O ano de 1989 é considerado o ano do fim da Guerra Fria, devido ao colapso do mundo socialista, simbolizado pela queda do muro de Berlim, seguida da dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1991. Continuaram, no entanto, os debates a respeito desse fenômeno político singular, que perdurou por mais de meio século. O colapso do comunismo está permitindo aos historiadores do ocidente ter acesso aos arquivos orientais pela primeira vez. O conceituado historiador e especialista em Guerra Fria, John Lewis Gaddis, procura dialogar com essas fontes em sua mais recente obra: We Now Know. Ele procura unir uma sólida bibliografia no campo à pesquisa em novas fontes. Sua proposta seria a de apresentar uma nova história da Guerra Fria.
Segundo Gaddis, nós saberíamos agora que os países democráticos pensavam de forma mais realista do que a URSS e seus satélites. Stalin acreditava que o mundo capitalista jamais conseguiria destruir a revolução russa. Mao iludiu-se em acreditar que a URSS estaria ao lado da recém criada República Popular da China. Kruschev, ao instalar os mísseis em Cuba, acreditava estar assegurando a disseminação do comunismo pela América Latina. Essas posições, mais próximas do romantismo revolucionário do que de uma realpolitick, dificilmente seriam adotadas pelos regimes democráticos, dotados de maior capacidade de autocorreção. A URSS, seus satélites e a China, segundo Gaddis, seriam semelhantes às monarquias absolutas.
A partir da análise dos recém abertos arquivos do ex-bloco comunista, Gaddis pretende escrever uma nova história da Guerra Fria. Ele nos diz que a velha história da Guerra Fria muitas vezes apresentava o conflito bipolar como um resquício do Antigo Regime europeu, um choque clássico entre duas potências. Essa velha história baseava-se em análises sobre a capacidade material e militar das potências, negligenciando a ideologia de ambas. Nós agora saberíamos que os acontecimentos de 1989-91 se relacionaram diretamente à desilusão com a organização política e econômica derivada das idéias marxista-leninistas. A história da Guerra Fria, para Gaddis, seria o embate entre o expansionismo marxista-russo e o democrático-ocidental.
Gaddis procura mostrar que as práticas democráticas americanas foram as grandes responsáveis pela contenção do expansionismo soviético. Ele se mostra horrorizado frente ao sistema autoritário soviético, principalmente no período de Stalin. O autor, no entanto, não demonstra a mesma indignação com respeito aos regimes autoritários, em particular na América Latina, e à série de golpes de Estado financiados e planejados pelos Estados Unidos. Ele faz uma distinção entre autoritarismo benigno e maligno (p. 35). O regime de Somoza na Nicarágua e os métodos autoritários do General Douglas MacArthur durante a ocupação do Japão seriam benignos. No caso de MacArthur, suas práticas autoritárias levaram o Japão à democracia. O autoritarismo maligno se assemelharia ao autoritarismo da Alemanha e da URSS. O termo autoritarismo geralmente é usado para descrever uma prática política ou uma defesa filosófica da subordinação pela força dos direitos dos indivíduos em proveito do Estado. Segundo Noberto Bobbio, “nesse contexto, a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos são reduzidos à expressão mínima e as instituições destinadas a representar a autoridade de baixo pra cima ou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas”. Sua distinção a respeito do autoritarismo se mostraria equivocada, pois um regime autoritário suprime os valores individuais, essenciais à prática democrática.
No capítulo referente ao que Gaddis denomina terceiro mundo, incluindo-se aí a América Latina, o autor passa rapidamente por alguns pontos importantes sem maior aprofundamento, talvez para excluir-se de um debate em uma área onde as ações coercivas norte-americanas se fizeram mais presentes. A Guatemala em 1954 sofreu um golpe de Estado articulado pelos EUA para destituir o Presidente Jacobo Arbenz, devido a uma pretensa contaminação comunista sofrida pelo governo guatemalteca. Utilizando-se dos principais autores sobre a questão, Piero Gleijeses, Richard Immerman e Stephen Schlesinger, Gaddis nos diz que as novas fontes não indicariam nenhuma forte relação da URSS com a Guatemala. Contudo, Gaddis não afirma, ao contrário dos autores que cita, que o governo da Guatemala tentou provar de todas as maneiras que o seu não era um país dominado pelo comunismo; que os Estados Unidos atuaram na Décima Conferência da OEA com o único intuito de condenar os países envolvidos pelo comunismo, de forma a preparar uma possível intervenção na Guatemala; e que, segundo Gleijesess, os militares se omitiram durante o golpe por medo de uma ação militar americana aparentemente possível, vinculada pela imprensa aos apelos de congressistas norte-americanos e do próprio embaixador americano na Guatemala.
A afirmação de posições tão tradicionais nos leva a prestar mais atenção sobre a metodologia do trabalho de Gaddis. Sua proposta de trabalhar com os arquivos recém abertos não se realiza de modo satisfatório. Em seu prefácio, Gaddis nos explica que não trabalhou diretamente com as novas fontes, mas com os documentos, em língua inglesa, publicados pelo Cold War International History Project CWIHP no Woodrow Wilson International Center for Scholars de Washington. A questão sobre a divisão ou não da Alemanha após a Segunda Guerra é um bom exemplo desse problema. Gaddis afirma que “its clear now that Stalin never wanted a separate East German state” (p. 127), o que não encontra ressonância nos documentos recém-revelados, provenientes de Moscou e Berlim, divulgados, também, pelo mesmo CWIHP. Esses documentos revelam que Stalin parecia decidido a manter a questão em aberto. Além disso, na maioria das vezes, Gaddis sustenta seus argumentos principalmente através do uso de fontes secundárias. Sua metodologia não parece corresponder à proposta e ao título de sua obra.
Gaddis, ao invés de lançar novas propostas e categorias de análise, acaba por reforçar posições conservadoras. No campo historiográfico, ele parece continuar seu debate contra os chamados revisionistas, e ligar-se cada vez mais aos tradicionalistas. John Lewis Gaddis, historiador renomado, parece ter feito uma arriscada e prematura análise das novas fontes. A maioria das fontes, proveniente das ex-repúblicas socialistas e da China ainda está sob a guarda do Estado, classificada como secreta ou confidencial. O que pretende ser uma obra conclusiva ou aglutinadora de posições, parece estar fadada a provocar tantos questionamentos e acalorados debates quanto seu objeto de estudo, a Guerra Fria.
Resenhista
Roberto Baptista Júnior
Referências desta Resenha
GADDIS, John Lewis. We Now Know: Rethinking Cold War History. New York: Oxford University Press, 1997. Resenha de: BAPTISTA JÚNIOR, Roberto. Revista Brasileira de Política Internacional, v.42, n.1, 1999. Acessar publicação original [DR]
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