GALLAGHER, Shaun. Variations on embodied cognition (p. 26-47). In: GALLAGHER, S. Enactivist interventions: rethinking the mind. New York/Oxford: Oxford University Press, 2017. Resenha de: MEURER, César Fernando. Embodied cognition: quatro variações teóricas. Synesis, Petrópolis, v.10, n.1, p.214-221, jan./jul., 2018.
Shaun Gallagher, professor no departamento de filosofia da Universidade de Memphis, no Tennessee (USA), recentemente publicou um volume com nove capítulos em torno do enativismo (Gallagher, 2017). A presente resenha, que tem um caráter de divulgação, foca o capítulo dois. Nele encontramos uma visão panorâmica muito interessante do paradigma da embodied cognition [doravante EC].
Gallagher inicia o capítulo constatando que “uma variedade de abordagens no estudo da cognição têm sido estreitamente associadas à noção de embodiment […] Dadas essas diferentes perspectivas, não há um consenso forte acerca de qual peso dar a esse conceito” (p. 26).1 Por conta disso, ele prossegue, é importante mapear os vários sentidos de EC, “começando com uma concepção mínima ou fraca, que equipara embodiment com representação do corpo no cérebro, e terminando com uma concepção de embodimentradical” (p. 27). O resultado é um quadro composto por quatro posições teóricas: EC mínima, EC funcionalista, EC biológica e EC enativista. Para caracterizar essas posições, Gallagher serve-se de questões originalmente propostas por Goldman e Vignemont (2009, p. 158).
A Fig. 1 é uma versão ampliada da tabela “Diferentes teorias da embodied cognition” (Gallagher, 2017, p. 43). As duas últimas linhas são acréscimo meu (autor da resenha):
Com o intuito de entender o lugar e o papel do corpo humano na cognição, Goldman e Vignemont (2009) lançaram mão da noção de representações em formato B [B-formatted representations], sugerindo que esse é um conceito central para levar adiante o programa da EC. Trata-se fundamentalmente, Goldman explicaria em publicação posterior (2012, p. 73), de “representar estados do próprio corpo e, de fato, representá-los desde uma perspectiva interna”. Por isso, formato B (do inglês Body). Com efeito, um leque amplo de estados corporais – condições fisiológicas tais como dor, temperatura, coceiras, sensações musculares e viscerais, batimentos cardíacos, respiração, sede, fome etc. –, bem como estados de humor, sentimentos e estados interoceptivos podem, em tese, ser representados nesse sentido.
A primeira ideia central da EC mínima é que as representações B são mentais ou, se preferir, internas ao cérebro. Segundo Goldman (2014, p. 104), isso não implica qualquer concessão ao ceticismo, uma vez que o conteúdo dessas representações requer, ele argumenta, que o cérebro esteja em uma conexão causal com o corpo.
Para os proponentes da EC mínima, representações em formato B estão na base de múltiplos processos cognitivos, incluindo a cognição social e processos cognitivos superiores. O raciocínio que leva a essa conclusão pode ser esquematizado assim: (1) Originalmente, essas representações diziam respeito ao próprio corpo; (2) Na natureza, vigora o princípio da reutilização, isto é, “circuitos neurais originalmente estabelecidos para um uso podem ser reutilizados ou redistribuídos para outros fins, mantendo sua função original” (Gallagher, 2017, p. 31); (3) A capacidade de produzir representações em formato B foi cooptada para representar outras coisas. Tais representações adicionais ou derivadas “também contam como embodied cognitions” (Goldman 2012, 74). Gallagher (p. 32) considera questionável esse raciocínio de reutilização: ele envolve o conceito evolucionário de exaptação, que funciona para explicar processos em uma escala evolucionária, mas não para explicar mudanças ontogenéticas.
Para Gallagher, a EC mínima deixa a desejar em vários aspectos: “ela defende uma visão internalista que não é inconsistente com a concepção de cognição de um cérebro sem corpo em uma cuba” (p. 34); e a redução do corpo a um conjunto de representações é em nada inconsistente com o modelo computacional clássico (p. 34).
Gallagher inicia a descrição dessa posição com um comentário provocativo: por um lado, “a noção de um funcionalismo incorporado é trivial, uma vez que sistemas funcionalistas precisam ser fisicamente incorporados”; por outro lado, a ideia resulta ser “levemente contraditória, já que o funcionalismo se caracteriza por certa indiferença em relação à fisicalidade que sustenta o sistema (neutralidade em relação ao corpo; capacidade de realização múltipla)” (p. 35). Não obstante, a ideia de uma EC funcionalista ganha importância no âmbito das discussões da hipótese da mente estendida.
Clark é o principal proponente da EC funcionalista, segundo a qual “o corpo tem um papel importante como parte dos mecanismos estendidos da cognição” (p. 35). A ideia pode ser parafraseada assim: a cognição humana serve-se de estruturas neuronais e de estruturas não-neuronais. Assim, “o corpo físico, bem como aspectos e objetos no ambiente, podem funcionar como veículos não-neurais para processos cognitivos, desempenhando uma função semelhante aos processos dos neurônios, os principais veículos de cognição na visão clássica. O corpo é parte de um sistema cognitivo alargado que começa com o cérebro e inclui corpo e meio ambiente” (p. 35).
Para a EC funcionalista, as peculiaridades sensório-motoras do corpo humano não são componentes essenciais para a cognição. Em tese, animais de outras espécies (i.e., outras contingências sensoriais e motoras) podem experimentar aspectos do ambiente da mesma maneira que os humanos.
Essa posição ganha o adjetivo ‘biológica’ em virtude da importância que atribui à anatomia e aos movimentos corporais. Embodiment biológico significa que “as características estruturais extra-neurais do corpo moldam [shape] a nossa experiência cognitiva” (p. 37). Nas palavras de Shapiro (2004, p. 190), “a questão não é simplesmente [ou trivialmente] que processos perceptivos se moldam à estrutura corporal. Processos perceptivos dependem e incluem estruturas corporais”.
Na apresentação da EC biológica, Gallagher dedica vários parágrafos à revisão de literatura que mostra que as características estruturais do nosso corpo são determinantes para a nossa cognição. Cabe destacar i) o fato de termos dois olhos, em determinada posição, permite visão em profundidade; ii) a posição e estrutura dos nossos ouvidos externos permite, por exemplo, identificar a direção de sons; iii) fazemos diversos ajustes proprioceptivos em situações nas quais há conflitos perceptivos; iv) alteração da postura leva a alterações na percepção do espaço e a mudanças relativas às noções de horizontal e vertical, v) mudanças hormonais – questões da regulação química do corpo – influenciam diversos processos perceptivos, a memória, a atenção, e a tomada de decisões, iv) corpo cansado ou faminto influencia os processos cognitivos, vi) hipoglicemia modula o cérebro, ocasionando em certos casos o “desligamento” de certas funções cerebrais.
Segundo a EC biológica, nosso cérebro “leva em consideração as contribuições dos processos físicos em sistemas periféricos e autônomos” (p. 39). Essa é uma resposta interessante à hipótese do cérebro em uma cuba. Em síntese: sem as contribuições de sistemas periféricos autônomos (i.e., sem um corpo, com todas as suas contingências), um cérebro em uma cuba jamais pode ter experiências e processos cognitivos similares aos humanos. “Para replicar a experiência humana, ou algo similar a ela [em uma cuba], precisaria replicar tudo o que o corpo biológico entrega em termos de pré e pós-processamento, bem como a química hormonal e neurotransmissora e a vida afetiva” (p. 39-40). Em termos mais gerais, não é tão simples compatibilizar a EC biológica com o computacionalismo clássico.
Ao enfatizar “a ideia de que a percepção é para a ação, e que essa orientação para a ação molda a maioria dos processos cognitivos” (p. 40), a EC enativista resulta ser a mais radical das quatro posições. Em termos simples, essa posição considera que a cognição humana não está inteiramente “dentro da cabeça”, mas encontra-se distribuída entre cérebro, corpo e ambiente. Por conta disso, entende-se que i) a teoria dos sistemas dinâmicos não-lineares é apropriada para compreender essa complexa interação; ii) as tradicionais noções de representação e computação são inadequadas; iii) a decomposição da cognição em subsistemas internos (módulos) é enganosa e pode ser substituída com vantagem pela ideia de sistemas dinâmicos acoplados uns aos outros.
Para a EC enativista, o cérebro ele mesmo é um sistema dinâmico. Ele faz o que faz por estar acoplado a outro sistema dinâmico, o corpo. Este, por sua vez, também é um sistema dinâmico e faz o que faz por estar acoplado ao cérebro, por um lado, e ao ambiente, por outro lado. No final das contas, tem-se um sistema dinâmico maior que abrange cérebro, corpo e ambiente. Com outras palavras: para compreender o cérebro, é preciso considerar as interações dinâmicas deste com o corpo e com o ambiente.
Sob esse prisma, tanto “os aspectos biológicos da vida corporal, incluindo a regulação orgânica e emocional de todo o corpo” quanto “os processos de acoplamento sensório-motor entre o organismo e o ambiente” têm um “efeito penetrante na cognição” (p. 41). Outro modo de dizê-lo (tentativa minha, autor da resenha): um sistema dinâmico é um sistema de relações causais recíprocas múltiplas entre corpo, cérebro e ambiente. É cientificamente possível delimitar o foco, isto é, dedicar-se ao exame de algumas dessas relações. No entanto, tal estudo não pode ser feito de modo cartesiano, visto que as relações em exame repercutem de modo não-linear um complexo conjunto de outras relações.
Para a EC enativista, já mencionei na abertura da presente seção, a percepção é orientada para a ação. À luz dos trabalhos de Alva Noë (2004), a percepção é uma atividade pragmática e exploratória. Trata-se de uma orientação pragmática não apenas para o ambiente físico, mas também para o ambiente social e cultural (Gallagher, 2017, p. 42).
A visão panorâmica de Gallagher é interessante por diversos motivos. Primeiro, ela mostra que é falsa (ou ao menos imprecisa) a ideia segundo a qual a EC é antirrepresentacionalista. De fato, três versões da EC admitem representações mentais. Segundo, é falso o entendimento de que a EC é incompatível com o computacionalismo clássico. Como vimos, apenas a EC enativista é oposta ao computacionalismo. Terceiro, o quadro panorâmico é útil para situar debates internos à EC, como por exemplo as disputas entre funcionalistas e enativistas.
Concluo sugerindo uma estratégia de leitura: leia o capítulo 2, aqui resenhado, e em seguida passe para qualquer um dos demais capítulos, conforme o seu interesse. O capítulo 3 posiciona a EC funcionalista e a EC enativista em relação ao pragmatismo. O capítulo 4 apresenta uma discussão aprofundada do conceito de intencionalidade, tanto à luz do enativismo, como também do behaviorismo e do neopragmatismo. O capítulo 5 examina criticamente o nexo da ação com representações mentais. O capítulo 6 trata de modelos inferenciais no âmbito da filosofia da percepção. O capítulo 7 examina o conceito de livre-arbítrio, tal como ele aparece na filosofia e nas neurociências do nosso tempo. O capítulo 8 tece considerações enativistas sobre estados de humor [moods], sentimentos e intersubjetividade. O capítulo 9 versa sobre possíveis explanações enativistas de processos cognitivos superiores, isto é, processos que envolvem memória, imaginação, reflexão e abstração.
Nota
1 A tradução dessa e de todas as demais citações diretas é minha (tradução livre).
Referências
GALLAGHER, Shaun. Variations on embodied cognition. In: GALLAGHER, S. Enactivist interventions: rethinking the mind. New York; Oxford: Oxford University Press, 2017. p. 26-47. https://doi.org/10.1093/oso/9780198794325.001.0001
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César Fernando Meurer – Universidade Federal de Uberlândia, Brasil. Doutor em Filosofia. Postdoctoral Visiting Scholar no Departamento de Filosofia da Università Degli Studi di Milano, Milão, Itália (2017-2018). Pós-doutorando no Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1092880964040421. E-mail: cfmeurer@yahoo.com.br
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