Sempre houve relatos do contínuo deslocamento da humanidade, sejam nos tempos pré-históricos, passando pelas narrativas Homéricas e relatos de Heródoto, chegando até o medievo, onde o homem desse período saía de seu lar com objetivos diversos, desde um monarca para ver suas terras, até o peregrino em expiação aos pecados.
Essa é a tônica do livro Viagens e espaços imaginários na Idade Média, lançado pela Anpuh Rio no anos de 2018, com textos dos membros do Scriptorium Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos, um dos mais antigos, atuantes e prestigiados grupos de pesquisa em estudos medievais do Brasil, com pesquisas que abrangem vários campos da cultura e do conhecimento do medievo, entre eles literatura, política, imaginário, iconografia e música, assuntos abordados nessa produção de 246 páginas, cuja organizadora principal é a Prof. Dra. Vânia Leite Fróes, fundadora do Scriptorium, laboratório que em 2019 completou 32 anos de existência.
O livro reforça a ideia de que o homem medieval se movimentava bastante, quebrando estereótipos de que os medievos possuíam uma vida restrita ao seu lugar de nascimento, pois segundo Jacques Le Goff:
A imagem construída pela historiografia tradicional, de uma Idade Média imóvel em que o camponês está ligado à terra e a maioria dos homens e mulheres à sua pequena pátria, com exceção de alguns monges viajantes e de aventureiros das cruzadas, foi recentemente substituída pela imagem, certamente mais justa, de uma humanidade medieval móvel, frequentemente a caminho, in via, que encarna a definição cristã do homem como viajante, como peregrino, homo viator”.1
Desta forma, o livro organizado por Fróes reforça o pensamento de Le Goff sobre os indivíduos no medievo e a ideia de viagem. Estes possuíam não somente mobilidade física, mas mobilidade em imaginário e representações, onde estes homens projetavam sua caminhada na terra, numa peregrinação que se encerraria ao chegar ao Além.
O livro está dividido em seis partes, todas tratando de diversas concepções de viagem. Na primeira parte, Viagens e o poder régio, vemos a observação do poder real, com suas várias configurações de viagens, sendo essas imaginárias ou reais, como consolidadoras de imagens úteis em captação de aliados.
A publicação tem como início, após a apresentação da Coordenadora e Pesquisadora do Scriptorium Prof. Dra. Vânia Leite Fróes, o relato da viagem feita pelo Infante D. Pedro no texto de Ana Maria S. A. Rodrigues (Centro de História/Universidade de Lisboa) e o percurso deste nobre da terra Santa até sua ascensão ao trono, numa peregrinação para legitimar e dar credibilidade a sua imagem de governante, na disputa pela memória e honra, contra a sua cunhada, D. Leonor de Aragão.
No texto seguinte, de Douglas Mota Xavier de Lima (UFOPA-Santarém/ Vivarium-Scriptorium) mostra um olhar sobre a diplomacia em Portugal do século XV, no reinado de D. Afonso V, além das próprias viagens do rei à Paris visando se encontrar com o rei Luís XI, em busca de apoio contra o reino de Aragão.
Fechando a primeira parte temos o capítulo de Priscila Aquino Silva (Faculdade de São Bento/Unilasalle, Niterói-Scriptorium), tratando da trajetória de D. João II, o Príncipe Perfeito e sua esposa D. Leonor, a construção de sua identidade régia baseada em sua devoção, onde o casal era unido nas peregrinações, mas oposto em suas posições políticas.
A segunda parte Viagens nas representações iconográficas traz uma série de textos com análises de iconografias e suas diversas significações: padrões estéticos, esculturas miraculosas, representações infernais e gravuras sobre martírio e triunfo. As imagens na Idade Média possuem uma função de formação moral e de atestar a presença e ação de Deus. Trabalham com a ligação entre o humano e o divino, pois passam uma mensagem transcendental. Como afirma Jean Claude Schimtt no seu livro O Corpo das Imagens: A imagem medieval se impõe como uma aparição, entra no visível, torna-se sensível. […] Mediadoras, as imagens estavam entre os homens e o divino.2
Abrindo essa sessão, há dois textos de Tereza Renata Silva Rocha (Scriptorium/ UFF). O primeiro analisa a coletânea cristã Legende Dorée, num percurso explicativo sobre as mudanças nos padrões estético e artístico do medievo, além de fazer uma pertinente observação sobre a luta entre bem e mal pela alma humana e tudo o que esse processo envolve, como os pactos diabólicos.
No segundo texto, a autora traz uma avaliação sobre o Volto Santo, uma escultura atribuída a Nicodemos, o qual, num percurso miraculoso, aparece na Legende Dorée, na sessão intitulada Festes Nouvelles, que traz vidas de santos e o Volto Santo, que atrai peregrinos e fiéis até os dias atuais.
No capítulo seguinte, de Patrícia Marques de Souza (CHA/UFRJ), temos uma análise da versão em latim da Ars Moriendi (Arte do Bem Morrer), e suas gravuras, que tratam da morte, mas também de anjos, santos e da Virgem Maria. A autora também mostra uma observação pormenorizada da representação da Boca do Leviatã como porta do inferno e suas diversas interpretações no medievo.
Ao fim dessa segunda parte, temos o texto de Vinícius de Freitas Morais (CHA/UFRJ/Scriptorium), tecendo uma análise sobre o beato Simão de Trento, nos diversos relatos escritos e imagéticos que tratavam das circunstancias do seu assassinato. As narrativas mencionam que os acontecimentos envolvolveram sequestro, tortura e morte, ocorridos durante a Semana Santa, além de gravuras que retratavam seu martírio e triunfo.
A parte três tem o título Viagens e Peregrinações, remetendo às falas de Jérôme Baschet: “Toda peregrinação é na Idade Média, uma aventura, um risco; se o destino é longínquo, as pessoas redigem o seu testamento antes da partida ou, ao menos, tomam o cuidado de pôr em ordem os seus negócios, como se a viagem fosse sem volta” 3 , mostrando um amplo panorama de deslocamentos expressos nas cantigas, em tradições familiares e as movimentações de uma rainha que foi consorte em duas coroas.
O primeiro texto desta sessão, escrito por Lenora Mendes (Conjunto de Música Antiga da UFF/Scriptorium), traz um a visão acerca das devoções e peregrinações expressas nas cantigas medievais e traça a rota dos principais lugares de peregrinação, especialmente em direção à Santiago de Compostela, significativamente citado nas cantigas de Santa Maria.
O escrito seguinte, de Tomás de Almeida Pessoa (Scriptorium/UFF), relata a tradição da família de Gregório de Tours em empreender peregrinações anuais a Brioude, local onde repousava o corpo decapitado de São Juliano. No texto vê-se que o itinerário da peregrinação era usado como uma jornada na terra para chegar a Deus.
O terceiro texto dessa parte é de autoria de Letícia Simmer (Unirio). Trata de Eleanor de Aquitânia, uma mulher de destaque na França e Inglaterra devido a casamentos com os monarcas dos dois territórios, que vivia em constante movimento desde a Segunda Cruzada, passando pelo território inglês, Jerusalém, Sicília, Navarra, Pisa, Roma, além de muitos territórios da França.
A sessão quatro tem como título Viagens e Escatologias, onde são expressas viagens ao Purgatório, além de como os vivos poderiam ajudar aos mortos nessa jornada, e o percurso de Maomé de Jerusalém ao céu, expresso em traduções Afonsinas.
Essas viagens eram ligadas à salvação e purgação dos pecados, que eram uma preocupação do homem medieval como explica a professora Adriana Zierer no resumo do artigo Paraíso versus Inferno: a Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (séc. XII):
A salvação na Idade Média estava ligada à idéia de viagem. O homem medieval se via como um viajante (homo viator), um caminhante entre dois mundos: a terra efêmera, lugar das tentações e o Paraíso, Reino de Deus e dos seres celestiais. Se o homem conseguisse manter o corpo puro conseguiria a salvação. Se falhasse, sua alma seria condenada, com castigos eternos no Inferno ou provisórios no Purgatório. Era um paradoxo da Idade Média que a alma pudesse ser salva somente pelo corpo, devido à esse sentimento de culpa, proveniente do Pecado Original. Caso o maculasse, sua alma sofreria a danação com castigos eternos no Inferno ou provisórios no Purgatório”. 4
O primeiro texto da parte 4 é de Tereza Renata Silva Rocha (Scriptorium/UFF),onde a autora faz uma exposição sobre o Purgatório de São Patrício na Legenda Áurea, através da jornada de um nobre chamado Nicolau e seu desejo de se penitenciar no Purgatório. Neste contexto, Rocha mostra a construção desse espaço no imaginário medieval ocidental do além, assim como seu destaque deste na Legenda Áurea, sua geografia , igualmente como a descrição do Leviatã e as bocas do Inferno.
Dando sequência, temos o texto de Viviane Azevedo de Jesuz (Cultura Inglesa/ Scriptorium), que traz uma análise sobre as visões da morte na vida cotidiana do homem medieval e qual a participação dos vivos no descanso eterno das almas dos seus. Essa participação era geralmente expressa nos testamentos, nos quais, além de obrigações aos herdeiros, faziam doações e atos de piedade com o intuito de manter a memória do morto para a família e o meio social.
No terceiro texto dessa quarta parte, Leonardo Fontes (Arquivo Nacional/Scriptorium) apresenta o percurso da viagem escatológica de Maomé por diversos lugares. Estes espaços iam de Jerusalém ao céu, expostos nos arquivos da Corte de Afonso X, através de sua Oficina Tradutória, importante scriptorium de confluência entre diferentes culturas, assim como de valorização dos ensinamentos do rei e de seus súditos, a obra, A -MI AJ, que possu a versões latina, castelhana e francesa. Tal obra difundiu o Islã pelo continente europeu e influenciou diversos escritos importantes, como a Divina Comédia.
A quinta parte do livro é intitulada Viagens e materialidade das narrativas: das bibliotecas régias às estalagens. Aqui, as viagens se iniciam na observação das estalagens e mostram que os livros são meios de expressão de viagens, caças e jogos, que suscitam deslocamentos de várias figuras importantes como D. Dinis e o contato com o Preste João.
Esta sessão traz um rico apanhado de informações sobre os livros de viagem. Conforme nos diz Paulo Lopes, professor do Instituto de Estudos Medievais de Portugal (IEM-FCSH-UNL) em seu artigo Os Livros de Viagens Medievais na revista Medievalista (p. 5): “Os livros de viagens oferecem uma visão bastante clara da concepção do mundo e da realidade na Idade Média, ao mesmo tempo que constituem uma fonte incontornável para compreender aspectos muito diversos da cultura medieval”.5
No primeiro artigo da quinta parte, de Beatris dos Santos Gonçalves (IBMEC /CÂNDIDO MENDES/ Scriptorium), há uma análise de como se dava a dinâmica da hospitalidade nas estalagens portuguesas nos séculos XV-XVI. A autora observa as tensões e cotidianos desses abrigos, além do que estas ofereciam e a quem pertenciam, assim como eram concedidos sua autorização de funcionamento, sua lógica de funcionamento e os benefícios advindos da coroa por estarem bem posicionadas.
O segundo artigo, escrito por Carolina Chaves Ferro (UniCarioca/Scriptorium), apresenta uma observação sobre o gênero de literatura de viagem e seus aspectos reais e imaginários. Dos relatos celebres religiosos e suas origens como a Viagem de São Brandão e a Legenda Aurea, assim como as narrativas presentes nas bibliotecas régias como o Livro da Cartuxa de D. Duarte, Marco Polo em latim e a Conquista d’ultramar, um outro ponto recorrente, segundo o texto, é a questão das índias e o Preste João.
O terceiro texto, de Jonathan Mendes Gomes (UEMG-Carangola|Scriptorium), destaca o papel da caça no contexto dos jogos de cavalaria, nos aspectos de espaço e movimento de folgança e também de deslocamento e itinerância régia. Os livros de caça eram aprovados pelos reis e eram usados como mecanismos de instruir ludicamente e promover o bom lazer, além de suscitar o domínio de espaços de privilégios e domesticação do meio natural, que fortaleceria a presença do monarca, no caso, D. João I.
A sexta e última sessão do livro, intitulada, Da magia à contemporaneidade: viagens no tempo e no espaço, que trabalha com a relação entre o medievo e os tempos atuais, fazendo a análise de Merlin e a magia, assim como se configura a visão do medievo, seus conceitos e estudiosos na contemporaneidade, mostrando que esse período tão rico traz ainda hoje aprendizado e relevância, como diz Hilário Franco Jr, no texto Somos Todos Idade Média, de 2008: “Assim, estudar História Medieval é tão legítimo quanto optar por qualquer outro período. (…). Neste sentido, pode ser estimulante mostrar que, mesmo no Brasil, a Idade Média, de certa forma, continua viva”6.
O artigo que inicia a sexta parte, de Átila Augusto Vilar de Almeida (ex-docente da UEPB/Devry João Pessoa e atualmente professor da UFAM/Scriptorium), propõe uma observação acerca de Merlin, suas representações contemporâneas e sua concepção no medievo especialmente nos textos de Robert de Boron, escritos entre os séculos XII e XIII, que tratavam do rei Artur e do Graal. Um Merlin, construído sob uma concepção cristã, embasando seu nascimento e origem de seus poderes mágicos sob a égide do cristianismo.
O artigo de João Batista da Silva Porto Junior (UNESA/UFF) encerra o livro, abordando o interesse do século XXI pelo medievo, e tal afirmativa se torna evidente quando se vê a produção cultural e acadêmica sobre essa temática, que o autor realiza, fazendo um apanhado de estudiosos medievalistas, assim como dos conceitos e suas ressignificações desta época.
Enfim, o livro é uma rica fonte de referências e um importante conjunto de informações sobre as diversas configurações de viagens, em suas varias formas, sendo físicas, ou simbólicas, concretas ou imaginárias, numa visita de nobres e mártires, homens e mulheres, que se aventuraram além das fronteiras, em busca de conhecimento, redenção ou legitimação.
Num contexto onde, cada vez mais, a ressignificação abre novos leques, e a reafirmação de períodos e temas relevantes são resistências contra os interditos do mundo atual, que tentam isolar, e reduzir os horizontes do conhecimento, num percurso que nem no medievo, apesar dos perigos, ameaças nas estradas e salteadores, enfrentou: o risco de cerceamento da liberdade de viajar através do saber e da ciência.
Notas
1. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2010.p.97
2. Schmitt, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. Bauru, SP: Edusc, 2007, p.16.
3. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 351.
4. ZIE E, Adriana. “Para so versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII)”. In: FIDO A, Alexander e PASTOR, Jordi Pardo (coord). Expresar lo Divino: Lenguage, Arte y Mística. Mirabilia. Revista de História Antiga e Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio/J.W. Goethe-Universität Frankfurt/Universitat Autònoma de Barcelona, v.2, 2003, pp. 137-162. Disponível em: Mirabilia 2 (2002). www.revistamirabilia.com. Acesso em 28 de julho de 2019.
5. LOPES, Paulo. Os Livros de Viagens Medievais. In Medievalista. Lisboa: Ano 2. Nº 2, 2006. p 1-32.
6. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Somos todos da Idade Média. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Sabin, ano 3, n. 30, p. 58-60, mar. 2008. Disponível em: http://www.editoradobrasil.com.br/portal_educacional/fundamental2/projeto_apoema/pdf/textos_comple mentares/historia/7_ano/pah7_texto_complementar01.pdf; acesso em 20 de julho de 2019.
Elisângela Coelho Morais – Doutoranda PPGHIS-UFMA/Bolsista Capes. E-mail: elishst@hotmail.com
FRÓES, Vânia Leite; FREITAS, Edmar Checon de; GONÇALVES, Sinval Carlos Mello; COSER, Miriam Cabral; PEREIRA, Raquel Alvitos; CASTRO, Anna Carla Monteiro de. (Org.) Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2018. Resenha de: MORAIS, Elisângela Coelho. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.19, n.1, p. 275- 282, 2019. Acessar publicação original [DR]
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