, analisando um contexto bastante distinto – o vale do Paraíba oitocentista, também reflete sobre a relação dos sujeitos sociais com o Estado. Analisando os padrões de poder exercidos pelas elites locais frente aos homens livres e pobres que transitavam nas esferas de influência dos grandes proprietários de terra, a socióloga defende que esses padrões de dominação pessoal são integrados ao funcionamento da burocracia estatal que, por essa razão, não desafia o poder dos grandes cafeicultores. No lugar de caracterizar tal sistema político como arcaico ou patrimonialista, pensando em um tipo ideal isolado da realidade empírica, a autora prefere analisar como o sistema funciona de fato3 . Da mesma forma, não há dúvidas para Schubert (e nem para os seus informantes) que o sistema angolano funcione, tornando a sua análise especialmente interessante no momento que, ao procurar o cotidiano de seus interlocutores, reflete como o sistema funciona, ou seja, como esses sujeitos individuais acionam a estrutura do Estado para defesa de seus interesses mais amplos ou mais imediatos.
No capítulo 5, ao refletir sobre o que chamou de uma “cultura de imediatismo”, o autor reflete sobre os desejos e expectativas de progresso material de sujeitos de diversos estratos sociais, demonstrando efeitos simbólicos de uma estética materialista em uma cidade cuja economia foi radicalmente dinamizada pelos recursos da exportação de petróleo. Nessa construção simbólica torna-se fundamental a imagem dos novos ricos da sociedade luandense que, se por um lado são elementos de admiração por aqueles que também desejam um progresso material acelerado, por outro são entendidos por diversos grupos como traidores dos valores tradicionais angolanos – sendo que esses representantes emblemáticos do que seria a “Nova Angola” estariam traindo a cultura de solidariedade que seria herdada tanto do socialismo, quanto de uma suposta cultura tradicional africana. E são exatamente esses empresários em ascensão com o vertiginoso crescimento econômico do pós-guerra que se tornariam uma importante base de sustentação do MPLA como principal partido angolano, sendo fundamental a participação dentro do partido para tais empresários adquirirem grandes favores comerciais em contratos com o Estado – negociando o sistema, por assim dizer, pelo andar de cima. Dessa forma, o autor conclui que, com essa ligação orgânica com o empresariado, o MPLA pôde criar a sua auto-imagem como “o Maior Partido de Angola”, o que gera ressentimento de quadros históricos do partido que mantém seu idealismo ligado aos valores marxistas.
Com o seu trabalho de campo realizado no período entre outubro de 2010 e outubro de 2011, Schubert teve a grande oportunidade de acompanhar de perto as reações, os boatos e os temores da população luandense acerca dos protestos organizados por jovens em 2011. Inspirados pela Primavera Árabe ocorrida no mesmo ano, tanto no sentido de questionamento do poder estabelecido de forma autoritária por décadas, quanto nas experiências de organização de protestos por vias não institucionalizadas, especialmente as redes sociais, o autor acompanhou os debates gerados pelos primeiros protestos de contestação direta ao governo do MPLA desde a repressão que se seguiu ao 27 de maio de 1977. Estabelecendo essas reflexões no capítulo 6, o autor procura analisar os receios da população e dos próprios partidos de oposição que, nesse primeiro momento, não apoiam o protesto, e quanto a própria linguagem dos ativistas se dava dentro do horizonte de expectativas do próprio poder estabelecido, reivindicando-se como os verdadeiros revolucionários – a ponto do email de convocatória ao protesto que circulou pelas redes sociais ser emitido por um usuário cujo pseudônimo foi “Agostinho Jonas Roberto dos Santos”4 . A sua reflexão no capítulo é sobre essa tensão, anunciada no título desse último capítulo, “Against the System, within the System”, de quanto o enfrentamento em protesto direto ao Estado estaria (ou não) desafiando romper, ou pelo menos, fugir da lógica de funcionamento do sistema e de sua cultura do medo. O resultado prático foi que os protestos de 2011 foram relativamente esvaziados e esse potencial de revolta não teve grande impacto nas eleições de 2012, nas quais o MPLA conquistou uma vitória esmagadora, evento marcado por múltiplas acusações de fraude eleitoral.
Porém, a partir do resultado das eleições de 2012 os protestos se multiplicaram e o enfrentamento frontal ao governo do MPLA foi se fortalecendo, somando a essa situação a crise econômica pela qual o país entrou por causa da queda do preço do petróleo. O aumento das hostilidades e a perda de legitimidade do governo de José Eduardo dos Santos não pôde ser analisada de forma mais detida por esse estudo, merecendo comentários mais breves no Epílogo do autor. É importante destacar que o livro foi publicado em 2017 e o autor encerrou a sua redação no final de 2016, tendo em seu horizonte a percepção do processo de enfraquecimento do governo, sem ter conhecimento de que o presidente dos Santos renunciaria ao cargo em setembro de 2017, sendo sucedido por João Lourenço (tendo conhecimento na época somente do anúncio de que Lourenço seria o candidato do partido nas próximas eleições).
Acho importante destacar, para concluir, o esforço do pesquisador de propor lidar com questões sensíveis de forma ética e responsável a partir de narrativas de cidadãos envolvidos em um contexto político autoritário. Para tal esforço, já anuncia no início do estudo a importância do seu lugar de fala, como um intelectual branco e estrangeiro que havia vivido na infância em Luanda por causa da participação de seus pais em uma missão religiosa, como elemento para criação de laços de confiança com os interlocutores. Os receios de determinados interlocutores frente a falar abertamente sobre essas temáticas fazem alguns preferirem conversar dentro de casa (ou dentro da casa que Schubert se hospedava, para evitar a vizinhança), tendo um único informante que pediu para que seu nome não fosse revelado – um acadêmico do meio universitário. Porém, tratando com o devido cuidado essas narrativas, ao manter a sua proposta inicial de entender como as pessoas das mais diferentes categorias experienciam e se relacionam com o sistema político, o trabalho de Schubert cumpre um importante papel para adensar o volume de estudos sobre a política na Angola contemporânea.
Notas
2 SCHUBERT, Jon. Working the System. A Political Etnography of the New Angola. Ithaca: Cornell University Press, 2017, p. 114-115. Tradução própria.
3 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 4ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 1997 [proveniente de tese de doutorado originalmente defendida em 1964].
Resenhista
Ivan Sicca Gonçalves – Mestrando no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), na linha de História Social da África. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Referências desta Resenha
SCHUBERT, Jon. Working the System. A Political Etnography of the New Angola. Ithaca: Cornell University Press, 2017. Resenha de: GONÇALVES, Ivan Sicca. Uma Etnografia Política da “Nova Angola”. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.01, n.01, p. 187 – 191, out.2018/março.2019. Acessar publicação original [DR]