Where caciques and mapmakers met: border making in eighteenth-century South America | Jeffrey Alan Erbig Júnior
John Fea, Lucy Barnhouse e Jeffrey Alan Erbig Júnior | Imagem: Current
Bons livros, nas ciências humanas ou na literatura, são aqueles que fisgam o leitor com personagens ou situações paradoxais. Assim faz Where caciques and mapmakers met: border making in eighteenth-century South America. Em cinco capítulos originados de um périplo de dez anos de pesquisas por 27 arquivos e sete países, Jeffrey Erbig Jr. mostra como o processo de territorialização dos Estados ibéricos na fronteira luso-platina da América ocorreu em estreita dependência e subordinação às relações e permissões dos grupos indígenas locais autônomos.
Nos últimos vinte anos várias têm sido as contribuições para a discussão de processos como esse (Guy, Sheridan, 1998; Adelman, Aron; 1999; Gil, 2007; Garcia, 2007; Herzog, 2015; Prado, 2009; Lennox, 2017) e o livro de Erbig Jr., atualmente professor no Departamento de Estudos Latinos e Latino-americanos da Universidade da Califórnia,1 soma novos inquéritos e respostas a essa literatura.
Esse é um livro de relevo para a história dos “países indígenas sem índios” (Basini, 2015), por desconstruir narrativas e rótulos da dominação ou desaparecimento desses povos. Geógrafos e historiadores da cartografia também encontram nessa obra respostas para questões sobre imaginação geográfica e processo de mapeamento. Na história da cartografia em especial o autor articula processo de mapeamento e etnicidades.
Ambientada na fronteira luso-hispânica do Rio da Prata, a pesquisa de Erbig Jr. investigou a formação dessa região entre a execução dos tratados de limites de Madrid (1750) e de Santo Ildefonso (1777) e as guerras regionais de independência. O autor fez uso de variada documentação e através da ferramenta Sistema de Informação Geográfica (GIS) enfrentou os limites de visualização da movimentação de grupos indígenas na região nas fontes escritas projetando-a nos mapas.
A história indígena no Brasil, embora já tenha consolidado o reconhecimento da agência desse segmento, ainda é predominantemente abordada pelo prisma das missões e da política do Diretório. Where mapmakers meet optou por focalizar os índios autônomos organizados em tolderías e suas relações com mapeadores das comissões demarcatórias de limites, funcionários coloniais, missionários, índios missionados, peões e desertores. Comunidades indígenas com esse perfil de autonomia foram anteriormente investigadas na formação da fronteira do Rio Grande (Garcia, 2007).
As tolderías, como abordado no capítulo 1, eram um tipo de assentamento indígena itinerante formado por barracas (toldos) sob as quais se reuniam vários grupos étnicos, como charruas, minuanos, bohaes, guenoas, yaros. Mas esses toldos eram também um tipo de organização social baseada em laços de parentesco, chefiada por um cacique, movida por atividades econômicas criatórias, fiscais e com poder de controle das principais vias de acesso ao interior do território, local visado pelas comissões demarcadoras dos tratados.
Essa posição vantajosa das tolderías em territórios de soberania em aberto forçou mapeadores, colonos portugueses, hispânicos, peões, avulsos, desertores, jesuítas ou funcionários régios a nutrirem boas relações com essas organizações. Diante do “arquipélago de povoações e tolderías” coube aos Estados Monárquicos apenas projetar a sua territorialização em um espaço de proeminência étnica, como sugere o título do capítulo 2, através de narrativas validadoras da violência empregada pelo Estado contra as comunidades indígenas autônomas para desalojá-las de suas terras.
O autor explica que no século XVI o direito dos povos indígenas era admitido por teólogos e juristas. Entre os séculos XVII e XVIII a tendência, entretanto, foi de os Estados Monárquicos reconfigurarem o discurso do direito de posse pelos argumentos do uso, exploração, mapeamento e confecção de mapas. Uma das principais características da organização social das tolderías, a mobilidade, foi argumento para contestar o direito dos indígenas autônomos de reclamar terras e justificou o avanço do Estado.
O capítulo três focaliza o contexto de encontro entre as tolderías e os mapeadores das comissões demarcatórias dos tratados diplomáticos. Para estas o maior desafio foi menos a topografia do terreno, mas construir relações com os indígenas e lidar com seu modo de existir soberano, praticante de uma economia de tributar viajantes, associando-se ou entrando em conflito com as autoridades coloniais ou com grupos indígenas missionados, manejando a realidade de acordo com as oportunidades em jogo. Como argumenta o autor, essas contradições não aparecem nos mapas dos cartógrafos, pois esses documentos têm o objetivo de imaginar e apresentar uma fronteira legal, estável, de etnias classificadas e enquadradas em uma agenda colonial incorporadora dos povos indígenas.
A demarcação das fronteiras teria desencadeado uma mudança da narrativa etnográfica do período anterior aos tratados. Padres e frades jesuítas admitiam a existência das tolderías como parceiros comerciais ou potenciais conversos. Os demarcadores hispânicos instauraram uma outra narrativa, na qual as tolderías tornavam-se obstáculo para o ordenamento territorial. Esses funcionários régios também implantaram nova maneira de ler e ver o território através de diários, relatos, relações e mapas de profissionais.
Essa nova narrativa manuscrito-visual do território foi produzida para audiências institucionais de servidores régios no Reino ou na colônia e validaria um novo modelo de visualização da fronteira legal nos desenhos, sem as tolderías, mencionadas apenas nos escritos. Esse tipo de imaginação das fronteiras ibero-americanas interferiu nas relações interétnicas e agudizou os conflitos, pois como precisamente concluiu esse capítulo, “pensamento fronteiriço engendrou práticas fronteiriças” (Erbig Jr., 2020, p. 106).2
O capítulo 4 é um bom exemplo do quão distantes estão imagem e soberania de Estado nos textos dos tratados interimperiais e no espaço regional, onde vigora uma realidade de “soberanias simultâneas”. Junto às iniciativas de ambas as Coroas ibéricas, de instalar novos estabelecimentos coloniais como estratégia para garantir controle territorial, as fronteiras étnicas persistiram e impediram a venda de títulos de terras, depreciaram seu valor, o comércio legal e ilegal continuou sendo praticado e as tensas associações com peões e colonos continuaram.
O autor atribui percepção aos portugueses do alto custo da inimizade com os caciques e das vantajosas soluções pelos pactos. Charruas e minuanos eram grandes parceiros comerciais, valiosos informantes sobre as movimentações militares dos espanhóis, trabalhadores sazonais. Logo, a operacionalidade da fronteira dependia da capacidade de manejar relações com as soberanias indígenas regionais. Diante da influência da geografia sobre as ações e movimentações dos povos indígenas, o autor conclui ser mais importante para os povos indígenas autônomos as condições oferecidas pelo espaço ocupado do que a filiação étnica.
O quinto capítulo procura responder a um diagnóstico feito pelo autor: o desaparecimento espacial como narrativa colonial. O desaparecimento das tolderías das fontes teria coincidido com o processo discursivo inaugurado pelas comissões demarcatórias dos tratados de Madrid e de Santo Ildefonso e teve relação com as guerras regionais de independência e a escravização promovida primordialmente por espanhóis, com a fuga para outras regiões e sua incorporação aos ranchos e povoamentos coloniais, levando os comissários a classificar os indígenas das tolderías apenas como desajustados do sistema.
Como a maioria das tolderías havia construído sua sobrevivência vinculada às territorialidades limítrofes, o fim das disputas geopolíticas entre impérios, no início do século XIX, inviabilizou a continuidade da existência dessas formas de organização social. Conforme identificações étnicas deixam de ser significantes ou necessárias para os atores coloniais, as tolderías desapareceram dos registros e começaram a ser empregados termos gerais para identificar esses grupos.
Mas esse desfecho da formação territorial e das relações interétnicas conferido pelo capítulo 5 deixa interrogações. Como os agentes sociais tendem a recompor as suas relações, estratégias e alianças frente às mudanças históricas, que outras oportunidades de negociação podem ter sido abertas com a formação das fronteiras nacionais? Essa é uma lacuna deixada pelo autor.
Tal lacuna pode ser explicada pela influência em sua análise do modelo de abordagem que visualiza oportunidades para os grupos indígenas em grande medida no processo de formação das fronteiras e não tanto quando os impérios solucionaram seus atritos e instituíram seus limites (Adelman, Aron, 1999). Mas quando espaços fronteiriços deixam de ser arena de atritos, nem que seja apenas entre grupos locais e sem escala internacional?
Um ponto controverso na metodologia de Erbig Jr. é a justificativa para a adoção do termo tolderías ou os nomes dos caciques como “meio de identificação” (2020, p. 9) dos grupos indígenas autônomos. Segundo ele, os rótulos étnicos – etnônimos – variaram de acordo com a localidade, mudaram ao longo do tempo, eram uniformizadores da diversidade étnica e não correspondiam à autoidentificação dos próprios índios (p. 9).
Não é de hoje que a antropologia e a historiografia pelejam com a dúvida sobre que terminologia adotar para se referir aos povos indígenas (Monteiro, 2001, p. 54-78; Oliveto, 2010; Nacuzzi, Lucaioli, 2017). Etnônimos são rótulos étnicos, expressam classificações dos europeus e agentes coloniais para definir sua política em relação ao mosaico de povos, ou seja, com quem praticar alianças, quem incorporar, escravizar, exterminar. Mas, como também já foi ponderado, etnônimos podem ser aceitos e utilizados pelos grupos indígenas de maneira funcional em certos contextos (Garcia, 2007, p. 23). Muitos deles vêm mesmo sendo reabilitados de maneira crítica por comunidades indígenas contemporâneas e utilizados na sua luta por direitos.3
Um etnônimo é uma ferramenta e solução metodológica por algumas razões. Uma delas é o dado de permitir a observação das circunstâncias de surgimento de uma etnia, as relações e os projetos em jogo, as ideologias e as relações de força de um determinado fenômeno ou processo histórico (Oliveto, 2010). É também uma porta de acesso para a densa floresta interdisciplinar da antropologia, etnologia e arqueologia, que reúne literatura e dados incontornáveis para a adoção do prisma indígena nos inquéritos.
Em outro lugar Erbig Jr. defendeu a necessidade de simultânea historicização e substituição dos etnônimos por terminologias evocativas de organização social tais como tolderías, cacicados ou redes de parentesco (Erbig Jr., Latini, 2019, p. 266), relativizando suas opiniões frente a adeptos do seu descarte ou substituição por outras classificações. Entretanto, propor nomes de caciques para identificar modos de funcionamento e organização social coletivos como os indígenas soa individualizador. A produção dos cursos de licenciatura, bacharelado e pós-graduação interculturais indígenas no Brasil poderá ser uma grande aliada dos historiadores para enfrentar dilemas como esses das terminologias.
Assim, para uma solução metodológica equilibrada, o ideal parece ser historicizar os etnônimos e mantê-los criticamente e como um farol para orientar o tão necessário diálogo interdisciplinar nos meios acadêmicos e escolares de “países indígenas sem índios” e desrotinizar na sociedade civil e nos meios governantes omissões, estereótipos e invisibilidades do presente.
Notas
1 Ver: https://www.jeffreyerbig.com.
2 “Border thinking engendered border practices” (tradução livre).
3 Ver: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/quem-sao-os-xokleng-os-indigenas-que-podem-mudar-a-trajetoria-juridica-das-demarcacoes. Acesso em: 1 fev. 2022.
Referências
ADELMAN, Jeremy; ARON, Stephen. From borderlands to borders: empire, nation-states, and the peoples in between in North American history. The American Historical Review (Washington, DC). v. 104, n. 3, p. 814-841, 1999.
BASINI, José. Índios num país sem índios: a estética do desaparecimento: um estudo sobre imagens índias e versões étnicas Manaus: Travessia; Fapeam, 2015.
ERBIG JR, Jeffrey Alan. Where caciques and mapmakers met: border making in eighteenth-century South America Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.
ERBIG JR ., Jeffrey; LATINI, Sergio. Across archival limits: colonial records, changing ethnonyms, and geographies of knowledge. Ethnohistory(Durhan, NC). v. 66, n. 2, p. 249-273, 2019.
GARCIA, Elisa Fruhauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo Sul da América portuguesa Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007.
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LENNOX, Jeffers. Homelands and Empires: indigenous spaces, imperial fictions, and competition for territory in northeastern North America, 1690-1763 Toronto: University of Toronto Press, 2017.
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Resenhista
Denise A. S. de Moura – Professora do Departamento de História. Universidade Estadual Paulista (Unesp). Franca (SP), Brasil. E-mail: denise.moura@unesp.br ORCID: http://orcid.com/0000-0002-5104-6485
Referências desta Resenha
ERBIG JUNIOR, Jeffrey Alan. Where caciques and mapmakers met: border making in eighteenth-century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020. Resenha de: MOURA, Denise A. S. de. Mapeamento e relações interétnicas na formação das fronteiras. Tempo. Niterói, v.28, n. 1, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]