Velhice ou terceira idade? | Myriam Moraes Lins de Barros
O interesse das ciências sociais, sobretudo a antropologia, pelo tema da velhice é fenômeno recente, e deve-se, entre outros motivos, à dificuldade que os pesquisadores têm de se voltar para a parcela mais idosa da população e encontrar nela um objeto de reflexão. Durante muitos anos, os estudos antropológicos limitaram-se a considerar os velhos como “informantes privilegiados”, sem, no entanto, conceder-lhes um segundo pensamento. Essa dificuldade provem de uma tendência comum na sociedade ocidental moderna, de valorização da infância e da juventude como temas centrais de atenção não só do ponto de vista social, mas também como objeto de estudo.
Os estudos antropológicos sobre a velhice, particularmente no Brasil, têm acompanhado o próprio movimento de descoberta da mesma por parte da sociedade. A visibilidade dos velhos e da velhice evidenciou-se, sobretudo na última década, não apenas através dos dados demográficos divulgados na imprensa de um modo geral, como também pela experiência cotidiana, que nos faz conviver com um número cada vez maior de idosos(as), tanto no espaço público como no domínio da vida privada.
Diante das mudanças ocorridas em nosso padrão de crescimento populacional a partir de uma maior expectativa de vida associada a um declínio efetivo das taxas de natalidade, instaurou-se um debate sobre a necessidade urgente de implementar políticas sociais voltadas para esse segmento da população. Novos termos, novos conceitos e noções começaram a ser formulados, com o objetivo de buscar entender as nuanças das representações sociais vinculadas ao processo de envelhecimento.
Atualmente, o tema da velhice e os problemas a ele relacionados estão presentes nas discussões de diferentes áreas do conhecimento e da intervenção. Nessa discussão entre distintos saberes e práticas sociais, a antropologia tem comparecido, sistematicamente, trazendo para a reflexão a apreensão do fenômeno da velhice a partir de uma perspectiva cultural. O livro Velhice ou terceira idade?, organizado pela antropóloga Myriam Moraes Lins de Barros, é um bom exemplo disso, revelando a participação dos antropólogos nesse debate. Os artigos que o compõem, além de tornar visível parte da produção acadêmica nesse área, procuram mostrar que, ao tratar de aspectos específicos da velhice e do envelhecer, podemos refletir sobre nós mesmos e sobre o homem em geral, dentro da mais clara tradição antropológica.
Iniciativas como essa são sempre estimulantes e particularmente bem recebidas, na medida em que possibilitam a interlocução entre pesquisadores que vêm insistindo em tomar como objeto de investigação grupos de memória, em sua maioria grupos de idosos. No meu caso, o interesse por essa área temática surgiu quando comecei a estudar um grupo de velhos médicos sanitaristas remanescentes das grandes campanhas de combate às endemias e vetores realizadas no país do início da década de 1930 até a de 1970. Após serem afastados de suas atividades em função da idade avançada, e inconformados com essa espécie de banimento a que foram condenados, eles resolveram, então, encontrar uma forma de se manter juntos, promovendo encontros periódicos que passaram a constituir locus privilegiado para o exercício de suas lembranças.
É exatamente esse status “vazio de papéis sociais” atribuído aos velhos em nossa sociedade que este livro tem o mérito de colocar em discussão. Nele estão presentes algumas das principais questões deste recente campo de estudo. Em seu conjunto, os artigos nele reunidos buscam compreender os significados e valores atribuídos pelos homens à sua experiência de vida. Quer referindo-se à relação da mitologia de sociedades banto-falantes com os sistemas etários e de parentesco, quer tratando das relação da velhice com o mundo do trabalho e da família na sociedade ocidental moderna, o que está em pauta é a análise dos símbolos e dos significados construídos em sociedade.
Na base desses estudos estão as noções de tempo, espaço e pessoa. Tais categorias, fundamentais em qualquer forma de organização social, são aqui apreendidas a partir do estudo dos significados construídos socialmente sobre as etapas da vida e pela compreensão das construções de identidade individual e coletiva na velhice em particular, etapa profundamente marcada pela consciência da finitude da vida. Além disso, busca-se compreender a construção de narrativas sobre o passado baseadas em memórias coletivas, o significado atribuído aos espaços sociais enquanto “lugares de memória” e a tensa relação entre tradição e mudança social.
O livro divide-se em três partes: ‘Velhice e espaço político’, ‘Formas de classificação e geração’ e ‘Identidade e memória’, correspondendo, cada uma delas, às diferentes ênfases atribuídas pelos autores a essas questões. No entanto, há em comum a singularidade do olhar antropológico. Na primeira parte, os artigos de Júlio Assis Simões e de Déborah Stucchi discutem a participação cada vez mais expressiva dos idosos no cenário político nacional e a conseqüente demanda por políticas públicas voltadas para essa parcela da população.
A proximidade com meu tema de estudo chamou minha atenção para o artigo de Júlio Assis Simões, que examina como aposentados e pensionistas passaram a se constituir em importantes atores no atual processo político e o que esse novo movimento social tem revelado a respeito da população idosa na sociedade brasileira contemporânea. Nesse artigo, o autor procura demonstrar como os aposentados, identificados em sua maioria como ‘velhos’ — categoria aparentemente marginal e circunscrita ao domínio das relações privadas — transformaram-se numa espécie de ‘corporação’, com demandas próprias e interesses e formas de atuação específicas no espaço público.
Iniciando com um breve histórico da organização do movimento dos aposentados, Assis conduz a análise do processo de constituição desse novo ator político focalizando a elaboração da identidade do movimento a partir da fala de lideranças e participantes das atividades das associações de aposentados em discursos públicos e entrevistas. Procura dimensionar também a repercussão alcançada pelas mobilizações dos aposentados na mídia, principalmente a partir do início da década de 1990, mostrando ainda como os militantes desse movimento legitimam a construção de suas formas particulares de organização com base na condição de ‘abandono’ a que se acreditam relegados.
Na segunda parte do livro, Guita Grin Debert aborda o estudo antropológico dos grupos etários e suas categorias classificatórias. Também nesse segmento estão os artigos de Clarice Peixoto, que procura traçar a trajetória da formulação pública de novos termos, noções e conceitos vinculados ao envelhecimento, e o de Theophilos Rifiotis, que analisa a forma de representação do ancião nessas sociedades, onde a oralidade é o modo privilegiado de transmissão e manutenção de conhecimento.
A contribuição de Guita Grin Debert é importante no sentido de revelar as armadilhas que o estudo da velhice, como tema de pesquisa, costuma apresentar para os antropólogos que pesquisam as representações e práticas ligadas ao envelhecimento, tanto em sua própria sociedade como naquelas muito distintas da sua. Para a autora, a pesquisa sobre o tema da velhice esbarra em algumas dificuldades, sendo a mais evidente delas a consideração de se tratar de uma categoria socialmente construída, fazendo-se, assim, uma distinção entre um fato universal e natural — o ciclo biológico que envolve o nascimento, o crescimento e a morte — e um fato social e histórico – a variabilidade das formas de conceber e viver o envelhecimento.
Ressalta-se, tanto da perspectiva da antropologia como também da pesquisa histórica, que as representações sobre a velhice, a posição social dos idosos na sociedade e o tratamento que lhes é dado pelos mais jovens ganham significados particulares em contextos históricos, sociais e culturais distintos. A partir do pressuposto de que a periodização da vida implica investimento simbólico específico em um processo biológico universal, a autora nos demonstra como a “terceira idade” é uma criação recente das sociedades ocidentais contemporâneas, e que sua invenção implicou a criação de uma nova etapa na vida, que se interpõe entre a idade adulta e a velhice, sendo acompanhada de um conjunto de práticas, instituições e agentes especializados, encarregados de definir e atender as necessidades de uma população que, principalmente nas duas últimas décadas, passou a ser caracterizada como vítima da marginalização e da solidão.
O artigo de Theophilos Rifiotis focaliza as condições de sociabilidade na “última etapa da vida”, construindo seu ensaio precisamente em torno do complexo fenômeno encoberto pela noção de etapas da vida, aceita como um fato biológico e universal. Partindo da análise de contos e lendas da literatura oral de sociedades banto-falantes, o autor procura demonstrar como aquelas sociedades desenvolveram uma noção de dinâmica etária, que envolve uma etapa posterior à da vida biológica, e como essa noção é importante para a definição das estruturas de sociabilidade entre os grupos etários nessas sociedades, sendo fundamental para a definição da condição de idoso.
Um ponto fundamental é que o material analisado por Rifiotis aponta, sobretudo, para a dificuldade de generalização sobre a condição do idoso nas sociedades tradicionais e para a necessidade de que ela seja interpretada a partir de um sistema específico que lhe dê sentido próprio. É importante ressaltar que as narrativas por ele analisadas foram coletadas junto a populações não urbanas, que vivem em aldeias no interior do continente africano, expressando uma configuração cultural específica que procura construir um tipo particular de pessoa e de cidadão.
Sua análise levou-o a identificar um tipo de narrativa na qual estão relatadas situações de conflito entre o grupo de jovens e o de idosos, que reporta a uma visão banto-falante sobre a ancianidade ligada ao dinamismo dos grupos etários e ao conflito entre eles. Através do exame dessas narrativas, o autor revela como elas podem ser compreendidas num duplo sentido: de um lado, os jovens, que devem reconhecer a sabedoria dos idosos e, de outro, os velhos, que precisam se preparar para a próxima etapa do ciclo vital, ou seja, atingir a condição de ancestrais.
A terceira e última parte do livro reúne os trabalhos de Myriam Moraes Lins de Barros, Cornélia Eckert, Maria Letícia Mazzucchi Ferreira e Alda Brito de Moura, e trata da relação entre memória e construção da identidade, compreendida no processo de envelhecimento. Myriam Lins de Barros, pioneira nesse campo de estudos no Brasil, enfoca algumas questões relativas à velhice das mulheres. Diante da dificuldade generalizada de se vislumbrar a velhice como questão, tanto por parte de estudiosos como pelos indivíduos em sua vivência diária, a autora chama atenção para a velhice das mulheres em particular, que nesse contexto se torna ainda mais insignificante. Enquanto que aos homens velhos é dada maior atenção pelo fato de se compreender a aposentadoria como uma mudança brusca de vida — passagem de uma vida ‘ativa’ e pública para um mundo doméstico e restrito —, a velhice nas mulheres passaria mais despercebida, na medida em que para elas seria apenas último estágio de um continuum sempre ligado à esfera doméstica, espaço ao qual a mulher está ideologicamente vinculada.
O artigo de Cornélia Eckert aborda a questão da memória e construção da identidade a partir de um estudo sobre os mineiros de carvão da cidade de La Grand-Combe, França, surgida em 1846 pela iniciativa de uma companhia de mineração que ali resolveu explorar o “ouro negro”. Mediatizando a relação entre os homens e o trabalho produtivo, essa companhia organizou toda a vida da cidade, fundando ali uma espécie de “ética do trabalho” como uma cultura — a cultura operária produtiva de capital. O domínio da companhia foi estabelecido não só nos espaços fundados, mas também na multiplicidade de relações sociais cotidianas, presentificando-se nas relações temporais dos grupos que habitavam a vila mineira pelo consenso de seu projeto de construção de uma comunidade de trabalho como “família corporativa”.
Com o esgotamento da atividade mineira, razão do enraizamento das famílias na localidade, e das conseqüentes transformações do espaço e das relações de trabalho, desencadeou-se uma crise que penetrou em todos os domínios da vida social. Sem a mina, a profissão desapareceu e, com ela, valores de referência de um grupo, de uma prática social e de um modo de vida. Mas, apesar de experimentarem essa ruptura violenta da história coletiva, os habitantes da cidade vivem o que a autora define como “dialética da duração”, uma espécie de recomposição social da vida cotidiana a partir de sua memória coletiva. E é desse ponto de vista que se torna possível compreender como este grupo operário se reorganiza, apesar do processo de desestruturação industrial e de desordem da identidade social da comunidade de trabalho. Será a partir das famílias de antigos operários ainda residentes na cidade, herdeiras de um tempo coletivo e portadoras da memória do grupo, que esse trabalho de reconstrução poderá ser realizado. E será nos diferentes domínios da vida social, nos tempos de interação e nos lugares de sociabilidade, que a reinvenção do cotidiano, a recriação dos pontos de referência, permitirá reatualizar as práticas sociais e reordenar o tempo coletivo para viver uma continuidade.
O artigo de Maria Letícia Mazzucchi Ferreira procura demonstrar como a memória, acionada sempre por um indivíduo inserido no presente, apresenta-se matriciando as identidades negociadas no processo interativo cotidiano. Seu trabalho tem por base pesquisa desenvolvida com idosos residentes em unidades domésticas, em sua maioria vivendo desacompanhados em casas que, por si, trazem as marcas do passado vivido, definidas pela autora como “casas-testemunho”, que remetem aos tempos da família e da juventude.
A abordagem da memória como processo social aparece interligada com a questão da velhice. Conceito inserido num repertório cultural, social e historicamente delimitado, a velhice transpõe o estatuto de processo biológico para o de uma construção social, atravessada, no momento atual, por uma ideologia da terceira idade, que atua postulando uma nova dinâmica para o envelhecimento. Nesse sentido, uma das preocupações da análise antropológica vem sendo a de estabelecer que representações sociais estão sendo formuladas sobre a velhice, como os sujeitos se definem velhos, como a idade cronológica instaura modificações no âmbito dos códigos de valores e como as sociedades elaboram e dispõem, no processo de interação social, as classificações etárias.
Nesse processo de definição de identidades, de afirmação do sujeito num universo de profundas alterações, cujo ritmo vertiginoso desafia a permanência de valores e representações sobre o mundo vivido, num contexto de rápida desintegração dos liames que unem os sujeitos ao passado, a memória e a lembrança desempenham papel fundamental. Dessa forma, discutir o papel da memória no processo de envelhecimento significa abordar o locus privilegiado de construção da identidade do ser velho e suas estratégias de afirmação nos espaços sociais. Ao refletir todo um universo de representações e significados, a memória constitui uma representação que os sujeitos fazem de sua própria vida. Assim, como recorte analítico, a memória é tratada pela autora com um nexo entre o indivíduo e seu mundo, sempre acionada do presente e disposta na interface entre o indivíduo e o social.
Finalizando o volume, o artigo de Alda Brito da Motta reconhece positivamente a emergência do tema da velhice e do envelhecimento, mas problematiza a questão. Segundo a autora, a discussão do que fazer com a população de idosos ganhou importância teórica, mas continua deixando em segundo plano o que pensam, como realmente vivem e, sobretudo, o que desejam os velhos. Nesse sentido, ressalta a importância de se refletir sobre o que significa ter determinada idade ou fazer parte de determinada geração na sociedade moderna ocidental.
Enfim, a questão fundamental que os artigos reunidos nesse livro colocam é que ser velho no mundo ocidental contemporâneo, assim como ser criança, jovem e adulto, remete a configurações de valores distintas de outros momentos históricos de nossa sociedade e de outras culturas. As diferenças de gênero, de classe, de credos religiosos, de etnia, assim como de inserção profissional estão, necessariamente, presentes nas construções das representações e das experiências do envelhecer.
Essas dimensões são fundamentais na análise deste grupo etário, que por sua vez, não se apresenta de forma homogênea, seja nas sociedades industriais contemporâneas, seja nas sociedades tradicionais. A consideração da diversidade cultural e a reflexão sobre essas diferenças são aspectos próprios da análise antropológica, e os artigos aqui reunidos tratam dessa questão ao apresentarem um processo comum a todos — o envelhecimento — através das formas distintas e específicas que ele assume para cada grupo social analisado.
Resenhista
Neiva Vieira da Cunha – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, IFCS/UFRJ. Bolsista do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. E-mail: neiva.vieira@domain.com.br
Referências desta Resenha
BARROS, Myriam Moraes Lins de (Org.). Velhice ou terceira idade? Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. Resenha de: CUNHA, Neiva Vieira da. O desafio de uma antropologia das idades. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.3, nov. 1999/fev. 2000. Acessar publicação original [DR]