Vacina antivariólica: ciência/ técnica e o poder dos homens (1808-1920) | Tania Maria Fernandes
O livro de Tânia Fernandes, recentemente lançado pela Editora Fiocruz, é produto de sua dissertação de mestrado defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Aqueles que apenas passarem os olhos pelo título do livro e o tema tratado com certeza se lembrarão do também recente trabalho de Sidney Chalhoub, que aborda a questão da vacina antivariólica (Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial, São Paulo, Companhia das Letras, 1996). Entretanto, as semelhanças entre os dois livros terminam aí. As diferentes abordagens escolhidas pelos autores e a originalidade da trajetória e do enfoque de Tânia Fernandes tornam-se evidentes à medida que nos debruçamos sobre o livro da pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz. Enquanto o trabalho de Chalhoub está mais voltado para uma história cultural e procura resgatar as resistências da cultura popular carioca à prática da vacina, Fernandes volta sua atenção para a história da ciência, privilegiando a história da vacina propriamente dita, incluindo-se neste aspecto não apenas a história dos institutos encarregados de produzi-la e aplicá-la, mas também o conhecimento técnico e científico envolvido na sua produção.
Registre-se que, ao estudar as práticas científicas e as técnicas envolvidas na produção da vacina, Fernandes preocupa-se em mostrar como as concepções científicas não podem ser dissociadas das práticas políticas e dos interesses profissionais da comunidade médica, fugindo de qualquer compromisso com uma história ‘heróica’ da ciência. Esta perspectiva fica bastante evidente no capítulo três, onde analisa os conflitos políticos entre o barão de Pedro Affonso e Oswaldo Cruz em torno da concepção de a quem caberia o monopólio de produzir e aplicar a vacina: ao Estado ou à iniciativa privada. O barão de Pedro Affonso, primeiro médico a produzir com sucesso a vacina antivariólica animal e diretor do Instituto Vacínico Municipal do Rio de Janeiro entre 1894 e 1920, defendia seu monopólio privado conquistado ainda no final do Império, quando conseguiu reproduzir a vacina animal no país. Oswaldo Cruz, diretor do então Instituto Soroterápico e representante de uma tendência centralizadora e estatista, defendia a incorporação do Instituto Vacínico ao Instituto Soroterápico e o fim do monopólio privado de Pedro Affonso.
Um outro ponto importante do trabalho de Tânia Fernandes e um dos pontos altos do seu livro está na ênfase que dá à análise da ação do Instituto Vacínico Municipal. O instituto criado por Pedro Affonso é, geralmente, apenas mencionado de passagem em trabalhos históricos que abordam a Revolta da Vacina, porém o livro de Tânia Fernandes é o primeiro estudo mais sistemático sobre esta peculiar agência de saúde situada numa zona fronteiriça entre o interesse estatal e o privado.
O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, são discutidas as relações entre ciência, técnica e produção, abordando-se a invenção da vacina no século XVIII, pelo médico Edward Jenner, e as reflexões de Pasteur sobre a descoberta de Jenner. Nesse sentido, a autora mostra como a medicina experimental incorporou a vacina antivariólica ao procurar identificar a etiologia da doença e o “mecanismo imunológico” do processo. Entretanto, ressalte-se que, ao contrário do que pensam os leigos, não foi a medicina pasteuriana que criou o conceito de imunidade. Numa das discussões mais interessantes desenvolvidas no livro, são identificados os avanços na medicina a partir das modificações conceituais de categorias científicas, mostrando como a microbiologia pasteuriana alterou o conceito de vacina, porém não elucidou o processo imunológico. Para Pasteur, a vacina antivariólica era concebida como a doença em sua forma mais branda. Este “ponto fraco” da microbiologia, segundo Fernandes, proporcionaria argumentos para alguns autores identificarem na “imunologia” uma ciência autônoma, posterior a Pasteur.
O segundo capítulo trata do “processo de estruturação dos serviços de saúde – em especial aqueles vinculados à vacina antivariólica – e as discussões e alterações travadas no âmbito técnico-científico, tendo como agente central o Estado imperial” (p. 29). Dentro desta proposta, a autora descreve as iniciativas – e também os fracassos – governamentais no sentido de produzir e aplicar a vacina antivariólica no Brasil, desde a criação da Junta Vacínica (1811), passando pelo Instituto Vacínico do Império (1846), a Junta de Higiene Pública (1850) e os experimentos com a vacina animal na Escola Veterinária de Pelotas (1884). Ao mesmo tempo, são discutidos os debates científicos decorrentes da identificação dos limites da eficácia da vacina jenneriana e as subseqüentes experiências com a vacinação animal, a nova técnica de vacina que se mostrava mais eficaz no combate à doença do que a vacina humanizada.
As limitações técnicas (além das resistências culturais) da vacina jenneriana e o fracasso (até 1887) de produzir a vacina animal no Brasil, aliados à ineficácia das políticas de saúde governamentais, vão criar condições para o surgimento do Instituto Vacínico do Rio de Janeiro, instituição particular dirigida pelo barão de Pedro Affonso. Com a extinção do Instituto Vacínico do Império em 1886 e o fracasso das tentativas de produzir vacina animal na Escola Veterinária de Pelotas, em 1884, a vacinação antivariólica estava praticamente desativada no país. Para complicar o quadro da saúde pública no Rio de Janeiro, as epidemias de varíola eram recorrentes e tornaram-se ainda mais freqüentes no final da década de 1880. Nesta conjuntura de vazio de políticas públicas e agravamento do quadro nosológico, o barão de Pedro Affonso conseguiu, em 1887, produzir com sucesso vacina a partir de vitelos, na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Esta conquista marcou uma nova etapa tanto técnico-científica quanto político-administrativa na produção da vacina antivariólica no Brasil. A vacina animal, já empregada com sucesso na Europa e muito mais eficaz que a vacina jenneriana, passou, a partir da iniciativa do barão, a ser produzida no país. Fortalecido por seu prestígio científico e suas relações políticas, Pedro Affonso conseguiu do governo um contrato para produzir e aplicar a vacina, criando um instituto particular (Instituto Vacínico do Rio de Janeiro), que praticamente monopolizou a produção de vacina antivariólica no Brasil até 1920.
No terceiro e último capítulo, a autora privilegia a análise do Instituto Vacínico Municipal do Rio de Janeiro, entre 1894 e 1920, e os combates entre o barão de Pedro Affonso e Oswaldo Cruz. Para Pedro Affonso, a organização das instituições de saúde pública deveria passar pela participação da iniciativa privada, subvencionada pelo Estado, enquanto Oswaldo Cruz estava comprometido com o projeto de um aparato de saúde público e centralizado nas mãos do governo federal. Os conflitos entre os dois personagens tornaram-se evidentes em 1904, por ocasião da reorganização dos serviços sanitários e da obrigatoriedade da vacina; porém, nesta ocasião, o barão de Pedro Affonso saiu vitorioso e renovou o contrato de seu instituto com o governo. Entretanto, apesar da vitória momentânea do barão, formou-se, a partir daquele momento, uma tendência centralizadora que se tornou vitoriosa em 1920, quando os sanitaristas herdeiros de Cruz conseguiram transformar a instituição de Pedro Affonso num órgão do Instituto Oswaldo Cruz, retomando o monopólio da produção de vacina antivariólica para o Estado.
Outras questões, entretanto, também estavam em jogo nesta luta. Uma dizia respeito aos interesses pessoais e corporativos em jogo; a segunda estava relacionada ao avanço da medicina experimental no Brasil, representado por Oswaldo Cruz e seu grupo. Pedro Affonso e seu instituto não desenvolviam pesquisas sobre a vacina ou a varíola, limitando-se a incorporar inovações tecnológicas no sentido de aperfeiçoar a conservação da vacina; por exemplo: o uso de glicerina como conservante. Curiosamente, entretanto, apesar da incorporação do Instituto Vacínico ao Instituto Oswaldo Cruz, em 1920, a técnica de produção da vacina não se alterou radicalmente e “o uso do vitelo continuou a comandar a produção do imunoterápico no Brasil”. A explicação aventada pela autora, de que o Instituto Oswaldo Cruz não teria assumido técnicas mais avançadas “com receio de romper com a tradição” (p. 86), talvez merecesse maiores investigações.
A formação profissional de Tânia Fernandes, como farmacêutica e sanitarista com mestrado na Fiocruz, com certeza contribuiu para o seu domínio sobre um conhecimento de química e biologia que a maioria dos historiadores que se aventuram pela história da saúde pública não têm. Nesse sentido, a autora tem uma vantagem diante dos historiadores de formação que, muitas vezes, não sabem a distinção entre um vírus e uma bactéria. Entretanto, ao fazer história da saúde pública, Fernandes algumas vezes incorre em alguns ‘deslizes’ de informação histórica que seriam facilmente corrigidos por uma revisão mais cuidadosa. Por exemplo, a autora nomeia algumas vezes d. João VI como “imperador” (p. 31), refere-se ao Rio de Janeiro de 1887 como “capital republicana” (p. 40), além de resumir num parágrafo simplista (p. 48) a complexa política oligárquica da República Velha. Um outro problema do livro está no descuido com as referências documentais citadas no texto. É verdade que Fernandes utiliza-se de uma bibliografia e documentação variadas – incluindo-se, nesse caso, o uso de iconografia. Porém, muitas de suas citações documentais estão incorretas, impossibilitando futuros pesquisadores de seguirem seus passos. Por exemplo, citar documentos como pertencentes ao “acervo do Arquivo Nacional” ou ao “acervo da Casa de Oswaldo Cruz” ajuda muito pouco àqueles que, interessados no tema, gostariam de consultar os documentos citados pela autora.
Estes deslizes, entretanto, não comprometem o trabalho no que ele tem de mais específico e original: a história da vacina antivariólica no Brasil. O livro de Tânia Fernandes, pela importância do tema e pela amplitude das questões levantadas, torna-se uma contribuição importante para reflexões mais gerais relativas à história da ciência no Brasil. Além disso, Vacina antivariólica, pela sua abordagem original e pelo texto agradável de ser percorrido, é um livro que merece ser lido não apenas pelos estudiosos da história da ciência, mas também pelo público educado em geral.
Resenhista
André Luiz Vieira de Campos – Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Referências desta Resenha
Fernandes, Tania Maria. Vacina antivariólica: ciência, técnica e o poder dos homens (1808-1920). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. Resenha: CAMPOS, André Luiz Vieira de. A história e o conhecimento envolvido na produção da vacina antivariólica. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.1, mar./jun. 2000. Acessar publicação original [DR]