Categories: Todas as categorias

Whose land Is It anyway? a manual for decolonization | Peter McFarlane e Nicole Schabus

Como seria a vida se os colonizadores tivessem respeitado os povos indígenas desde o primeiro contato? Como as coisas poderiam ter sido diferentes se tivéssemos sido capazes de aprender uns com os outros desde o começo? Quando os primeiros colonizadores chegaram em Turtle Island1 , os povos indígenas partilharam generosamente seus conhecimentos sobre a terra para ajudar os recém-chegados a se adaptarem à nova vida. Imaginem se tivessem aprendido com os indígenas a respeitar a Mãe Terra. Imaginem se os lugares onde viviam os povos indígenas tivessem sido repartidos com base na igualdade que sempre sonhamos. Imaginem se os erros do passado pudessem ser reparados. Hoje, mesmo diante de todas as dificuldades, precisamos ousar acreditar que a mudança ainda é possível. Com essas indagações, Bev Sellars, a grande Chefe da Primeira Nação Xat’sull, prefacia o livro De quem é a terra, afinal? Manual para a descolonização, convidando a todos para nos armarmos de conhecimento e buscarmos o poder de transformá-lo em realidade. Esse é o propósito do livro: munir as pessoas indígenas e não indígenas de conhecimento a fim de que possam compreender os impactos da colonização e trilhar os caminhos para a descolonização, de modo a reparar os erros do passado e vislumbrar, no futuro, uma verdadeira reconciliação.

Trata-se de uma coletânea que reúne escritos de alguns dos mais importantes intelectuais e ativistas indígenas do Norte. Publicada em 2017, quando o Canadá comemorava seu aniversário de 150 anos, essa coletânea veio lembrar que, de sua parte, os povos indígenas não tinham nada para celebrar. Para eles, esses 150 anos não trouxeram nenhum progresso. Hoje, os povos indígenas no Canadá estão entre os mais pobres dos pobres, enfrentam uma série de dificuldades e são vítimas de um racismo brutal. Conhecer essa realidade e ter a oportunidade de ler e ouvir2 dos próprios indígenas a sua versão é imprescindível se quisermos, de fato, compreender o que nos une e pensar sobre quais solidariedades são necessárias para seguirmos juntos na luta.

O livro foi organizado por Peter MacFarlane e Nicole Shabus em homenagem ao grande líder Arthur Manuel, falecido em janeiro de 2017. Arthur Manuel foi um gigante do movimento indígena no Canadá e internacional. Grande chefe da Primeira Nação Shuswap, foi vice-presidente da Assembleia das Primeiras Nações e participou do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas desde a sua criação. Dois dos melhores capítulos do livro são de sua autoria: From Dispossession to Dependency e The Grassroots Struggle: Defenders of the Land & Idle No More3 .

O livro, concebido como um manual, tem 14 capítulos organizados em três partes: 1) A Maquinaria do colonialismo; 2) The Resurgence4 e 3) Caminho para a Reconciliação. São 14 autores, 13 indígenas e uma aliada, de várias partes do Canadá, com visões e experiências diferentes, que trazem suas mensagens e relatam suas lutas em diversos campos de batalha.

A primeira parte é composta por quatro capítulos, em que são analisados os mecanismos da colonização e seus impactos sobre os povos indígenas. Taiaiake Alfred5 , intelectual e ativista Mohawk, é o primeiro autor, com seu texto It’s All about the Land6 . Ele aponta como principal dano da colonização a ruptura da relação viva entre os povos indígenas e a terra. Para ele, a luta está longe de ter terminado e a reconciliação, da forma como proposta pelo governo canadense, “é uma recolonização, porque permite que o colonizador mantenha suas atitudes e sua mentalidade e não coloca em xeque seu comportamento para com nosso povo e nossa terra” (ALFRED, 2017, p. 11). Com esse paradigma de reconciliação, não há descolonização possível. Taiaiake propõe, então, como caminho para a descolonização, a sua noção de Resurgence como um

“ressurgimento autêntico da indianidade baseada na terra” (ALFRED, 2017, p. 12). Os jovens indígenas devem reconhecer e respeitar os dons poderosos que se encontram dentro de sua memória ancestral. Devem saber ouvir a voz de seus ancestrais, que continuam a dizer: “É tudo uma questão de terra” (ALFRED, 2017, p. 15). Sem uma restituição das terras às Primeiras Nações, a reconciliação continuará sendo uma recolonização.

Os três outros capítulos que compõem a primeira parte mostram como as leis e as políticas implementadas pelos sucessivos governos no Canadá serviram para a expropriação maciça da terra e para a aniquilação e controle dos povos indígenas. O texto de Sharon Venne, “Título da Coroa: uma mentira legal”, trata das reivindicações territoriais e da má vontade do governo canadense em reconhecer o direito de propriedade das Primeiras Nações sobre seus territórios. As negociações dos tratados modernos continuam sendo feitas no Canadá com base em uma mentira legal, segundo a qual o título da terra pertence à Coroa e, aos povos indígenas, cabe “reivindicar” seu direito sobre suas terras e territórios.

O texto de Arthur Manuel, “Da desapropriação à dependência”, explica como o roubo maciço das terras indígenas causou danos incríveis e está diretamente relacionado com a extrema pobreza desses povos e com sua dependência dos governos colonizadores. O texto de Russell Diabo, “A Lei dos Índios – A fundação do colonialismo no Canadá”, mostra como o governo colonial utilizou a Lei dos Índios (Indian Act) de 1876 para controlar os povos indígenas, determinando quem era e quem não era índio para separá-los e, assim, colocá-los nas reservas. Manter os indígenas presos nas reservas foi uma forma de controle que, em muitos aspectos, continua funcionando ainda hoje. A Lei dos Índios é a base da discriminação contra as Primeiras Nações no Canadá. Depois dela, muitas outras leis e políticas foram implementadas para “se livrar do problema indígena”, para que o Canadá pudesse continuar a colonizar as terras e explorar seus recursos naturais. A mensagem de Russell Diabo é que os objetivos do Canadá nunca mudaram.

A segunda parte do livro, The Resurgence, reúne oito capítulos sobre diferentes temas ligados a experiências de luta vividas na linha de frente das batalhas. O primeiro capítulo, de Arthur Manuel, apresenta os movimentos indígenas canadenses Defenders of the Land (Defensores da Terra) e Idle no More (Ociosos nunca mais) como movimentos de base popular que rejeitam as políticas coloniais do governo e lutam pela defesa da soberania, da terra e da autodeterminação das nações indígenas, diferente das organizações indígenas que recebem dinheiro do Estado e são estrategicamente manipuladas. O capítulo de Shiri Pasternak trata do bloqueio como um local de encontro jurídico entre dois sistemas de direito. Os bloqueios de estradas são formas de ação política e resistência frequentemente usadas pelos algonquinos de Barriere Lake desde os anos 1990, na sua luta contra a exploração madeireira em suas terras.

A mídia costuma tratar esses bloqueios como se fossem um símbolo do apego saudosista à terra e uma visão econômica retrógrada. No entanto, para Pasternak, os bloqueios são “um dos exemplos contemporâneos mais importantes onde o direito canadense se encontra com as sociedades indígenas modernas no campo” (PASTERNAK, 2017, p. 33). Os bloqueios, quando perturbam ou impedem a exploração de madeira, longe de serem um símbolo de um apego ao passado, representam “uma projeção para o futuro indígena” (PASTERNAK, 2017, p. 33). Eles são uma manifestação das “leis indígenas” na “defesa das terras vivas” e trazem à tona as “relações difíceis entre os dois sistemas legais que se encontram frente a frente nas estradas […].” (PASTERNAK, 2017, p. 33).

O capítulo de Melina Laboucan-Massimo retrata sua experiência de luta contra as areias betuminosas em Alberta. Ela descreve os impactos dos depósitos de areias betuminosas em seu território e como sua exploração industrial tem mudado drasticamente a paisagem nos últimos anos: antes, uma “floresta boreal imaculada”; hoje, um “terreno industrial cada vez mais tóxico” (LABOUCAN-MASSIMO, 2017, p. 37). As areias betuminosas poluem a terra, secam os rios e envenenam o ar. Os “animais e os peixes têm tumores”; “jovens e anciãos morrem de formas raras de câncer” (LABOUCANMASSIMO, 2017, p. 37). Melina Laboucan-Massimo, da Primeira Nação Cree de Lubicon, tem dedicado sua vida à luta pela proteção da Mãe Terra.  Kanahus Manuel, filha de Arthur Manuel, conta, em seu capítulo, a história de sua prisão quando tentava proteger a terra contra o projeto de Sun Peaks para a construção de um resort e de uma estação de ski, e como sua geração foi preparada para estar, hoje, na linha de frente da luta descolonial. Ela descreve o momento de sua prisão como um dos mais tristes de sua vida, não por estar sendo presa por defender seu território, mas por ter sido separada de seu bebê que, na época, tinha apenas três meses. Após essa “provação”, ela compreendeu quem era e “o que tinha que fazer como mulher Swecpemc para lutar por seu povo” (MANUEL, 2017, p. 43).

O capítulo de Berverly Jacobs trata da luta antiviolência contra a mulher indígena e o capítulo de Jeffrey McNeil aborda a temática da resistência Two-Spirit, a partir da ética da reciprocidade indígena. O termo Two-Spirit (Dois Espíritos) é usado para se referir às várias experiências de fluidez de gênero e sexualidade. Surge nos anos 1990 “para englobar as intersecções de indianidade, sexualidade e gênero”, mas também se refere às “relações com a família, a comunidade, a terra, a água, a espiritualidade” e está enraizado “na resistência histórica e contínua e no desejo de soberania indígena” (JACOBS, 2017, p. 53-54). Jacobs chama a atenção para a necessidade de considerar as tensões de gênero e formação da identidade sexual para lidar com a “pandemia nacional de suicídio de jovens no Canadá” e para o fato de as pessoas Two-Spirit ainda não serem aceitas publicamente e reconhecidas como “desejadas ou amadas por cada Organização Nacional Indígena como a Comissão de Verdade e Reconciliação e a Assembleia das Primeiras Nações” (JACOBS, 2017, p. 54).

Glen Coulthard traz a questão da educação fundada na relação com a terra e na proposta de Resurgence indígena. Ele descreve a experiência da Dechinta Bush, universidade indígena onde é professor, e mostra como é importante para os povos indígenas reaprender suas relações com a terra. A segunda parte do livro encerra com o capítulo de Nicole Shabus, advogada aliada que acompanhou Arthur Manuel em suas viagens internacionais. Shabus defende a importância da internacionalização da luta e das alianças com povos indígenas de todo o mundo.

A terceira parte traz o discurso do Senador Murray Sinclair, relator da Comissão da Verdade e Reconciliação no Canadá, primeiro Juiz indígena e Senador desde 2016, e o capítulo de Pamela Palmater, “Descolonização é tomar de volta nosso poder”. Pam Palmater quis deixar uma mensagem para os povos indígenas e seus aliados de que temos sim o poder para fazer as coisas mudarem. Para os povos indígenas, ela diz que eles devem se lembrar que ainda estão aqui, que sobreviveram a todo tipo de genocídio, que os seus antepassados lutaram assim como muitos continuam lutando hoje, com força, resistência, determinação e orgulho de serem indígenas. Para os aliados, ela lembra que eles têm um papel nesse processo de descolonização, que começa com o esforço de buscar conhecer melhor a história e a visão dos indígenas.

Finalmente, trata-se de um livro pequeno, mas repleto de mensagens poderosas. Não se trata de um livro acadêmico: são textos políticos de intelectuais e ativistas indígenas, com palavras fortes sobre a dura realidade que vivem, mas que nos dão ânimo e nos inspiram a acreditar que existem, sim, caminhos possíveis para a descolonização. O livro recebeu algumas críticas da parte de indígenas que vivem nas cidades. Infelizmente, por falta de espaço, não é possível retomá-las aqui. Com essa breve e modesta apresentação do livro, fica o convite para sua leitura e o desejo de que mais livros como este sejam produzidos.

Notas

1 Turtle Island ou Ilha da Tartaruga é um nome tradicional que os povos indígenas do Norte usam para se referir à Terra ou à América do Norte. O nome é baseado em uma história de criação comum aos povos indígenas da América do Norte. O termo se tornou popular entre os ativistas indígenas e não indígenas para os quais seu uso deve ajudar a compreender a América do Norte e a mudar as concepções sobre o continente.

2 O livro está disponível gratuitamente em e-book e os autores podem ser ouvidos lendo seus textos em Podcasts no website da Federation of Post-Secondary Educators of BC (FPSE) (fpse.ca/decolonizationmanual).

3 “Da desapropriação à dependência” e “A luta popular: Defensores da Terra e Idle No More” (tradução livre). Idle No More ou “Ociosos nunca mais” é o nome de um movimento de protesto indígena fundado por quatro mulheres em 2012, no Canadá.

4 Resurgence é um conceito complexo elaborado por Taiaiake Alfred. Optamos por não traduzi-lo para não incorrer em algum tipo de reducionismo ao aproximá-lo da palavra portuguesa “ressurgimento”.

5 Por falta de espaço, não poderei apresentar aqui os autores indígenas como realmente mereceriam ser apresentados. Para aqueles que tiverem interesse, no final de cada capítulo há uma minibiografia desses autores, com algumas de suas publicações e prêmios recebidos. 6 É tudo sobre a terra (tradução livre).

Referências

ALFRED, Taiaiake. It’s All about the Land. In: McFARLANE, Peter; SCHABUS, Nicole (eds.). Whose land Is It anyway: a manual for decolonization. Vancouver: FPSE, 2017. p. 10-13.

JACOBS, Beverly. Decolonizing the Violence against Indigenous Women. In: McFARLANE, Peter; SCHABUS, Nicole (eds.). Whose land Is It anyway: a manual for decolonization. Vancouver: FPSE, 2017. p. 47-51.

LABOUCAN-MASSIMO, Melina. Lessons from Wesahkecahk. In: McFARLANE, Peter; SCHABUS, Nicole (eds.). Whose land Is It anyway: a manual for decolonization. Vancouver: FPSE, 2017. p. 36-41.

MANUEL, kanahus. Decolonization: The Frontline Struggle. In: McFARLANE, Peter; SCHABUS, Nicole (eds.). Whose land Is It anyway: a manual for decolonization. Vancouver: FPSE, 2017. p. 42-46.

PASTERNAK, Shiri. Blockade: A Meeting Place of Law. In: McFARLANE, Peter; SCHABUS, Nicole (eds.). Whose land Is It anyway: a manual for decolonization. Vancouver: FPSE, 2017. p. 32-35.


Resenhista

Ana Catarina Zema – Pós-doutora em Ciências Políticas pela Université Laval. Doutora em História Social pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: ana.zema@gmail.com


Referências desta Resenha

MCFARLANE, Peter; SCHABUS, Nicole (Eds.). Whose land Is It anyway? a manual for decolonization. Vancouver: FPSE, 2017. Resenha de: ZEMA, Ana Catarina. PerCursos. Florianópolis, v. 22, n. 48, p. 375 – 382, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

Recent Posts

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.1, 2020.

Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.2, 2020.

Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.12, n.03, 2023.

Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…

2 meses ago

História da Historiografia. Ouro Preto, v.16, n. 42, 2023.

Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…

2 meses ago

Sínteses e identidades da UFS

Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…

2 meses ago

História & Ensino. Londrina, v.29, n.1, 2023.

Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…

2 meses ago

This website uses cookies.