Abarcar a complexidade analítica de uma viagem de circum-navegação no século XIX é um esforço monumental. Mary Anne Junqueira o empreendeu e foi muito bem-sucedida. Sua obra dá conta dos múltiplos aspectos envolvidos na jornada marítima de quatro anos, seis veleiros e 346 homens comandados pelo capitão Charles Wilkes. A viagem frutificou em um relatório de 23 volumes (cinco dos quais concentraram as narrativas do capitão), material que serviu como fonte para a pesquisa histórica.
Para além da grande dimensão da expedição, os interesses com que percorreu o globo foram variados e abrangeram os de investigação científica (em diversos ramos da ciência tais como a biologia e a cartografia), geopolíticos, simbólicos e estratégicos, que foram examinados com perspicácia pela autora. O trabalho, ademais, veio suprir uma lacuna historiográfica a respeito da U.S. Exploring Expedition, ausente mesmo da literatura estadunidense.
A mais evidente contribuição da obra para a historiografia é o exercício de escrita de uma história pós-colonial e transnacional, caracterizada pelo cruzamento de fronteiras e dos espaços nacionais ou, como a autora defende, por questionar, “os discursos entre norte e sul (categorias entre centro e periferia, modernidade e atraso etc.)” (p. 21). O desafio de aliar a perspectiva nacional à análise foi cumprido com rigor por meio da compreensão dos anseios de construção da nação estadunidense vigentes naquele momento; tal abordagem foi feita, no entanto, sem deixar-se cair em armadilhas teleológicas que reafirmariam a “excepcionalidade” do norte-americano.
A primeira parte de Velas ao Mar está dedicada aos objetivos científicos da expedição. A viagem do U.S. Explorer é examinada em relação às outras do tipo que ocorreram no mesmo período, envolvendo intenso diálogo entre nações e seus navegadores para a elaboração dos saberes cartográficos e náuticos. Diálogo que gerou uma construção coletiva de conhecimento sobre os oceanos, já que os acidentes topográficos, correntes marítimas etc. eram cuidadosamente registrados nos diários de viagem e, posteriormente, reavaliados e confrontados em novas expedições. O conhecimento sobre o globo era, sem dúvida, um instrumento de poder, do qual os Estados Unidos não queriam estar apartados. O volumoso investimento desse país no lançamento da dispendiosa viagem do U.S. Exploring Expedition já na primeira metade do século XIX não pode ser bem compreendido sem esta perspectiva, que a autora classificou como a busca “por um lugar no mundo”.
As navegações do século XIX não parecem ter sido tão ousadas quando comparadas às do século XVI, nas quais os mares que singravam eram praticamente desconhecidos. No entanto, alguns referenciais considerados essenciais para o deslocamento marítimo, como a longitude, não haviam sido convencionados de forma global, pois ainda “não havia meios de estabelecer a longitude de forma precisa em alto mar” (p. 46). Este processo de definição de coordenadas geográficas em alto mar não ocorreu sem disputas políticas e a eleição de Greenwich como o meridiano zero foi resultado de uma longa contenda entre Inglaterra e França, sendo a primeira vitoriosa. A autora atribui a essa lacuna nas cartas náuticas o cuidadoso mapeamento do Atlântico realizado pelo capitão Charles Wilkes durante a jornada da U. S. Exploring; sua missão serviu à verificação da topografia e à aferição de distâncias. Além do mais, assim como nos séculos anteriores, os riscos continuavam comuns às viagens de longo percurso, como mostra a perda de dois veleiros da expedição, no Cabo Horn e na barra do rio Colúmbia, no Pacífico.
Ao lado dos conhecimentos marítimos que se acumularam houve também os das mais variadas áreas das ciências naturais, resultantes da dedicação dos investigadores que integraram a expedição: um mineralogista, naturalistas, botânicos e dois artistas compunham a tripulação. Com a exigência prévia de haverem nascido em solo estadunidense (cumprida em sua totalidade, com exceção de um dos pesquisadores de nacionalidade escocesa), fica clara a intenção do governo dos Estados Unidos em configurar um campo de saber “nacional”, com a formação de quadros próprios em algumas áreas, por meio da profissionalização e da institucionalização. Ademais, a constituição de um discurso de saber próprio aos Estados Unidos aparecia em constante tensão com o “campo” europeu, já que desejava autonomia em relação ao velho continente e, ao mesmo tempo, integrar-se ao que a autora denominou “redes de conhecimento transnacionais”. Chama a atenção ainda o papel da U.S. Exploring Expedition na comprovação da existência de terra na Antártida, confirmando a teoria de que este território era outro continente, ainda que tenha havido disputas com a França e outras nações sobre a autoria do feito.
O caráter imperial da U.S. Exploring Expedition é atentamente focalizado na segunda parte da obra, salientando a aspiração de expansão territorial dos Estados Unidos que, vale lembrar, ainda não ocupara a costa oeste naquele momento. O interesse pelo Oceano Pacífico e pelo mapeamento da costa ocidental derivava da clara intenção de alargar os territórios, em harmonia com os princípios da Doutrina Monroe. Visando afastar o colonialismo europeu e entrar na corrida por novos territórios, a viagem de circum-navegação, diz Junqueira, foi marcada pelas “disputas entre as potências europeias que esquadrinhavam o planeta, rastreavam possibilidades, mapeavam costas e mares e estabeleciam colônias aqui e ali” (p. 41)
Nessa parte do livro, também estão expostas as questões teórico-metodológicas que orientaram a pesquisa. Ao indicar cuidados imprescindíveis no trato do relato de viagem como fonte para a investigação histórica, a obra contribui imensamente com as pesquisas nesta linha. Afirmando o caráter heterogêneo e híbrido dos relatos de viagem, a autora realça três pontos especialmente importantes. O primeiro diz respeito ao fato de, nas fontes, haver a inegável presença da transição entre o “aqui e o acolá”, implicada pelo deslocamento (real ou imaginário) do autor do relato. A segunda indicação trata da intencionalidade da escrita daquela espécie de relato, que sugere sempre a existência de um leitor ou “público-alvo”. Por fim, a relação intrínseca entre o relato de viagem e a memória, já que ele é sempre realizado posteriormente ao acontecimento.
Na mesma linha dessas reflexões, Junqueira assevera que o “gênero” relato de viagem, por ter despertado amplo interesse comercial, exigiria do historiador outras considerações com relação à autoria e à veracidade, já que “ornamentos” literários ou outros recursos estéticos poderiam ser utilizados para deixar a leitura mais interessante. Ela assinala também (p. 109) o caso da intertextualidade entre o relato de viagem e outros textos da mesma época – ficcionais ou não – como no bem conhecido livro Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, que se baseou nos relatos de um naufrágio ocorrido na costa do Chile. Tal constatação possibilita o entendimento das narrativas de viagem em diálogo com outras fontes, sendo estas resultantes de outros mediadores. Em síntese, o relato de viagem contém elementos de caráter científico, literário, ficcional, autobiográfico, propagandístico, memorialístico etc. Por conta disso, exigiria abordagem interdisciplinar e complexa.
A evidência de diálogo com outros textos da época é ainda mais valiosa para a análise dos períodos passados em terra pela expedição. Mesmo que pequeno, o espaço dado pelo relatório da U.S. Exploring Expedition aos territórios da América do Sul são importantes fontes para o conhecimento das Américas. No entanto, Junqueira ressalta que diversos relatos sobre este continente são, muitas vezes, fruto de informações colhidas indiretamente pelos autores, visto que eles poderiam permanecer pouco tempo em cada região. No caso da U.S. Exploring Expedition, com muita frequência as legações diplomáticas dos Estados Unidos nas regiões visitadasrecepcionaram a expedição e “orientaram” o capitão em sua interpretação sobre aquela realidade, oferecendo dados, relatórios e outros documentos; com essa informação, o historiador é desafiado a uma maior precisão na análise dos possíveis mediadores envoltos no texto de uma narrativa.
As constatações da obra com relação ao entendimento de Charles Wilkes sobre os países da América do Sul são importantes indícios dos sentidos que a ideia de raça poderia assumir em diferentes usos. Ainda que tenha sido um tema central para a ciência do século XIX – tributário da ânsia classificatória da natureza como um todo – a autora destaca que o capitão usava largamente a noção de raça nas suas interpretações dos países visitados, mas sempre de forma variável, tendo muitas vezes feito referência à cor, ao “lugar de origem” ou a alguma característica do grupo que o autorizava a usar a palavra “classe” como sinônimo. O que variava pouco, no entanto, era a escala de valores mesclada a essa noção, que situava sempre a “raça anglo-saxã”, da qual os norte-americanos faziam parte, no topo da evolução. Mesmo que a autora tenha demonstrado a falta de precisão no uso do anglo-saxonismo pelos norteamericanos, bem como tenha recuperado a ambiguidade nas origens do próprio termo, ser (e entender-se como) anglo-saxão estava na base dos mitos fundadores dos Estados Unidos (p. 144).
Uma excelente surpresa fica reservada ao último capítulo, quando outras narrativas da mesma viagem são incorporadas à análise. O quase “fortuito privilégio” da existência de diários produzidos por atores que não o capitão Charles Wilkes enriquece a pesquisa ao revelar as vozes dos personagens “subalternos”, como a do marinheiro Charles Erskine e do aspirante a oficial William Reynolds. Apesar do estrito controle sobre todos os produtos da viagem (p. 197), os relatos subsistiram à censura e permitem ao historiador o exame de outros pontos de vista, de aspectos do cotidiano da vida a bordo e de conflitos, bem como do modo particular de enxergar os Estados Unidos e as Américas como um todo.
Em síntese, o Velas ao Mar, de Mary Anne Junqueira, é fruto de uma pesquisa meticulosa, traduzida em um texto fluido e de agradável leitura. É uma contribuição fundamental para a história dos Estados Unidos e também das Américas, especialmente por nos fazer percorrer terras tão diversas, debates teórico-metodológicos e perspectivas analíticas inovadoras de forma integrada. Por conta disso, a leitura mesma se transforma em uma jornada para o conhecimento histórico.
Resenhista
Ângela Meirelles de Oliveira – Doutora em História Social pela FFLCH/USP e pesquisadora do Laboratório de Estudo de História das Américas (LEHA/USP). E-mail: angelamo@usp.br
Referências desta Resenha
JUNQUEIRA, Mary Anne. Velas ao Mar. U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos. São Paulo: Intermeios, 2015. Resenha de: OLIVEIRA, Ângela Meirelles de. Uma jornada para o conhecimento: ciência e império na circum-navegação do U.S. Exploring Expedition (1838-1842). Revista Eletrônica da ANPHLAC, 21, p. 298-302, Jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
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