Vila Rica em sátiras: produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732 – ROMEIRO (RBH)

O trabalho de interpretação documental é sempre um desafio para historiadores competentes, ainda mais quando envolve formas textuais e mídias peculiares. Adriana Romeiro está entre os mais talentosos pesquisadores dedicados à cultura política no Brasil da Época Moderna, com grande potencial de argumentação associado a uma bela escrita. Nesse livro que conta com a colaboração valorosa de Tiago C. P. dos Reis Miranda, a historiadora se lança ao estudo de peças de perfil satírico produzidas sobre o governo de Lourenço de Almeida na capitania de Minas Gerais, de 1721 a 1732.

Concebidas com perfil moralizante conforme Aristóteles, Juvenal ou Luciano, assumindo o predomínio do elemento jocoso na Espanha moderna, e assemelhadas aos pasquins no vocabulário de Bluteau, as sátiras foram pouco estudadas no meio acadêmico português. Ao mesclarem o erudito ao popular, o oral ao escrito, servindo ao vitupério anônimo como gênero considerado baixo, elas têm historicidade complexa. Com grande mérito, Romeiro perscruta a tipologia textual de cinco fontes hoje depositadas na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), das quais somente uma apresenta outra versão existente na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Manuscritas em português, em prosa ou verso, com passagens num latim por vezes macarrônico, referenciando também letrados latinos e figuras mitológicas, as peças são formadas, grosso modo, por uma carta crítica a d. Lourenço atribuída a outrem; um romance poético de suas ações; a simulação da alforria concedida pelo governador aos habitantes das Minas; uma comédia sobre os vícios de seus apaniguados; e a descrição do preparo de seu funeral simbólico.

Com estudo apurado, beneficiário dos estágios de pesquisa feitos na Espanha, a historiadora percebe a especificidade desses manuscritos que aglutinam a crítica moralizante e o burlesco, como anedotas morais que referenciam mordazmente fatos da trajetória do governante em Minas ou parodiam situações, celebrando sua partida. Romeiro aprofunda o exame das tipologias textuais adotadas, suas qualidades, partes, tópicas e recursos cômicos; mostra como os papéis injuriosos assumiram diferentes faces na Espanha seiscentista, na França pré-revolucionária, na Nova Espanha e no Brasil dos séculos XVII e XVIII, chegando à história mineira, desde a Guerra dos Em­boabas até a Inconfidência; e descarta categorias estanques para analisar essa expressão, preferindo abordagens menos formalistas para entender a cultura manuscrita.

Entre estudos tradicionais e de revisão, o diálogo bibliográfico recupera autores como Bakhtin em sua leitura das paródias de Rabelais e Habermas sobre o conceito de opinião pública, e sua inadequação ao contexto mineiro setecentista, pleno de dissensões e murmúrios numa sociedade autovigilante (Gaspar, 2011Monteiro, 2011).

No âmbito brasileiro, Romeiro produz abordagem diversa daquela de João Adolfo Hansen sobre a sátira na Bahia seiscentista, com autoria depois imputada a Gregório de Matos. Para Hansen a função do autor – lembrando Foucault, Barthes e a virada linguística – é relativizada pelo peso das preceptivas poéticas (Hansen, 2004). Embora endosse que as sátiras seguiam modelos retóricos e integravam a concepção neoescolástica de outrora, pela crítica ao mau governo de d. Lourenço em prejuízo do bem comum, para Romeiro o referente empírico de sua elaboração é bem mais realista do que para o crítico literário. No livro há um capítulo dedicado à trajetória de Lourenço de Almeida, uma das especialidades da autora, caso-chefe de seu recente estudo sobre corrupção (Romeiro, 2017, p. 279-361), chave de leitura para discursos que hoje nos pareceriam cifrados. A elucidação dos textos primários é complementada por notas explicativas que acompanham as suas transcrições, esclarecendo exemplos e alegorias.

Entretanto, o grande cuidado em compreender formas textuais e a atenção à trajetória do protagonista deixam por fazer a busca de mais informações sobre as origens e a circulação desses papéis, até serem encontrados na BGUC e na BNP. Ir além da contextualização social e política e da interpretação textual, já consagradas pela historiografia, é um exercício difícil e lento, sobretudo com os tipos documentais escolhidos, anônimos, copiados e emendados em sua difusão. Romeiro recolhe pistas sobre a possível circulação das sátiras por notícias manuscritas (Lisboa; Miranda; Olival, 2005), inferindo que elas foram produzidas em Vila Rica ao fim do governo de Lourenço de Almeida, chegando ao mesmo tempo que ele a Portugal e contribuindo para enxovalhar sua reputação. Considera, pela trilha das reflexões de Fernando Bouza e outros, que os manuscritos metamorfoseavam referenciais cultos para atingir outros públicos, provavelmente feitos e reproduzidos para serem lidos também em voz alta (Bouza, 2001).

Ainda assim, faltam informações sobre aspectos materiais dos manuscritos a fim de descobrir suas histórias, a começar por dados de suas extensões e dimensões, pois os números de fólios só são citados na lista de fontes ao fim do livro. Também as configurações das páginas, com manchas gráficas e caligrafias comparadas, mesmo que de modo impressionista, oferecem sinais da existência ou não de vários copistas para essas peças, bem como podem sugerir suas possíveis recepções, pois um manuscrito bem acabado difere bastante de outro repleto de rasuras e correções aparentes (Duarte, 2011). Por sua vez, a observação de marcas d’água nos papéis empregados – com a boa vontade dos bibliotecários, se os documentos não foram indevidamente restaurados – possibilita agrupar ou destacar peças, além de situá-las no século XVIII, tempo do ótimo “papel de trapo”, ou depois. A identificação dos tipos de tinta utilizados e suas tonalidades requer suporte mais especializado, mas também permite comparar melhor as cópias. Nesse exercício de pesquisa entre o intelectual e o material, um dado complementa informe vindo de outro campo. Dois dos documentos são assinados pelo pseudônimo Bizorreira. Trata-se de um apelido banal, ou que pode ser associado a aspectos materiais de alguns exemplares?

Os estudos da linguagem e de contexto indubitavelmente ajudam a desvendar a recepção de escritos dessa natureza. Romeiro cogita se os papéis teriam sido escritos por mais de uma pessoa, ou se houve autoria colaborativa para cada peça. As sátiras também podem ter sido encomendadas a alguém versado, por exemplo Félix de Azevedo da Cunha, que vivia em Ribeirão do Carmo e escreveu em 1726 um pequeno tratado de perfil cômico, hoje na Biblioteca Pública de Évora. Embora o livro contemple a sociabilidade literária ao redor dos desafetos de d. Lourenço, nele podem não ter sido esgotadas questões sobre a “materialidade social” dessas fontes, de forma a obter mais informações. Por materialidade social entende-se o estudo de aspectos físicos dos documentos provenientes de outra época, envolvendo papéis, letras, cadernos e tintas, bem como sobre suas trajetórias, da produção à circulação, às intervenções e ao ingresso em acervos privados e/ou públicos. Os cinco documentos hoje na BGUC integram dois códices com outros manuscritos. Como e quando foram encadernados e lá chegaram? Questões por vezes sem resposta, mas que precisam ser formuladas e perseguidas.

O ambiente de calígrafos e copistas nas décadas de 1720 e 1730 em Minas (Almada, 2012) denota a riqueza cultural da região nos primeiros decênios do século XVIII. Um tempo bastante anterior ao da criação da Real Mesa Censória, em 1768. Apesar das distantes Ordenações Filipinas, vigia então outro sistema de censura, mais formalista e menos proibitivo para os impressos, bem tolerante com os manuscritos (Martins, 2005Barros, 2012). Nesse mundo moviam-se os papéis de perfil satírico. Por fim, sobre as transcrições das fontes, compreende-se a atualização ortográfica para fins editoriais, embora sua bem provável variação possa ser mais um elemento comparativo entre os seis manuscritos, incluindo o exemplar da BNP. Já as alterações feitas de maiúsculas, minúsculas e pontuação afastam, a meu ver, essa edição crítica do uso documental adequado por pesquisadores, que continuam a necessitar da consulta às matrizes para poderem colocar suas próprias questões.

Referências

ALMADA, Márcia. Das artes da pena e do pincel: caligrafia e pintura em manuscritos no século XVIII. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. [ Links ]

BARROS, Jerônimo D. E. de. Impressões de um tempo: a tipografia de Antônio Isidoro da Fonseca no Rio de Janeiro (1747-1750). 2012. Dissertação (Mestrado em história) – Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, 2012. [ Links ]

BOUZA, Fernando. Corre manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001. [ Links ]

DUARTE, Lígia Gaspar. Os escreventes: identidades gráficas nas gazetas manuscritas (1735-1738). In: LISBOA, João Luís; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis; OLIVAL, Fernanda (org.). Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora (1735-1737). Lisboa: Colibri, 2011. v. 3, p. 53-112. [ Links ]

GASPAR, Tarcísio de Souza. Palavras ao chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Annablume, 2011. [ Links ]

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. [1988]. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Ed. Unicamp, 2004. [ Links ]

LISBOA, João Luís; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis; OLIVAL, Fernanda (org.). Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora (1732-1734). Lisboa: Colibri , 2005. v. 2. [ Links ]

MARTINS, Maria Tereza E. P. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. [ Links ]

MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. [ Links ]

ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. [ Links ]

Rodrigo Bentes Monteiro – Universidade Federal Fluminense (UFF), Instituto de História, Niterói, RJ, Brasil. E-mail: rbentesmonteiro@gmail.com.


ROMEIRO, Adriana. Vila Rica em sátiras: produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732. Campinas: Ed. Unicamp, 2018. 336p. Resenha de: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.39, n.81, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [IF]

 

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