Os gauleses aparecem em diversos livros sobre Arqueologia e História Europeia Ocidental. Eles fazem parte da História da França e também nos referimos a eles quando falamos sobre celtas. Foram populações recorrentemente selecionadas para a construção do nacionalismo francês, como fez Napoleão III, em 1865, ao projetar seu rosto em uma estátua de bronze em Alésia. Ele também justificou as ações coloniais francesas (como na Indochina e no norte da África), afirmando que a dominação romana aos gauleses teria levado a civilização e a paz a essas populações. Além disso, podemos citar durante a Segunda Guerra Mundial, o caso de Marechal Pétain, que também se associou à figura de Vercingetórix, argumentando que se sacrificou pelo país, dentre diversos outros casos.
No geral, os pesquisadores dividem-se entre os que são a favor do uso das nomenclaturas Gália e gauleses, e os que são contra. Christian Goudineau é um nome de destaque dentro de uma visão mais cética. O autor apresenta esta visão em sua obra Par Toutatis: que reste-t-il de la Gaule? (2002a), argumentando que as populações locais da França não chamavam a si próprias de gaulesas. Além disso, o que chamamos de Gália seria apenas uma concepção geográfica criada por César durante as Guerras da Gália, até mesmo pela consideração de divisões territoriais tão rígidas. E também porque o que César retrata é apenas o território que ele conquistou (cf. GOUDINEAU, 2002b, p. 37).
Enquanto isso, Jean-Louis Brunaux pertence ao grupo que adota essa nomenclatura, junto a diversos outros pesquisadores de pré e proto-história europeia da França. Podemos citar a obra de Py (1993); Les gaulois du Midi: de la fin de l’Âge de Bronze à la conquête romaine; Dedet (2018), Coutumes Funéraires en Gaule du Sud Durant la Protohistoire (IXe-IIe siècle av. J.-C.); Férnandez-Götz (2014), Identity and Power: The Transformation of Iron Age Societies in Northeast Gaul; Dessenne (2011), Celtes et Gaulois: deux chemins vers l’au-delà; dentre diversas outras obras. Esta se trata da abordagem mais tradicional e recorrente até hoje.
Podemos observar reflexos da Arqueologia Social francesa nesse livro, tendo em vista que o foco da obra é decifrar quem são as populações chamadas de gaulesas. Apesar disso, o autor propõe teorizações próprias, como veremos, e não uma descrição da cultura material, como encontramos muitas vezes na produção arqueológica do país.
Brunaux já publicou diversos livros sobre os gauleses voltados para acadêmicos, como Les religions gauloises (2016), Guerre et religion en Gaule: essai d’anthropologie celtique (2004), Les Gaulois (2005), Les Druides (2006). A grande diferença deste livro é a proposta de responder quem são os gauleses a partir da colocação de perguntas, que muitas vezes aparecem correntemente no imaginário popular sobre as populações da Idade do Ferro da França (VIII-I a.C.). Assim, o autor busca desmitificar lendas, mal-entendidos e apontar que evidências concretas existem. Dentre elas, encontram-se: se os gauleses são os ancestrais dos franceses (“Les Gaulois sont-ils les ancêtres des Français?”), se os chamados gauleses possuíam bigodes e cabelos grandes (“Les Gaulois étaint-ils moustachus et chevelus?”) e se eles se embebedavam em banquetes gigantescos (“S’enivraient-ils dans des banquets gargantuesques?”). Estas questões também se tratam de assuntos que aparecem de forma corrente na documentação textual feita por gregos e romanos.
“Les Gaulois: Vérités et legendes” possui, além de uma introdução, vinte e nove capítulos. A quantidade deles deve-se justamente ao fato de que cada capítulo propõe a resposta de uma questão, cuja resolução é feita, na grande maioria vezes, a partir do cruzamento da documentação arqueológica e textual. Consideramos este um livro introdutório, tendo em vista que responde a questões relativamente básicas sobre as populações da Idade do Ferro da França, que seria também compreendido por pessoas que não possuem informações anteriores sobre o assunto.
Dentre as perguntas colocadas, destacaremos as que consideramos mais essenciais. Logo na introdução, Brunaux defende o uso do termo gauleses para todas as populações da Idade do Ferro da França (BRUNAUX, 2018, p. 11). Essa ideia também é reforçada no segundo capítulo, “Sont-ils gaulois ou celtes?”.
No primeiro capítulo, “Marseille-la-Grecque a-t-elle adouci la civilisation gauloise?”, Brunaux fala sobre a fundação da colônia grega de Massália no sul da França, e discorre sobre as consequências da interação entre gregos e as populações locais. Já no segundo capítulo, “Sont-ils gaulois ou celtes?”, apresenta sua interpretação sobre quem são os celtas e os gauleses. Ele assinala que a concepção de que, nos séculos XIX e XX, os celtas compunham uma mesma raça já foi totalmente superada (BRUNAUX, 2018, p. 29). Segundo seu ponto de vista, a única coisa em comum entre os celtas seria uma:
[…] estreita relação que eles possuíam com os gregos, os foceus de Marselha particularmente. Todos tinham ligações diretas ou indiretas com esses comerciantes. Ou organizavam o tráfego na Gália para eles: cuidavam do transporte, da descoberta de novos mercados. Ou produziam para atender a sua demanda: extraíam minérios, refinavam metais, fabricavam produtos semiacabados e exportavam parte de sua produção agrícola” (BRUNAUX, 2018, p. 30).Brunaux considera também que os celtas eram populações confederadas vinculadas a interesses econômicos (BRUNAUX, 2018, p. 31). De maneira que “era então provavelmente o nome genérico que esses aliados se davam” (BRUNAUX, 2018, p. 31). Segundo o autor, as alianças que eles fizeram indicariam duas fases: uma diplomática com os foceus (para fluxo de mercadoria e proteção) que se converteu também em política (criação de grandes vias por esses territórios), e outra econômica (estando o poder dessas populações conectado aos seus contatos). Ademais, Brunaux defende que os celtas seriam uma parte dos gauleses, que ele acredita que formem um grupo mais amplo, ou seja, todas as populações que residiam no território chamado de Gália (BRUNAUX, 2018, p. 34). Menciona-se que os celtas se helenizaram “superficialmente” (BRUNAUX, 2018, p. 30). Ele não considera este termo como uma perda total do que ele chama de “personalidade” das populações locais.
O capítulo três intitula-se “Les invasions gauloises étaint-elles barbares?”. Nele, o autor se propõe a desconstruir a ideia de que essas populações seriam invasores bárbaros. Ele apresenta episódios de incursões violentas relatadas pela documentação textual, mas também a ideia de uma imigração e da criação de colônias, vinculada a uma movimentação de longo prazo, nos quais os já residentes abririam o caminho para que mais pessoas chegassem (cf. BRUNAUX, 2018, p. 38-39 e 45). Igualmente, defende que a ideia de invasões célticas, como uma movimentação populacional em massa, nunca aconteceu. Como o autor aborda, sabemos que a maior parte da população local da França era composta por agricultores, ligados à terra, e que o grupo que mais se movimentaria nessa região eram os guerreiros que atuavam como mercenários (BRUNAUX, 2018, p. 43).
Dentre esses capítulos, acreditamos igualmente que o nono merece destaque. Tendo em vista que, ao lançar a questão de se a Gália seria uma invenção de César, Brunaux defende sua ideia de que as populações locais do sul da França teriam consciência dos limites do território chamado de Gália (BRUNAUX, 2018, pp. 104- 105).
Do mesmo modo, consideramos relevante a problematização da ideia de que os chamados gauleses seriam os ancestrais dos franceses (capítulo 10), tendo em vista que essa se trata de uma seleção parcial da História da França para fins nacionalistas, sendo uma construção.
O capítulo vinte e quatro contribui, desmitificando a ideia de que a França na Idade do Ferro seria coberta de florestas, e que eles seriam bons selvagens, vivendo harmonicamente na natureza. Como Brunaux (2018, p. 248) aponta, o norte da França possui mais florestas atualmente do que na Idade do Ferro, e era bastante habitada, demandando grande quantidade de terras para agricultura.
Podemos dividir o restante da obra por temas. Da forma como os capítulos 7 e 12 abordam a aparência dos chamados gauleses, que como mostra o autor, não seriam gigantes e louros, como perdura no imaginário popular (BRUNAUX, 2018, p. 87-88).
Outra temática levantada sobre essas populações são suas inovações e tecnologias. Isso aparece nos capítulos 14, 15, 16 e 17. Assim, ele menciona como essas populações criaram a colheitadeira, arado, a cota de malha (coletes de pequenos anéis para proteção dos cavaleiros), o esmalte vermelho (para substituir o coral), a colocação de uma camada de estanho para recobrir vasos e também inovações na botânica. Também reproduziram novas espécies de animais a partir do cruzamento com animais importados (BRUNAUX, 2018, p. 171). Do mesmo modo, são mencionados como ótimos artesãos com metal e madeira. Essas informações são essenciais para a desconstrução da ideia dessas populações do sul da França como bárbaros.
Alguns aspectos importantes dessas sociedades também são mencionados nos capítulos dezoito e vinte e cinco, como o fato de que algumas mulheres possuíam um lugar privilegiado e de destaque nessas sociedades. Brunaux também retoma assuntos bastante recorrentes sobre os chamados gauleses, como os serviços mercenários (capítulo 6), banquetes (capítulo 13), os druidas (capítulos 19 e 20), Vercingetórix (capítulo 11), a conquista da Gália (capítulo 26), organização social (capítulo 25), “arte” (capítulo 29), dentre tantos outros.
A obra contribui para o assunto, pois recorrentemente contesta a documentação clássica (textos gregos e romanos), até mesmo pelo cruzamento com a Arqueologia, apesar de nem sempre uma problematização ser totalmente alçada. Um exemplo disso é que o autor concorda com a ideia de Pompeu Trogo, de que “os foceus suavizaram a barbárie dos Gauleses, e lhes ensinaram uma vida mais doce” (BRUNAUX, 2018, p. 22-23), e diz que Massália era a “principal inspiradora da civilização gaulesa” (BRUNAUX, 2018, p. 24). Dessa forma, podemos observar que apesar dos avanços apontados na obra para que a visão de barbárie dessas populações seja desmitificada, o autor não questiona completamente o discurso colonial de que os gregos levariam a civilização para a barbárie. Podemos dizer o mesmo quanto à consideração de um papel ativo das populações locais nas relações com os gregos, tendo em vista a insistência em chamar as relações interculturais locais de helenização, escolhendo uma palavra que continua a enfatizar apenas um lado desse contato, ao invés de buscar alguma mais precisa e representativa, denotando claramente uma troca entre ambas as partes.
Além disso, apesar do perigo de generalização apresentado pela obra, tendo em conta seu grande escopo, que não leva em consideração até mesmo as diversidades regionais, esta é uma boa obra introdutória e atualizada sobre o tema. Inclusive porque poderia ser lida e compreendida por pessoas sem conhecimento prévio sobre o tópico, e também pela revisão de pontos clássicos.
Por fim, consideramos interessante a forma como o autor constrói a sua narrativa sobre quem eram os chamados gauleses, a partir de questões apresentadas em capítulos curtos, facilitando a leitura, enquanto nesse trajeto o pesquisador introduz o leitor a questões mais amplas, como religiosidade, contexto funerário, organização social, guerra, dentre outros. E assim, juntando as respostas dessas diversas questões, o autor nos permite a reunião da sua imagem e interpretação acerca de quem eram essas populações da Idade do Ferro da França.
Referências
BRUNAUX, Jean-Louis. (2016) Les religions gauloises. Paris: Biblis.
BRUNAUX, Jean-Louis. (2006) Les druides. Des philosophes chez les Barbares. Lonrai: Éditions du Seuil.
BRUNAUX, Jean-Louis. (2004) Guerre et religion en Gaule: essai d’anthropologie celtique. Paris: Errance.
BRUNAUX, Jean-Louis. (2005) Les Gaulois. Paris: Société d’édition Les Belles Lettres.
DESSENE, Sophie (coord.). (2011) Celtes et Gaulois: deux chemins vers l’au-delà. Soissons: Musée de Soissons.
FERNÁNDEZ-GÖTZ, Manuel. (2014) Identity and Power: The Transformation of Iron Age Societies in Northeast Gaul. Amsterdam: Amsterdam University Press.
GOUDINEAU, Christian. (2002a) Par Toutatis: que reste-t-il de la Gaule? Paris: Éditions Seul.
GOUDINEAU, Christian. (2002b) “Les Gaulois: récit d’une redécouverte.” Raison présente, n. 142, p. 31-38.
Thaís dos Santos – Mestre em História Social (PPGH/UFF/NEREIDA) ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3575-8300 E-mail: thaisrsantos@hotmail.com
BRUNAUX, J.-L. Les Gaulois. Verités et Légendes. Paris: Perrin, 2018. Resenha de: SANTOS, Thaís dos. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.20, n.1, p. 342- 348, 2020. Acessar publicação original [DR]
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