Viver nos tempos da Inquisição | Anita Waingort Novinsky

No dia 8 de dezembro de 2018, a historiadora emérita da Universidade de São Paulo (USP), Anita Waingort Novinsky publicou o seu mais recente livro Viver nos tempos da Inquisição, Ed. Perspectiva, 376 págs., na Livraria da Vila – São Paulo. A obra é uma compilação de textos ao longo de quatro décadas de pesquisa acadêmica, apresentados em eventos, congressos nacionais e internacionais, anais e publicações no Brasil e no Exterior, alguns inéditos, outros de difícil acesso ao público brasileiro.1 Considerada uma das pioneiras sobre o tema da Inquisição e cristãos-novos do Brasil Colônia, a autora faz reflexões acerca da historiografia inquisitorial, antissemitismo, cristãos-novos (judeus) do Brasil colonial, sebastianismo, Pe. Vieira e messianismo judaico, entre tantos outros temas relevantes para a História do Brasil e do fenômeno marrano.2 Novinsky inicia o seu trabalho nos capítulos 1 e 2 com a “Crítica à historiografia inquisitorial” e relata a dificuldade que os primeiros historiadores tiveram para trabalhar com o tema. Parte significativa do arquivo da Inquisição permaneceu secreta até 1970. Os autores que exaustivamente pesquisaram os arquivos inquisitoriais “no século XIX foram Alexandre Herculano, João Lúcio de Azevedo e Joaquim Mendes dos Remédios, deixando-nos obras fundamentais sobre os cristãos-novos e a Inquisição.”3 Após a abertura desses arquivos, disponível ao público no Arquivo Nacional Torre Tombo (ANTT) e Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), defende Novinsky que a História do Brasil deverá ser “reavaliada e reinterpretada.” 4

Desse modo, Novinsky faz a crítica aos historiadores revisionistas que negam as atrocidades cometidas pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Há semelhanças, afirma a historiadora, no mundo contemporâneo, com o holocausto. Esse paralelo do mal Inquisição-Nazismo mais do que nunca traz maiores responsabilidades para a Ciência, “Como disse Bertold Brecht, o cientista tem responsabilidade com a verdade e com toda a humanidade.”5 Para colocar em prática essa metodologia, é preciso saber fazer a análise dos processos inquisitoriais em sua conjuntura política, econômica, religiosa e psicológica no espaço e no tempo. Na passagem que a autora destacou sobre António Vieira: “à semelhança de Galileu, Vieira abjurou a ‘sua’ verdade, negou sua cumplicidade com a heresia.”6 É essa a essência do pensamento de Vieira, também observado por Toby Green, em referência aos modos de atuar do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição: “se no Juiz há ódio, por mais justificada que seja a inocência do réu, nunca a sentença do juiz há de ser justa.”7

Há dois exemplos citados pela historiadora e que estão contidos nos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa (nº 24). Um “reconciliado” pela Inquisição, ao reencontrar um amigo, “espantado por vê-lo, lhe pergunta: ‘Oh! João, então como foi que saíste?’ Ao que João responde: ‘Ora! Como todos! Dizendo que era judeu!’”8 Noutra passagem, um cristão-novo pergunta a um inquisidor: “Então, senhor inquisidor, depois de matarem todos os cristãos-novos, o que vocês irão fazer? ‘Responde o inquisidor:’ Ora, dos velhos faremos logo novos”9 Em referência às origens da Inquisição na Espanha, respeitando o tempo histórico e o espaço geográfico, a obra do historiador Benzion Netanyahu é esclarecedora sobre as falsas delações. A afirmação de Netanyahu citada por Novinsky nos diz que: “Usando fontes não inquisitoriais […] as acusações apresentadas pelos reis católicos e por Torquemada ao papa, eram falsas.”10

Nessa linha de raciocínio, relevante observação acerca dos cristãos-novos do Brasil deverá ser feita em torno dos conceitos judéité e judaïsme. Albert Memmi, historiador da Argélia, foi quem introduziu o conceito de judéité “que designa uma existência da qual ‘não se pode escapar’ e que se antepõe ao conceito de judaïsme, que é um sistema de crenças.”11 A filósofa Hannah Arendt foi quem “assumiu para ela própria o conceito de judéité e rejeitou o de judaïsme, que é um sistema de crenças.”12 Essa condição os cristãos-novos assumiram, objetivamente e/ou subjetivamente, tanto em Portugal quanto no Brasil por aproximadamente três séculos. Sem serem judeus praticantes, judaïsme, mas identificados com a Lei de Moisés, “os cristãos-novos viviam uma condição da qual não podiam fugir. Quisessem ou não, eles eram considerados judeus e suspeitos, mesmo rejeitando seu sistema de crenças.”13 Portanto, a judéité era uma condicionante dos cristãos-novos, sem poderem, com isso, escapar a posteriori “do nazismo e do stalinismo.”14

Inevitável a comparação realizada por Michel Löwy, dessa condição dos cristãos-novos, com a obra O Processo, de Franz Kafka. Nesse paralelo Inquisição-Totalitarismo poder-se-á observar que o tribunal que julga Joseph K. é “imprevisível” e “infalível”, como o Tribunal do Santo Ofício, que também era “Santo” e “infalível”. “Joseph K. denuncia, indignado, a organização que só utiliza juízes estúpidos, mas que tem um impensável cortejo de auxiliares e agentes.”15 No capítulo 3, “Reflexões sobre o antissemitismo em Portugal”, Novinsky apresenta a engrenagem do Estado moderno que prende, julga e condena, sem razão, vítimas expiatórias. 16

No capítulo 12, “A sobrevivência dos judeus secretos”, a autora analisa o pensamento de Spinoza e sua crítica contra os fanatismos religiosos é imprescindível para compreendermos o mundo contemporâneo. Para Novinsky: “No Tratado Teológico – Político, Spinoza refere-se à questão da continuidade do povo judeu depois da perda do seu território e do início da sua dispersão.”17 Spinoza não apresenta explicações fenomenológicas acerca desse problema, “Não foi por interferência divina, é sim devido a fatores históricos, que os judeus se espalharam pelos quatro cantos do mundo.”18 A ideia de “salvação” não estava no além-cristão, metafísica, mas, sim, na política. “O salvador não é Deus, mas um homem, Moisés, e uma lei, a lei que desceu do Sinai.” 19

Sobre o fenômeno do “Sebastianismo, Vieira e o messianismo judaico”, capítulo 26, a autora analisa três tempos históricos: primeiro, o nascimento e divulgação das Trovas de Gonçalo Anes, o Bandarra, muito antes de dom Sebastião; segundo, o desaparecimento do rei dom Sebastião, e a anexação de Portugal à Espanha; por último, a Restauração e a luta de Portugal pela recuperação de sua independência nacional.20 Portanto, pode-se compreender o sentido sociológico desses fenômenos, sebastianismo e messianismo, em sua dialética, como fatos sociais, políticos e jurídicos.

Anita Novinsky destaca o papel desempenhado por Vieira no capítulo 27, “Um padre católico e sua luta por justiça – António Vieira”. Nessa parte, a autora observou a atuação política deste clérigo em defesa dos cristãos-novos. As ideias de Vieira, ao aproximar portugueses e judeus, por não ser possível distingui-los, concebiam uma Jerusalém Ibérica em Portugal. Desse modo, “ambos os povos e ambas as religiões poderiam ser unificados em um único território, que ele chamava de Império universal.”21 Perceber-se-á em Vieira que há uma profecia judaica “direcionada tanto para Israel quanto para Portugal. Em Vieira, as profecias portuguesas não eram rivais, mas complementares, e a missão de Portugal era ser uma continuidade de Israel.” 22

No tocante ao capítulo 28, “Machado de Assis, os judeus e a redenção do mundo”, Novinsky percebeu “um olhar judaico em Machado de Assis” com um sentido de perda para o povo judeu.23 Nesse poema machadiano, “não há nenhuma mensagem de esperança, em nenhum momento o autor sugere o fim do sofrimento do povo judeu.”24 Nessa obra, há a perda da esperança e prevalece refletida a “imagem da ruína e da fatalidade. Por fim, é o mal que vence. O sonho com a terra prometida se choca com a realidade implacável – a inquisição – que vem buscar o judeu no Brasil.” 25

Em síntese Viver nos tempos da Inquisição pode ser considerado um aviso, atenção, acerca do clima de ódio que vem ocorrendo no Brasil e no mundo nos dias hodiernos, o que faz essa obra ser de suma relevância para as discussões e futuras investigações em torno do Santo Ofício da Inquisição, do antissemitismo e da intolerância. Conhecer esse passado inquisitorial é se preparar para os tempos presentes e futuros. Pois, se a conversão ao catolicismo não garantiu direitos iguais ao cristão-novo, esse drama da conversão forçada é imprescindível para se compreender a cultura condicionada na Península Ibérica e no Novo Mundo. Novinsky denominou esse período de tempos de dissimulação e os seguidos regimes totalitários impõem a cultura do medo a toda população, tanto em Portugal quanto no Brasil, a encobrir-se. “Simulava-se o pensamento, os sentimentos, as idéias e fingia-se ser o que não era. Manipulava as palavras mudando-lhes o sentido.”26 Nessa obra, Novinsky apresentou a política antissemita e a perseguição aos judeus, conversos ou não, em sua longa duração. Com conotação política, o Estado moderno os transformou em párias das sucessivas sociedades, noutras palavras desterrados em sua própria terra. 27

Notas

1 O livro de Anita Novinsky Viver nos tempos da Inquisição contém 29 capítulos e um posfácio, impossíveis de serem analisados separadamente devido à delimitação do espaço. Portanto, buscamos compreender a obra em sua totalidade e optamos por apresentar alguns capítulos considerados mais relevantes.

2 Outros autores também considerados pioneiros acerca do tema são: LIPNER, Elias. Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Documentário, 1977; SIQUEIRA, Sonia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978; SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680). São Paulo: Pioneira, 1976.

3 NOVINSKY, Anita Waingort. Viver nos tempos da Inquisição. São Paulo: Perspectiva; 2018, p. 01; Sobre os autores que pesquisaram o fenômeno inquisitorial ver: HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Lisboa: Bertrand, 1852; AZEVEDO, João Lúcio de. História dos Christãos Novos portugueses: Lisboa; A. M. Teixeira, 1921; REMÉDIOS, Joaquim Mendes dos. Os judeus em Portugal. Coimbra: França Amado, 1895.

4 Idem.

5 NOVINSKY, Op. Cit., p. 3.

6 NOVINSKY, Op. Cit.., p. 4.

7 Cf. GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011; IN: NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., p. 4.

8 NOVINSKY, Op. Cit., p. 5.

9 NOVINSKY, Op. Cit., pp. 5-6.

10 NETANYAHU, Benzion. The origens of Inquisition in the fifteenth-century Spain. New York: Randon House, 1995. IN: NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., p. 6.

11 MEMMI, Albert. Portrait d’ um Juif. Paris: Gallimard, 1962; IN: NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., p. 9.

12 ARENDT, Hannah. The Jew as Pariah: Jewish identidy and Politics in Modern Age. New York: Growe, 1978; IN: NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., p. 9.

13 NOVINSKY, Op. Cit., p. 10.

14 Idem.

15 LÖWY, Michel. “De Mendel Beiliss, le juif paria, à Joseph K., la victime universelle: Une interpretation du Procès de Kafka”. IN: Tumultes: nº 21-22, nov. 2003, 2003, pp. 165-179 (Le Pária: Une Figure de la modernité); IN: NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., p. 12.

16 Cf. “Reflexões sobre o antissemitismo em Portugal”. IN: NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., pp. 25-41.

17 SPINOZA, Baruch. Obra Completa III: Tratado Teológico-Político. São Paulo; Perspectiva, 2014. IN: NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., p. 137.

18 Idem.

19 Ibidem, p. 142.

20 Cf. NOVINSKY, Op. Cit., pp. 303-4.

21 VIEIRA, António. Memorial a favor da Gente da Nação Hebreia. Obras Escolhidas IV: Obras Várias II. Lisboa: Sá da Costa, 1951. IN: NOVINSKY, Op. Cit., p.. 322.

22 NOVINSKY, Op. Cit., p. 322.

23 Cf. NOVINSKY, Anita Waingort. O olhar judaico em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Europa, 1990.

24 Cf. NOVINSKY, O olhar judaico em Machado de Assis, Op.; Cit.

25 NOVINSKY, Viver nos tempos da Inquisição, Op. Cit., p. 329.

26 NOVINSKY, Op. Cit., p. 360.

27 Expressão utilizada por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.


Resenhista

Anderson Lino – Doutor em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC); Pesquisador Associado junto ao Grupo de Pesquisa História e Memória de Judeus entre dois cataclismos (USP); Obras publicadas: LINO, Anderson. Bom Jesus da Cana Verde: conflitos e celebrações (Norte Velho – Paraná). Saarbrückem: Deutschland; NEA, 2015; LINO, Anderson. O auto-de-fé de António Ferreira: a dialética de um processo inquisitorial, Marília, LEVS/UNESP, ed. 16, novembro de 2015, pp. 174-195; LINO, Anderson. Sincretismo religioso judaico-cristão e greco-romano no Bom Jesus do SacroMonte Bracarense (Braga, Portugal). Lisboa, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, nº 21, 2018, pp. 27-39. E-mail: andersoncanaverde@gmail.com


Referências desta Resenha

NOVINSKY, Anita Waingort. Viver nos tempos da Inquisição. São Paulo: Perspectiva, 2018. Resenha de: LINO, Anderson. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 132-137, 2019. Acessar publicação original [DR]

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