Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX – VILLA (RBH)

VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, 2000. 269p. Resenha de: MARTINEZ, Paulo Henrique. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

Onde reside o interesse de um livro sobre a história das secas no nordeste do Brasil, nos dois últimos séculos? As secas constituem uma realidade presente, atuante nos dias de hoje, como no passado. E isto já bastaria para uma boa recepção ao livro de Marco Antonio Villa, não trouxesse o volume outras tantas qualidades, e também problemas. O que faz de Vida e morte no sertão uma obra não apenas necessária, mas original e instigante, pelo que oferece, pela ajuda que fornece na compreensão do tema e pelo que faz pensar. O impacto provocado pela leitura é comparável àquele de Estação Carandiru, do médico Drauzio Varela, uma vez que ambos expõem as chagas e a indiferença da sociedade e do Estado, no Brasil, diante das mazelas sociais. Este sabor de livro-denúncia, temperado com demonstrações da negligência, incúria, violência, corrupção, manipulação e clientelismo reinantes, decorre da observação, em perspectiva temporal extensa, quase duzentos anos, da ação “reparadora” do Estado brasileiro nos momentos de seca. Villa não aborda a estrutura econômica e social nordestina, sob a qual se abate a calamidade, a mesma que produz e reforça seus efeitos, mas rastreia a ação de órgãos dos governos estaduais e federal, registrando o comportamento e a conduta das elites sociais e dos dirigentes políticos naquela região. A leitura de Vida e morte no sertão pode ser enriquecida, ainda, com outras publicações recentes, tais como Seca e poder: entrevista com Celso Furtado, da Fundação Perseu Abramo (1998), O “Dossiê Nordeste seco”, organizado pelo geógrafo Aziz Ab’Saber para a revista Estudos Avançados (IEA/USP, nº 36, 1999), e A invenção do Nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque (Cortez/Massangana, 1999).

A criatividade inventiva do autor foi capaz de suplantar a aridez intelectual que caracterizou as iniciativas governamentais na passagem dos quinhentos anos da viagem de Cabral. A realização da pesquisa contou com o apoio do Instituto Teotônio Vilela, ligado ao PSDB, que veio somar sua participação à de outras entidades similares, como a Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, e o Instituto Tancredo Neves, ao PFL. Distantes de desempenhar um papel de think tank nesses partidos, a preocupação que cada um deles, e à sua maneira, demonstra em pensar e conhecer o país não deixa de ser louvável.

O livro estuda as principais secas ocorridas no nordeste brasileiro, entre os séculos XIX e XX, até o governo do general Figueiredo (1979-1985). Uma questão incomoda o autor, e ele a perseguiu com denodo ao longo dos capítulos: o saldo de mortos com as sucessivas secas, de um lado, e o imobilismo das autoridades públicas e da sociedade, de outro. Em operações de mórbida matemática, Villa estimou em torno de três milhões de pessoas as vítimas fatais nesses dois séculos. Um novo holocausto, equivalente a duas guerras do Vietnã. Eis porque o livro é portador de “uma triste história em que a morte rondou diuturnamente a vida dos sertanejos” (p. 13). A seca de 1877-1879, uma das mais terríveis, teria dizimado cerca de 4% da população nordestina, erigindo o Nordeste, desde então, em “região-problema”. Já a morte, convertendo-se em personagem principal, comparece na abertura de todos os capítulos e no encerramento do livro. Ao fechá-lo tem-se a sensação de haver assistido a um espetáculo macabro, impressionante. Palco privilegiado para atuação da morte e dos desmandos parece ter sido o Ceará. Não se sabe se pelas condições particulares daquele Estado ou se pelas condições de acesso e disponibilidade de fontes e documentação, há no livro um certo protagonismo cearense em várias das situações estudadas.

No conjunto ressalta um minucioso trabalho de pesquisa, exemplar em qualidade de análise, dos dados coligidos, na reconstituição de contextos e conjunturas. Os efeitos das secas sobre a economia regional e os grandes prejuízos que ocasionam; o fenômeno das migrações, orientadas, ao longo do tempo, para quase todo o Brasil, com destaque para o Maranhão, Pará, Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e capitais do Nordeste; o surgimento de expressões, personagens e situações próprias ao universo das secas, como “indústria da seca”, a Sudene, os saques, retirantes, epidemias, frentes de trabalho, entre outros. Cenários que abrem o leque de problemas correlatos para novas pesquisas, tais como o papel da imprensa, os efeitos das intervenções governamentais, os movimentos sociais, o universo cultural e o imaginário das secas, as ações da Igreja e dos partidos, o Nordeste como “região-problema”, o impacto sobre as comunidades agrárias e a história regional. Se a introdução de dromedários na região, na década de 1850, fez a esperança de superação dos problemas das secas recair antes nas costas desses animais do que na ação dos homens, nas décadas de 1950 e 1960, as repetidas tentativas de definir uma política de desenvolvimento para o Nordeste tornaram-se pregações no deserto. A “inação” dos homens e a inclemência da natureza regaram o canteiro dos discursos de identidade regional, tragando inclusive o Estado da Bahia, até então, unidade avulsa na federação brasileira. Lástima o livro não incorporar o tratamento dispensado às secas sob os governos civis, afinal, Sarney e Collor foram “presidentes do Nordeste”, e na década de 1990, quando o PSDB dirigiu o País. O Instituto Teotônio Vilela poderia, assim, refletir e extrair lições sobre o comportamento de seu próprio partido no governo e das ações que este desenvolveu para enfrentar as calamidades provocadas pelas secas, como a de 1998, por exemplo. Teria havido, nestes últimos anos, mudanças nos procedimentos administrativos de prevenção e reparação dos males? Vida e morte no sertão também desperta a cobiça por estudos comparativos. Em 1998, diante dos incêndios florestais em Roraima (não haveria outras situações semelhantes na região amazônica?), a postura do governo federal diferiu ou se assemelhou àquelas estudadas neste livro? Eis uma questão que pede esclarecimentos. E alguma pesquisa, não uma história-catástrofe.

Onde reside, para os historiadores, o interesse de um livro sobre a história das secas no nordeste do Brasil, nos dois últimos séculos? O interesse pelo Nordeste é remoto e diversificado, conforme constatou a professora Suely Robles Reis de Queiroz, autora de uma Historiografia do Nordeste (São Paulo. Secretaria da Cultura/Arquivo do Estado, 1979, Col. Monografias, 2), dado, por exemplo, o papel que aquela porção de terra ocupou na América portuguesa. Há, também, no livro de Marco Antonio Villa, esse curioso ponto de partida, a geografia, o espaço, as condições climáticas e as particularidades que resultam das intervenções humanas, produtoras das peculiaridades dessa “região”, examinadas em suas dimensões propriamente temporais. Um encontro entre as preocupações da História e da Geografia que caminham, juntas e atentas, às relações entre Estado e sociedade no Brasil. Diante dos problemas que, acredita Villa, deveriam ser enfrentados, o da terra, com a realização de reforma agrária e o estabelecimento de lavouras secas, e o da água, com o armazenamento e o uso social dos recursos hídricos, estariam plantados os “condottieri do atraso”, a elite social e política nordestina. Eis, então, uma questão para os historiadores: “Os fatores de conservação transformaram o semi-árido em uma região aparentemente sem história, dada a permanência e imutabilidade dos problemasComo se com o decorrer das décadas nada tivesse se alterado e o presente fosse um eterno passado. A cada seca, e mesmo no intervalo entre uma e outra, milhares de nordestinos foram abandonando a região. Sem esperança de mudar a história das suas cidades, buscaram em outras paragens a solução para a sobrevivência das suas famílias. Foi nos sertões que permaneceu inalterado o poder pessoal dos coronéis, petrificado durante o populismo e pela migração de milhões de nordestinos para o sul” (p. 252, grifos meus). Como explicar esta persistência? De onde ela emerge e como se alimenta? Ousaria dizer que nas respostas àquela situação encontram-se elos dessa corrente do passado. Uma rigorosa evasão das populações, de um lado, fazendo de cidades e roças fontes ininterruptas de mão-de-obra barata, e a reiteração cultural das elites sociais e políticas, por outro, transformando-as em ponto de sustentação política dos governos estaduais e federal, têm sido respostas que aprisionam os homens à realidade que querem evitar. É o que se depreende de uma leitura desse livro, amparada em Fernand Braudel. Foi por dever de ofício, que o ministro do interior do governo Figueiredo, Mário Andreazza, aspirante à presidência da República, fez perto de sessenta visitas ao Nordeste, entre 1979-1981? Curiosa, também, a omissão da esquerda brasileira perante as secas. O PCB, diz o autor, “omitiu-se politicamente durante os flagelos” e “nunca se dispôs a apresentar um programa para a região” (p. 253).

Uma última palavra, sobre a religiosidade nordestina. Vista, até pouco anos atrás, por segmentos políticos e intelectuais, como uma dentre outras rotas de fuga da seca, ao lado da migração para as cidades e outras regiões do Brasil e, no passado, o cangaço e a jagunçama, a devoção religiosa foi associada a comportamentos sociais passivos no Nordeste, onde Canudos e Caldeirão formariam exceções à regra. Contudo, ao renovar esperanças em dias melhores, chuvas, chegada de alimentos, terra, sobrevivência dos roçados, essa mesma religiosidade converte-se em fator de “promoção social” e de expectativa de uma sedentarização, em condições outras. Permitiria, então, entrever possibilidades distintas daquelas “respostas”, anteriormente referidas?

Paulo Henrique Martinez – UNESP – Assis.

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