Variedades de História do Trabalho | Mundos do Trabalho | 2018
Esta edição especial de Mundos do Trabalho reúne artigos e resenhas que elucidam, cada um a seu modo, a vitalidade e os caminhos recentes da história e da historiograia do trabalho. As contribuições (algumas delas apresentadas no V Seminário Internacional Mundos do Trabalho – “Trabalho, democracia e direitos”, realizado em Porto Alegre entre 25 e 28 de setembro de 2018) demarcam, inequivocamente, um discurso histórico crítico e engajado, que pauta o dossiê “Variedades de História do Trabalho”. Afora a diversidade de temas explorados em cada artigo, o dossiê convida-nos a reletir seriamente sobre os desaios políticos, sociais e teóricos que se impõem à construção de abordagens mais sensíveis às diferenças e desigualdades raciais, de gênero, de classe e suas interrelações (experiências que constituem o alvo privilegiado de um campo da ciência histórica preocupado com o social, sendo este o elemento a caracterizar uma prática historiográica genuinamente crítica1 ), sem perder de vista a enredada problemática do global, das escalas e suas conigurações na abrangência da dinâmica espaço-temporal.
Originalmente escrito para a mesa-redonda “História do trabalho, ensino e história pública”, o artigo de Pamela Cox (ora publicado em inglês e português) abre o dossiê chamando atenção para a difícil, porém urgente tarefa de traduzir a pesquisa acadêmica, no caso, para formatos televisivos populares destinados ao grande público. Seu artigo reconstitui a trajetória de séries e programas de televisão feitos na Grã-Bretanha da década de 1950 à atualidade, de modo a nuançar como a “fragmentação da expertise acadêmica e o empoderamento das audiências” implicaram mudanças no modo de contar histórias por meio da televisão, ao mesmo tempo em que trouxeram o público para o centro do processo de elaboração dessas histórias. O próprio envolvimento de Cox na realização de Servants: The True Story of Life Below Stairs (2012) e Shopgirls: The True Story of Life Behind the Counter (2014) – séries da BBC que narram experiências de trabalho de mulheres nos setores doméstico e comerciário, respectivamente – exempliicam essas mudanças. A produção de Servants e Shopgirls demonstra os ganhos que podem haver com o processo de tradução da história do trabalho para a televisão. Conferir visibilidade aos sujeitos “ocultos” da história, despertar emoções e transformar a história contada na televisão “atrai públicos ativos e cria espaço para a prática progressista”, argumenta Cox, ensejando caminhos para cruzar ativismo político e comunicação a serviço da produção historiográica.
Se a dimensão de gênero é central para Pamela Cox, na proposta de Benito Schmidt – discutida na mesa-redonda “Raça, gênero e classe na história social – visões interseccionais” – essa questão ganha outros contornos. Schmidt ressalta a importância de as pesquisas históricas valorizarem e reinarem abordagens interseccionais. Um dos caminhos nessa direção consiste em investigar experiências, narrativas e discursos de e sobre “trabalhadores sexualmente desviantes dos padrões heteronormativos”. Mais do que isso, seu artigo lança perguntas e provocações com vistas a estabelecer uma perspectiva queer para o estudo do mundo do trabalho. Nesse sentido, Schmidt aponta alternativas metodológicas e historiográicas a partir de casos como o Lampião da Esquina, publicado no Brasil da redemocratização e um dos primeiros veículos de imprensa marcadamente “homossexual”. Inspirando-se na crítica de Joan Scott ao termo experiência, Schmidt aponta a (in)visibilidade dos trabalhadores queer como o principal desaio metodológico a ser enfrentado pela história do trabalho, e advoga que as “metáforas do olhar e da visão” podem ajudar a capturar determinados elementos que o simples uso daquele termo, ou mesmo, as investidas em arquivos, não são capazes de revelar. Para o autor, não basta “tirar trabalhadores e trabalhadoras do passado do armário, mas compreender, por um lado, como a heteronormatividade ‘age’ sobre os sujeitos que compõem essa classe em diferentes momentos e lugares, estabelecendo hierarquias, conlitos e solidariedades, e, por outro, de que modo a LGBTQfobia se articula com as opressões de classe, raça-etnia, gênero, geração, pertencimento político, religioso, entre outras”.
Melina Kleinert Perussatto, por sua vez, desloca o enfoque do dossiê para as questões de raça e cor, em um exercício de aproximação entre a história social do trabalho e os estudos sobre o pós-abolição. O interesse particular de seu artigo recai sobre a trajetória de Tácito Pires, homem negro, nascido de ventre livre em 1874 em Porto Alegre, onde veio a falecer em 1939. Perussatto lança mão de uma estratégia de abordagem voltada, primordialmente, à reconstituição dos passos de Pires no contexto histórico da virada do século XIX para o XX. Desdobra-se desse esforço uma narrativa que dá a ver as maneiras pelas quais tal personagem se envolveu com a militância socialista no movimento operário, o magistério, a imprensa e a intelectualidade negra. Leitoras e leitores atentos perceberão a multiplicidade de projetos, ideias, práticas e formas de engajamento social que (con)formaram Tácito Pires, dentre os quais a participação ativa na refundação d’O Exemplo, veículo por meio do qual expressou suas concepções sobre raça, cor, trabalho e instrução. Perussatto chama atenção para o fato de que “a experiência de ter nascido de ventre livre e, de forma ampliada, de ser negro em um país organizado em linhas de cor e raça, modulou escolhas e posicionamentos”. E, conclui, defendendo que Pires “construiu nas brechas de uma sociedade hierárquica, excludente e desigual outras possibilidades de existir: tornou-se tipógrafo; fundou e pautou direitos por meio da imprensa e do movimento operário; refundou e editou um jornal negro; e encerrou a vida, assim como o padrinho que possivelmente lhe introduziu no mundo das letras, no magistério público; projetou e atuou na instrução popular”.
Já a problemática teórico-metodológica constitui o alvo de Henrique Espada Lima, apresentada sob a forma de comunicação na mesa-redonda “A História Global do Trabalho – redes e pesquisas”. A proposta de Espada Lima de certa maneira se aproxima da discussão lançada por Barbara Weinstein nas páginas do número anterior desta revista.2 Seu enfoque direciona-se à prática de uma história do trabalho atenta à dinâmica global, seja por meio de exercícios comparativos ou pela atenção sistemática a conexões e/ou integração de contextos históricos especíicos. Parte dos estudos produzidos nesse campo, conforme aponta, terminam por formular uma explicação teleológica das “origens da modernidade capitalista e da globalização” na tentativa de escreverem uma nova história do capitalismo, premissa que tende a enfatizar abordagens estruturais e sistêmicas, em detrimento das perguntas, das ferramentas e dos temas da história social. Espada Lima destaca ainda os lugares de produção da história global – ainda dominado por redes de pesquisadores formadas no hemisfério norte – e o papel que o Sul Global pode desempenhar no sentido de inverter esse quadro. Seu artigo termina aludindo àquele que pode ser considerado um dos ganhos a ser obtido no diálogo com a história global: “Não se trata de abraçar modelos, mas abrir-se à possibilidade de formular nossas perguntas em confronto com um mundo mais amplo de pesquisa e comparação”.
O dossiê completa seu percurso com uma importante pergunta do ponto de vista da história da historiograia, da história intelectual e da biograia. Ainal, “Como os historiadores se tornam historiadores?”. Emile Chabal oferece em seu artigo (também publicado em inglês e português) algumas respostas, mediante a reconstituição de aspectos da carreira acadêmica e da militância política de Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século XX. Chabal questiona a percepção, muito difundida em obituários e homenagens, de um Hobsbawm supostamente “destinado à grandeza”. Eis o contraponto que o orienta a pôr em evidência as escolhas, os interesses e as redes de contato e amizade que informaram a trajetória do historiador. Destaca-se, por exemplo, o envolvimento de Hobsbawm com a intelectualidade ligada ao comunismo europeu e britânico, conforme mostram registros do serviço secreto depositados no The National Archives. O Grupo de Historiadores do Partido Comunista, apoiado pelo Partido Comunista da Grã-Bretanha, propôs-se a reescrever a história inglesa em outros termos. Hobsbawm e seus colegas de ofício e militância (Christopher Hill, John Saville, Raymond Williams, Rodney Hilton, E. P. Thompson, entre outros) desempenharam papel fundamental na deinição dos problemas historiográicos a serem enfrentados. Chabal argumenta que o comunismo moldou a visão de mundo do historiador e o GHPC forneceu a ele e a seus companheiros de ofício e militância identidade de grupo, instrumentos de ação e análise política e argumento historiográico. Assim, aponta o autor, as discussões sobre a natureza do capitalismo britânico feitas no âmbito do grupo deram a Hobsbawm apoio e estímulo teórico para escrever “a primeira de suas histórias totais”, A era das revoluções, publicada em 1962, mas também lhe serviram de base para “recriar o mundo perdido das trocas políticas e intelectuais entre guerras”, reativando o ambiente de ideias e engajamento à esquerda existente nos anos 1930 em Cambridge e na London School of Economics.
A seção livre não foge à tônica do dossiê. Marcos Lázaro aborda a usina de açúcar e álcool São Martinho, localizada em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Seu objetivo consiste em analisar a gestão da força de trabalho e as relações entre capital e trabalho constituídas na usina. O artigo mostra que padrões de organização produtiva baseados no paternalismo conviveram com a introdução de métodos e processos de modernização do trabalho. A base empírica da proposta baseia-se nas entrevistas feitas com gerações de trabalhadores que passaram pela usina e membros de suas famílias. Assim, partindo dos elementos registrados nas entrevistas, Lázaro reconstitui laços sociais, hierarquias e rivalidades vivenciadas pelos trabalhadores, destacando, entre outros aspectos, a moradia, as estratégias utilizadas para garantir o ingresso dos ilhos dos operários na usina e as expectativas de ascensão social forjadas no interior das relações entre patrões e empregados.
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A partir desta edição, Mundos do Trabalho incorpora algumas novidades em seus números. A política editorial, que até o momento estava disponível apenas no site da revista, aparece disposta logo após a capa. Ela apresenta a iliação institucional, os objetivos, o foco e o escopo, as formas de submissão e de avaliação de originais, as instituições que apoiam a publicação bem como as bases indexadoras nas quais a revista se insere. O sumário, igualmente disponibilizado até então somente online, passa a aparecer como mais um guia de leitura, inserido antes da Apresentação de cada número.
Foram realizados ainda alguns ajustes no processo de submissão de contribuições. Além de textos em português, em diversas oportunidades a revista recebeu e publicou artigos em língua espanhola. Neste número, algumas contribuições de pesquisadores em inglês nos estimularam a adequar os idiomas aceitos pelos editores. Mundos do Trabalho começa a acolher, a partir de 2019, submissões em três idiomas: português, espanhol e inglês. Esta edição publica em primeira mão as versões em inglês e traduções para o português dos artigos de Pamela Cox e Emile Chabal, novidade que, esperamos, possa se repetir nas próximas edições e se tornar uma das marcas de Mundos do Trabalho.
Para facilitar a identiicação dos autores publicados, a revista passa a solicitar o link de seu registro no site ORCID, plataforma apoiada pelas maiores agências inanciadoras da pesquisa acadêmica no Brasil e no exterior. Essas alterações visam oferecer ao público uma revista em sintonia com os padrões oferecidos pelos periódicos cientíicos mais bem-conceituados entre os pesquisadores.
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E ncerramos esta breve Apresentação externando nossa preocupação com as recentes declarações e ações do recém-eleito presidente da República em todos os campos da administração. Além de manter a retórica beligerante da campanha eleitoral, eivada de preconceitos, racismo e sexismo, o governo empossado dá prosseguimento e aprofunda a política de cortes drásticos no orçamento da educação, da cultura e da ciência no Brasil. A dotação orçamentária da CAPES e do CNPq não lhes permitirá implementar nenhum de seus programas prioritários e até mesmo o pagamento de despesas ordinárias como bolsas de iniciação cientíica, mestrado, doutorado e pós-doutorado poderá ser comprometido. Na área econômica não é diferente. Não bastasse a aprovação da emenda constitucional que permitiu a terceirização ampla, geral e irrestrita, fato que provocou a precarização radical das condições de trabalho de milhões de pessoas com a cumplicidade do Supremo Tribunal Federal (STF), o novo ministro da pasta declarou como prioridade a implementação de uma reforma do sistema de Previdência Social que, se aprovada pelo Congresso Nacional, signiicará, na prática, a impossibilidade da maioria dos trabalhadores do país de se aposentar. Mundos do Trabalho denuncia esta que é uma das maiores conspirações contra os direitos da classe trabalhadora do Brasil e conclama seus leitores e colaboradores a darem ampla publicidade aos inúmeros estudos que desmascaram a farsa em torno do déicit da Previdência, nomeiam as grandes corporações capitalistas que devem bilhões de reais ao INSS e indicam com precisão os enormes interesses inanceiros dos bancos na poupança dos trabalhadores.
Notas
1 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. A historiograia no século XX: História e Historiadores entre 1848 e… 2025? São Paulo: EDUSP, 2017, especialmente as passagens da página 79 à página 84.
2 Cf. “Globalizando a História do Trabalho: o caso da International Labor and Working-Class History”. Mundos do Trabalho, v. 9, n. 18, jul.-dez. de 2017.
Organizadores
Aldrin Castellucci – Doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Titular de História do Brasil da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Campus II). E-mail: acastellucci@uneb.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0957-5479 .
David P. Lacerda – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutorando no Departamento de História, UNICAMP. Pesquisador do CECULT. Bolsista da FAPESP (2017/10459-1). E-mail: davplacerda@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0223-9683
Nauber Gavski da Silva – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-doutorando no Departamento de História, UNICAMP. Pesquisador do CECULT. Bolsista da FAPESP (2016/02398-0). E-mail: naubergs@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6700-0417 .
Referências desta apresentação
CASTELLUCCI, Aldrin; ACERDA, David P.; SILVA, Nauber Gavski da. Apresentação. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 10, n. 19, p. 9-13, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]