A historiografia das rebeldias no campo brasileiro nas primeiras décadas republicanas não tem repercutido como deveria no mundo de língua hispânica, especialmente por conta das proximidades históricas e sociais entre as experiências rurais na América Latina. De certa forma, o livro de Andreas Doeswijk, professor da cátedra de História Americana (séculos XIX e XX), na Universidade de Comahue, na província de Neuquén (Argentina), pode suprir essa insuficiência e contribuir para o avanço do intercâmbio entre as historiografias nacionais latino-americanas, como atestam as aproximações por ele sugeridas entre as obras de Euclides da Cunha e Domingo Faustino Sarmiento para se pensar as respectivas nações do Cone Sul.
No presente livro, cujo título inspira-se no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, se estabelece a opção teórica pelo diálogo entre história e literatura para pensar os sertões brasileiros em suas rebeldias sociais, como as Guerras de Canudos e do Contestado e o Cangaço. Segundo ele, essa premissa é válida pelo fato do romance histórico recriar o clima da época e incentivar abordagens propriamente historiográficas.
Publicado em 2016, dentro da Biblioteca Militante da Editora Razão e Revolução, esse livro busca articular a construção de uma cultura socialista com a tradição da rebeldia camponesa na América Latina, numa clara inspiração no marxismo de E. P. Thompson. Nesse sentido, os movimentos camponeses do passado seriam situados como precursores de uma tradição revolucionária na historiografia marxista (SILVA, 1996: p. 221), que desembocaria na luta contemporânea do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Mesmo que não tivessem objetivos claramente definidos, demonstrando a incapacidade de romper, de modo radical, com o sistema social dominante, os bandos de cangaceiros e/ou sociorreligiosos representaram um momento de enfrentamento e resistência ao poder do latifúndio.
Assim, o objetivo central do livro é compreender os “homens e mulheres que lutaram para mudar o sistema ou, ao menos, melhorar suas condições de vida e o fizeram em seus próprios termos e com meios materiais e representações sociais de que dispunham” (DOESWIJK, 2016: p. 28).
No primeiro capítulo, Doeswijk coloca Canudos ou Belo Monte como uma encruzilhada de caminhos, utilizando-se do diálogo intertextual entre a narrativa literária e historiográfica. A escolha bibliográfica de análise concentrou-se nas matrizes discursivas sobre a Guerra de Canudos: a tradição euclidiana e a de viés marxista.
Entre os autores escolhidos, é perceptível a continuidade da interpretação messiânica do fenômeno realizada por Euclides da Cunha nos textos de romancistas, como Mario Vargas Llosa, e de historiadores, como Robert Levine. Para o historiador, a obra Guerra do Fim do Mundo (1981) é paradigmática da intertextualidade com Os Sertões (1902), mas deve ser lida com o olhar contemporâneo da teoria dos dois demônios, “segundo a qual guerrilheiros e forças armadas são de modo equânime responsabilizados pela militarização da sociedade latino-americana” (DOESWIJK, 2016: p. 50).
A associação entre as obras de Euclides da Cunha e Domingo Faustino Sarmiento é reveladora de que os protagonistas em seus livros são o “sertão” e o “deserto”, transformados pela ação dos intelectuais missionários da civilização. Entretanto, diferentemente de Sarmiento, que não duvida de que a barbárie rural tem que ser substituída pela civilização das cidades, Euclides tem uma postura ambígua diante do sertanejo, valorizando o vaqueiro com relação ao gaúcho dos pampas, pela força e o sentido prático e resignado da vida, mas que o único trabalho legítimo do sertanejo era o das fazendas. “Sair da estrutura latifundiária era ingressar na ociosidade, na marginalidade e na vagabundagem, que atentavam contra o progresso e fomentavam a miséria” (DOESWIJK, 2016: p. 67).
As interpretações de Robert Levine e Marco Antônio Villa reafirmaram o papel central da religião na experiência de Belo Monte, discordando entre si da abordagem na questão agrária. Próximo da leitura euclidiana de choque cultural entre litoral e sertão, Levine quase não dedica atenção à cultura material, centrando-se na emergência do movimento milenarista que buscava restituir o trono ao legítimo herdeiro dos Braganças. Já Villa não aceita a interpretação messiânica, afastando-se da linha interpretativa marxista de Rui Facó, Edmundo Moniz e José de Souza Martins, ao não considerar a religião como “falsa consciência” dos camponeses e muito menos expressão de um socialismo utópico. Em sua visão, Canudos é “uma utopia agrária, amalgamada pela ideologia religiosa” (DOESWIJK, 2016: p. 77).
Simpático à interpretação de Villa, o historiador define que, em Belo Monte, “terra e religião passaram a formar parte de um todo coerente, um mundo com sentido que estavam dispostos a defender” (DOESWIJK, 2016: p. 84-85). Era uma utopia agrária sertaneja e não uma utopia socialista.
No segundo capítulo, Doeswijk se debruça sobre a Guerra do Contestado, que se desenvolveu entre outubro de 1912 e janeiro de 1916, efetuando uma revisão sobre a ideia de guerra, pois foi uma luta desigual entre pobres e ricos, “uma confrontação entre o capitalismo emergente e concepções tradicionais de vida fundamentadas em relações de reciprocidade”. Para ele, as cidades santas tampouco estavam localizadas na região contestada entre os estados de Santa Catarina e Paraná, pois se concentravam na “região catarinense de Serra Acima, a oeste do vale do Rio do Peixe, e somente parcialmente no território em litígio entre os estados vizinhos” (DOESWIJK, 2016: p. 93 e 94).
A pouca atenção da historiografia brasileira sobre esse movimento diferentemente da Guerra de Canudos foi demonstrada, de modo cabal, pelo autor, destacando os trabalhos pioneiros de Maurício Vinhas de Queiróz e Duglas Teixeira Monteiro e mais recentemente o de Paulo Pinheiro Machado como fundamentais para a interpretação deste que foi um importante episódio da história da luta de classes no Brasil. Para ele, o massacre dos camponeses de Serra Acima possibilita-nos “compreender como funcionavam os mecanismos de economia política em uma sociedade de políticos liberais, coronéis autocráticos e companhias multinacionais que se erigiam em enclaves autônomos nas terras adquiridas com base na corrupção com o auxílio de advogados brasileiros próximos com as políticas dos Estados” (DOESWIJK, 2016: p. 100-101).
Diferentemente da maioria dos estudiosos, o historiador intenta compreender a passagem de um movimento religioso e místico na primeira fase para um movimento de ruptura com a ordem vigente, quando, na última fase, os rebeldes assaltavam as fazendas dos coronéis. Para ele, o massacre de Taquaruçu, em fevereiro de 1914, fez com o movimento se tornasse “áspero, intransigente e revolucionário”, transformandose em um mais popular e mais classista. Desse modo, o “Contestado, por seu rechaço às alianças com setores ligados ao poder e por sua vocação de impor seu projeto de força, foi mais revolucionário que outros movimentos similares” (DOESWIJK, 2016: p. 116 e 131).
Também Doeswijk critica interpretações que se basearam na memória coletiva da região, afirmando que os testemunhos encobrem mais do que revelam, pois a tendência geral é que “os vencidos, para salvar sua pele, repetem em seus discursos o formato da história do vencedor” (DOESWIJK, 2016: p. 140).
No último capítulo, destaca o fenômeno social do cangaço, centrando-se na explicação da decadência econômica regional do complexo produtivo do açúcar, do qual a pecuária era subsidiária, agravada pelas secas periódicas nos sertões nordestinos que quebravam “o compromisso tácito de coexistência entre o homem do sertão e o cangaceiro, inclusive pela retirada às cidades dos senhores da terra” (DOESWIJK, 2016: p. 149).
Tomando a figura de Lampião, o historiador propõe que os cangaceiros não demonstravam interesse em transformar a sociedade sertaneja e eram “tão conservadores quanto à fração política a qual, conjunturalmente, combatiam”. Nesse sentido, o banditismo rural poucas vezes tem características reformistas ou de protesto social e o caso de Lampião é emblemático, por não tocar nas formas de dominação social vigente à sua época. Portanto, o cangaço era uma “parte intrínseca da estrutura político-social de regiões do interior dominadas – até a década de 30 – por clãs de latifundiários” (DOESWIJK, 2016: p. 151 e 153).
Próximo das reflexões de Maria Isaura Pereira de Queiróz, o autor critica a heroificação do cangaceiro a partir dos anos 1950 na literatura de cordel, no cinema e na historiografia, incluindo escritores ligados ao Partido Comunista Brasileiro, como Rui Facó. No mesmo diapasão, para ele, a inserção de mulheres nos bandos não representou a humanização dos cangaceiros, pois se mantinha a violência de gênero como parte das práticas cotidianas da vida nos sertões, como é caso dos assassinatos de Lídia, mulher de Zé Baiano.
Desconstruindo o mito do cangaço, Doeswijk afirma que o movimento foi uma rebelião típica do lumpemproletariado, de base egocêntrica, marginal e não de transformação social; era, objetivamente, uma forma de fugir da miséria e das perseguições dos clãs inimigos. Sua reconstrução memorial a partir dos anos 1950 sofreu uma metamorfose, reveladora da admiração de artistas e intelectuais da força de lutar contra as adversidades extremas e brutais, prenunciando a invenção de uma tradição revolucionária.
Como podemos observar o historiador realizou uma incursão nos movimentos sociais e religiosos brasileiros, ancorada em bibliografia representativa e atualizada sobre o assunto. No livro percebe-se uma maior atenção ao movimento camponês de Serra Acima, mais conhecido como Contestado, estabelecendo uma leitura quase revolucionária da fase final da guerra, quando as lideranças radicalizaram a expropriação do gado nas fazendas dos coronéis. Entretanto, com relação à Belo Monte, ao enfatizar a discussão sobre messianismo e/ou milenarismo, o autor ficou preso à “gaiola de ouro” da interpretação de Euclides da Cunha, não explorando o olhar interno dos conselheiristas estabelecido por José Calasans, cuja obra foi citada, mas não devidamente trabalhada. Em seu livro clássico O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro: Contribuição ao Estudo da Campanha de Canudos (1950), baseado na poesia popular e nos depoimentos orais de sobreviventes e descendentes conselheiristas. Calasans reiterou que os “vencidos” também têm um lugar na História, quando, por meio de biografias dos jagunços, resgatou os conselheiristas como sujeitos históricos. Diferentemente do que sugeriu o autor, penso que a melhor maneira de lidar com as armadilhas da memória de Canudos e do cangaço é “ver qual o papel da memória para a história é observar a memória na história” (FRENTRESS & WICKMAN, 1994: p. 21), na medida em que eles não se tornaram história, são ainda memória, campo de vivência e luta pelo presente e pelo futuro da República.
Essas singelas observações visam apenas estabelecer um intercâmbio historiográfico entre as pesquisas desenvolvidas nas universidades brasileiras e latino-americanas e o livro de Doeswijk pode ser, sem dúvida, um excelente ponto de partida.
Referências
CALASANS, José. O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro: Contribuição ao Estudo da Campanha de Canudos. Salvador: EDUFBA/Centro de Estudos Baianos, 2002 (Edição fac-similada).
DOESWIJK, Andreas L. Vivir es muy peligroso: Mesiânicos y cangaceiros em los sertones brasileños. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: RyR, 2016.
FENTRESS, James e WICKMAN, Chris. Memória Social. Lisboa: Teorema, 1994.
HOBSBAWM, Eric. Bandidos. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.
SILVA, José Maria de Oliveira. Rever Canudos: Historicidade e Religiosidade Popular (1940-1995). São Paulo, FFLCH/USP, 1996 (Tese de doutorado).
Antônio Fernando de Araújo Sá – Doutor em História pela Universidade de Brasília. Professor Titular do Departamento de História/ Programa de Pós-Graduação em História (UFS). Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (CNPq/UFS). E-mail: afsa@ufs.br
DOESWIJK, Andreas L. Vivir es muy peligroso: Mesiânicos y cangaceiros em los sertones brasileños. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: RyR, 2016. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Viver é muito perigoso: Messiânicos e cangaceiros nos sertões brasileiros (1890-1940). Ponta de Lança, São Cristóvão, v.12, n.22, p.224-229, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]
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