No segundo semestre de 2016, paralelamente à 4ª edição da Trienal de Arquitetura (1), inaugurou-se em Lisboa o MAAT, o museu de arte, arquitetura e tecnologia de Lisboa, causando polêmica ao introduzir a capital lusitana no pulsante circuito global de arquiteturas espetaculares.
Entretanto, não é a arquitetura do MAAT, projetado pela arquiteta inglesa Amanda Levete, que proponho apresentar nesta resenha, tampouco as obras de sua exposição inaugural: “Utopia/Dystopia, A paradigma Shift in Art e Architecture”. O destaque aqui é a publicação do livro homônimo, lançado em março de 2017 (2), que por sua vez não é um mero catálogo da exposição, mas uma ambiciosa coletânea de ensaios inéditos, focados em refletir os impulsos utópicos e distópicos que dominam o homem desde o inicio da modernidade. Há um evidente tom de manifesto, fortalecido pela publicação em edição bilíngue. Livro e exposição trabalham como entidades complementares, ainda que autônomas, tornando-se o primeiro compêndio a explorar as diferentes abordagens de artistas contemporâneos, arquitetos e teóricos sobre as dualidades e tensões em torno do par utopia/distopia.
500 anos de Utopia
A relevância da discussão é imensa, não apenas pelo fato de estarmos diante da comemoração dos 500 anos da publicação de Utopia, livro clássico do humanista Thomas More que inaugura tanto o conceito, como o gênero literário, mas também devido aos acontecimentos do último quarto do século 20: o ocaso dos sonhos utópicos que moveram grande parte da humanidade e o receio de que em seu lugar, nas entranhas do cotidiano, restasse-nos apenas uma apática distopia.
Entretanto, embora as noções de utopia e distopia sugiram polos distantes, é possível que haja, na verdade, apenas uma linha tênue entre elas. É o que sugere, Pedro Gadanho (3), no ensaio inicial “Utopia/Distopia: Breve história de uma dualidade incomoda” (4).
Para o autor, a ideia utópica, distanciada da condição de não lugar (5), ao ser replantada da imaginação para uma localização física, ao invés de florescer acaba por cair em fracasso e distorção, algo que a aproxima de uma distopia.
A distopia, no entanto, esta seria mais aguçada em discernir os erros de uma modernização triunfante, servindo também de contrapeso à euforia utópica. Dessa maneira, as distopias emergem como uma atitude crítica às utopias das grandes narrativas de progresso e melhoramento social emergidas no Ocidente, culminadas na explosão de Hiroshima. Atualmente, a noção de distopia é usada pelo senso comum como mera referência pejorativa ao presente. Porém, antes de infiltrar-se na cultura do dia-a-dia, o termo, ainda que carregado de ressonância sinistra, fora adotado pelas práticas culturais da arte e da arquitetura como instrumento de crítica em face do presente. Em última análise, ao evidenciar, por exemplo, as mudanças climáticas ou desigualdades sociais do seu tempo, as distopias podem dar origem a uma atitude otimista em relação à vida, ao menos como impulso para ação política e crítica do mundo.
Em linhas gerais, diante da crise em que se encontra o mundo pós-moderno, é possível notar que os artigos do livro apontam em unanimidade para a obsolescência do conceito tradicional de utopia. De outro lado, também é geral a urgência em recuperar, ao menos em alguma medida, o potencial vital que as representações ideais são capazes de desencadear. O paradoxo, portanto, se resume na seguinte questão: se é justamente nos momentos de crise da história que os projetos utópicos se tornam mais urgentes, como faremos agora, imersos numa crise que decorre justamente do maior fracasso histórico já experimentado pelas próprias empreitadas utópicas? Passados ainda alguns impulsos distópicos emergidos nos anos 1970, com grupos como Archizoom, Archigram e Superstudio, será ainda possível nutrir sonhos de mudança ou estaremos fadados a visões escatológicas?
Para além do impossível: por uma expansão das ideias de utopia e distopia
É possível identificar uma afinidade entre os textos de Susana Ventura, Antoine Picon e Keller Easterling: ainda que com intensidades diferentes, os três sugerem romper com a ultrapassada lógica binária de utopia/distopia.
Em “Bem-vindos ao paraíso”, a arquiteta e curadora da exposição, Susana Ventura (6), se propõe a responder às seguintes indagações: será que utopia e distopia continuam sendo os impulsos de criação de novas realidades? Que realidade a arquitetura contemporânea cria a partir desses dois conceitos?
Em busca de respostas, Ventura propõe uma viagem pelas obras da exposição, a partir das quais identifica três hipóteses diferentes.
Na primeira, sobre a consciência utópica, ela apresenta obras de arte de cunho realista revolucionário, que, carregadas de consciência do utopismo, compõem uma crítica experimental, numa espécie de chamado à ação política através da arquitetura. Nesta seção, Ventura apresenta obras de artistas como Jonas Staal (Nosso Lar, Brasília, 2014), que acreditam que arquitetura e ideologia se constroem mutuamente.
Na segunda hipótese, sobre a forma utópica, as obras selecionadas por Ventura consistem em propostas distópicas pertencentes ao segundo movimento de vanguardas do século 20, que, por sua vez, colocaram-se a imaginar a arquitetura do futuro a partir da criação de formas fictícias e impossíveis. Ventura destaca, entretanto, que ao invés de desejarem sua exequibilidade, estas formas utópicas assumem um poder de crítica ao presente. Como destaque, aparecem as críticas ao muro de Berlim, reinventado como distopia urbana de Londres em Exodus de Rem Koolhas, Madelon Vriesendor, Elia e Zoe Zenghelis ou à cidade do superconsumo do Archizoom.
Por fim, a terceira e última hipótese é sobre a função utópica. Nesta seção, Ventura reflete sobre como visões utópicas e distópicas podem atuar como um discurso social efetivo. Aqui, as obras selecionadas pela autora carregam a seguinte afinidade: o lugar deixa de ser uma representação utópica, abrindo espaço para a obra em si tornar-se um mecanismo através do qual haveria possibilidade da efetiva realização de mudança. Um exemplo claro disso é a proposta Kitchenless City (uma cidade composta por blocos residenciais, cujos apartamentos não tem espaço de cozinha, servindo-se os habitantes de uma cozinha comunal localizada centralmente), da feminista Anna Puigjaner. Este trabalho, ao contrário dos Siedlungen alemães, é um modelo arquitetônico imbuído dessa função utópica, uma vez que incorpora a utopia tanto ao nível da produção, quanto ao nível das relações familiares cotidianas.
Livro “Utopia/Dystopia, A Paradigma Shift in Art e Architecture”, páginas do interior do livro, organização de Pedro Gadanho, João Laia e Susana Ventura
Foto divulgação
A conclusão desta reflexão gira em torno da noção da importância política tecida pelas utopias, bem como evidencia os desejos individuais despertados pelas formas distópicas futurísticas. Neste ponto, a autora chama a atenção do leitor para este lugar onde habita o desejo humano: o Paraíso, que, segundo ela, não se trata de um lugar de emancipação da fantasia, tampouco o lugar de ruptura criado pela distopia, sendo entretanto, o espaço intercalar onde ambos os estados (utópicos e distópicos) tornam-se ativos e operativos (o espelho de que nos fala Michel Foucault – as heterotopias).”
Em “A arquitetura e a armadilha da distopia”, o historiador e arquiteto Antoine Picon (7) direciona seu raciocínio para a reflexão acerca das emoções geradas pela arquitetura, de modo a evidenciar o quão superficial é o enquadramento da mesma dentro da dialética utopia/distopia, uma vez que é capaz de produzir fascínio e perturbação simultaneamente.
Sua teoria se confirma ao analisarmos projetos como, por exemplo, a cidade Chaux de Claude-Nicolas Ledoux, ou os Falansterios de Fourier ou até a vida nômade proposta pelo Archigram, uma vez que estas extrapolam a noção de felicidade pura, suscitando, para além disso, uma sequência de opacidades, inquietações e ambiguidades.
Na sequência, sua análise encaminha-se para o entrelaçamento de projetos utópicos e distópicos com a subjetividade humana. Segundo Picon, o confinamento e a latente angústia gerados pelo insucesso das produções arquitetônicas utópicas, parecem sugerir que é de nós, afinal, que tudo se trata, como se as construções refletissem a maneira com a qual somos prisioneiros do nosso psiquismo. Desse modo, não é de se espantar que a arquitetura vá ao encontro de algumas das nossas mais íntimas inquietações, mostrando que ainda que seja a arte do coletivismo, é capaz de evocar os impasses do solipsismo. Conforme o próprio autor reflete: “sendo exterior ao nosso corpo, a arquitetura poderia perfeitamente ser, em simultâneo, interior ao nosso espirito” (8).
Em relação à distopia, Picon reflete que sua dimensão individualizada constitui-se como uma das principais diferenças em relação à utopia, que geralmente se limita a pôr em cena narradores insignificantes. Ao contrário das narrativas utópicas movidas por grandes homens, a dimensão fundamental das distopias encontra-se no papel central interpretado pelo indivíduo, um sujeito comum em confronto com o caráter totalitário e absurdo do mundo no qual está mergulhado.
Ao fim do ensaio, Picon nos convida a justamente celebrar a distância promovida pela arquitetura, uma vez que ela nos fala ao mesmo tempo daquilo que faz sentido coletivamente e do caráter irredutivelmente singular da experiencia da matéria e do espaço. Esta é a sua principal capacidade, uma ve que encarna quer a estabilidade da organização social no seio do qual ela nasce, quer o germe de desestabilização que a modifica, exprimido-se sobretudo através do prisma da subjetividade individual. Assim, Picon nos induz a pensar a disciplina de maneira alternativa. Em oposição à denúncia do persistente desencontro entre os projetos de racionalização dos atores sociais e as lógicas que governam a concessão dos espaços pelos arquitetos, Picon sugere celebrar a distância que os separa, tal como a cumplicidade que se tece por momentos entre arquitetura e distopia.
Enquanto o texto anterior apresenta sinais de ruptura em relação aos tradicionais posicionamentos acerca dos novos caminhos da arquitetura, o artigo “Impossível” vai ainda mais longe. Keller Easterling (9), propõe o combate e a superação do velho imperialismo dialético do certo e errado, do bem e do mal, do projeto bom ou melhor que a realidade.
Easterling começa refletindo sobre o hábito mental monoteísta da mente humana, que tende sempre à polarização. Sua hipótese se confirma uma vez observadas as formas de concretização de utopias e distopias. Criadas a partir da ideação daquilo que não existe, atuam com um jogo de tudo ou nada, uma vez nascidas de impulsos advindos de sonhos universais, partículas elementares, conjuntos redutíveis à blocos sucessivos e não coexistentes de informações.
Numa abrangente reflexão sobre a impossibilidade inerente ao utopismo, Easterling desenvolve a ideia de que, atualmente, devido à avalanche de informações, nosso mundo caótico tende a cooptar-se mais facilmente com utopias pobres em informação. Nesse sentido, denuncia que para além de um ataque ao status quo, a utopia pode ser uma forma de regressão ou de escape à ação política.
O mundo contemporâneo produz hoje uma espécie de utopia kitsch, frequentemente adotada pelo mercado e adorada pelo consumidor. A voz-off dos anúncios imobiliários confirmam a preferência do consumidor por produtos novos e pouco acessíveis. Atualmente, o marketing do planejamento urbano e dos grandes empreendimentos conformam um pacote utópico descarado, transcendendo de vez o campo político e dando luz ao campo da fantasia.
Os sonhos titânicos do modernismo e seus CIAM’s, por sua vez, não sobreviveram às penosas burocracias da padronização internacional promovidas por instituições como a ISO (dentre outras de gestão de qualidade), levando a arquitetura e o urbanismo para um novo tipo de utopia. É talvez assim que os vídeos promocionais ou os credos de autoajuda (refletidos nestes empreendimentos), acabam por devorar o espírito das afirmações utópicas para as utilizarem nas suas próprias formas desvairadas e kitschs.
A fim de libertar a disciplina arquitetônica de seus “mitos impotentes e ineficazes”, tal qual Manfredo Tafuri sugere em Progetto e Utopia (10), talvez seja o momento da expansão do seu repertório, bem como de suas formas tradicionais de representação, numa tentativa de rompimento com a velha luta binária inerente às utopias e distopias. Keller Easterling fecha sua reflexão com um bombardeio de perguntas sem respostas. Ainda assim, a mensagem que fica é relativa à urgência de libertar o projetos arquitetônicos dos conhecidos chavões, leis e padrões. Quem sabe assim, seja possível descobrir uma arquitetura para além das boas intenções.
Pós-utopias, uma alternativa para o futuro
Com uma visão antagônica à de Keller Easterling, o teórico e ativista Franco Berardi (11), expõe no ensaio “Mapa da futurabilidade: reenquadrando o par conceptual utopia/distopia”, sua busca por uma nova concatenação mundial capaz de ressignificar a forma como imaginamos o futuro hoje.
De início, Berardi propõe um reenquadramento dos significados dos conceitos de utopia e distopia. Para o autor, estes conceitos funcionam como armadilhas conceituais, uma vez encarado o caráter non-sense de utopia (como uma busca por um lugar inexistente) e a noção de que já vivemos em distopia.
Sua visão pessimista em relação ao mundo gira em torno da profunda crítica ao regime atuante neoliberalista. Segundo ele, este sistema nos conduz para o pior mundo possível: aquecimento global, devastação ambiental, miséria e exploração crescentes, guerras em expansão, estagnação secular, proliferação de armas atômicas, a impotência da democracia, aumento dos índices de depressão/suicídio entre os jovens e a proliferação de figuras nacionalistas no poder (como Donald Trump, Marine Le Pen, Jair Bolsonaro, dentre outros). Dessa maneira, como alternativa aos tradicionais conceitos Utopia e Distopia, Berardi sugere substitui-los pelas expressões Possibilidade e Futuro Provável, respectivamente.
Ao repensar a futurabilidade, Berardi reflete sobre a ampla gama de futuros possíveis capazes de emergir do nevoeiro da condição presente. Dessa maneira aparece, a partir de um olhar distópico sobre o emaranhado no qual vivemos, um discurso otimista: é possível que um dos futuros prováveis resida na possibilidade de progresso, de paz e de prosperidade. Entretanto, a consumação desse futuro depende de uma severa reorganização das ferramentas existentes no presente. Segundo o autor, o que de fato precisamos é controlar a superprodução e redistribuir os recursos, o que implicaria na inversão das políticas dos estados atuais. Para ele, isso não é de todo uma utopia, mas uma real possibilidade que apenas a teimosia capitalista torna invisível para toda a população.
Como concretização desse projeto, Berardi imagina um cenário onde o intelecto geral se mobilizaria seguindo os princípios da autonomia e de um conhecimento prático e não dogmático. A partir da abordagem teórica de Gilles Deleuze e Felix Guattari acerca do ovo tântrico (12), o projeto para um novo mundo passaria da virtualidade para a concretização uma vez que a Possibilidade fosse incorporada à sociedade através da introdução de uma potência. Segundo Berardi, a Possibilidade é incorporada ao sujeito quando o magma de possibilidades encontra uma outra concatenação que o transforma em subjetividade intencional.
Como exemplos de concatenações ocorridas no passado (hoje esvaziadas e ineficazes), Berardi oferece o liberalismo (como concatenação política que possibilitou a subjetivação da burguesia nos séculos da modernidade); o comunismo (que permitiu trabalhadores industriais se associarem e lutarem pelos direitos sociais no século 20) e a democracia (como a concatenação política que tornou possível um processo de massificação do ensino e de bens, comida, roupa, direitos).
Resta-nos agora saber qual será a próxima concatenação da nossa atual sociedade, afim de aliar-se contra as forças do neurototalitarismo e da exploração precária sem limites. Não seria esta visão desenredante em busca de um mundo desemaranhado sugerida por Berardi, ao invés de uma visão da concretização, o reflexo da incapacidade de nos libertarmos das utopias?
Ainda sobre o tema da necessidade de se desenvolver um otimismo crítico, emerge o ensaio “O inimaginável como objetivo pós-utópico: sobre a necessidade de redefinição do conceito de utopia” onde João Laia (13) apresenta ao público as mais atuais reflexões teóricas que partem em defesa de uma posição sistêmica, crítica e esperançosa diante do sistema.
Assim como outros autores citados acima, Laia inicia o seu texto em tom descrente sobre a viabilidade utópica no mundo de hoje. Exemplificando o esvaziamento do conceito de utopia, Laia cita Liam Gillick, autor que em Utopia Station, afirma que a palavra utopia é utilizada para descrever qualquer movimento artístico, período arquitetônico, sistema político ou proposição comunal que não opere dentro do capitalismo contemporâneo.
Meditando sobre a iminente ruptura ambiental do nosso tempo, produto do modelo econômico dominante, bem como a última revolução digital, Laia aponta para uma tendência comum em nossa história: a maneira com a qual o rápido entusiasmo produzido pelas revoluções é substituído por momentos de desencanto e depressão.
Em relação aos últimos avanços produzidos pelas novas ferramentas digitais, na medida em que criam um rede global fundada num espaço sem limites físicos, tal como refere Catherine Bernard, a cooptação dos meios digitais pelo mercado acaba por se tornar um limitador das possibilidades utópicas latentes. Segundo Laia, o que a autora pretende denunciar é que ainda que haja um crescente processo de conexão internacional através de diversos movimentos sociais advindos da Internet (desencadeando manifestações promotoras das ondas de contestação que se espalharam pelo mundo, como por exemplo a Primavera Árabe), há, em simultâneo, um generoso aumento no controle e policiamento do espaço digital, pondo em perigo a superação das fronteiras geopolíticas.
Segundo Laia, princípios como transparência, liberdade, sustentabilidade, inovação e proteção do meio ambiente, propagados como bandeiras do novo regime econômico, apoiado nos avanços tecnológicos, revelam-se como imagens ilusórias de nosso tempo.
Atualmente há uma constante proliferação de correntes em resposta aos processos nocivos da globalização. Porém, conforme o autor afirma citando Davina Cooper, as chamadas utopias cotidianas (atuantes no combate à criação de novas formas de normalização do desejo e da vida), ainda que apresentem sinais de sucesso, são práticas dificilmente reproduzíveis a nível global, não oferecendo assim, uma alternativa real ao sistema neoliberal. Segundo Cooper, as utopias cotidianas tendem aos buracos negros sociais.
Para João Laia, portanto, é nítida a necessidade de criação de novos espaços ou novos usos para espaços existentes, porém é importante livrar-se primeiro da ambição de criação de alternativas dramáticas que tentam escapar ao mercado. Diante desse dilema, oferece ao leitor a famosa indagação de Jaques Rancière: “Se alguém sabe como derrubar o capitalismo, porque é que ainda não começou a implantar esse conhecimento?” (14) Assim como Rancière, Liam Gillik defende que é mais produtivo adotar uma posição sistêmica (ao invés de opositiva) frente a realidade, focada na descodificação da forma como os processos sociais são definidos, planejados e desenvolvidos. Em tempo, Laia introduz ao debate o pensamento de Fredric Jameson: é precisamente no período em que a ideia de mudança é definida dogmaticamente como indesejável e/ou impossível que a recuperação do conceito de utopia dever ocorrer. Dessa maneira, Jameson defende que a utopia pode torna-se um atributo positivo, desde que seja realizada de maneira crítica.
Ainda que sutilmente distintas, as perspectivas apresentadas por Laia neste texto prefiguram o surgimento de um modelo de pensamento pós-utópico, uma espécie de utopia contemporânea, que renega a prisão do impossível e que apresenta um caminho destinado a superar a disfuncionalidade distópica presente.
Assim como Franco Berardi, a filósofa e teórica feminista Rosi Braidotti (15) acredita numa visão multidirecional do futuro como alternativa ao processo de autodestruição da humanidade. Em seu artigo “Ética afirmativa, futuros sustentáveis”, Braidotti apresenta como resposta a sua complexa teoria crítica pós-humanista, a qual ela batiza de ética afirmativa monista.
Ao retratar as dinâmicas da nossa atualidade, a autora reflete sobre o desconjuntamento do tempo e o roubo do presente como fatores intrínsecos ao nosso sistema, que por sua vez produzem uma economia política oscilante entre euforia e depressão. Como produto dessa lógica surgem os conceitos de utopia e distopia.
No intuito de enfrentar tal problemática, Braidotti desenvolve uma complexa abordagem teórica pós-humana (16), de ordem monista e neoespinosista, a fim de religar pólos opostos como natureza e cultura, materialismo e idealismo. Segundo a autora, uma abordagem monista contemporânea busca tombar a soberania do humano antropocêntrico. A ótica monista contemporânea, segundo a autora, combina discursos sobre a vida e os corpos vivos, conformando uma robusta plataforma ética que organiza as entidades vivas de acordo com a forma em que vivem. Com base nisso, a questão do “tempo sem tempo” – gerada pela concomitância entre a hipermodernidade e o neoarcaísmo que ajudam a ofuscar a linha odo tempo (17) – poderia ser reenquadrada dentro do capitalismo avançado. Em relação ao espinosismo crítico herdado de Gilles Deleuze, ela defende que este oferece-nos uma filosofia contemporânea da “vida como devir diferencial substantificado numa matéria comum” (18), atuando como uma válvula de escape à lógica do consumo viciante e à velocidade esquizoide promovida pelo nosso tempo.
Além de construir coletivamente os fluxos de desejo capazes de impulsionar os sujeitos para fora da força gravitacional do sistema neoliberal, a pós-utopia proposta por Braidotti gira em torno da edificação de um plano coletivo, composto por sujeitos transversais e pós-humanos, capazes de promover horizontes de esperança.
A esperança, como núcleo essencial deste projeto, é uma forma de desejar e sonhar futuros possíveis, tornando-se uma poderosa força motivacional baseada não apenas em utopias sociais, uma vez que também é ligada ao imaginário político e aos desejos inconscientes e afetos humanos. Segundo Braidotti, a esperança de mudança na direção de futuros sustentáveis é a chave das políticas afirmativas do século 21, na confiança que somente as dimensões visionárias são capazes de combater a negatividade distópica do presente.
Sem dúvidas, Braidotti não se encontra só diante de tamanha empreitada. Autoras como Moira Gatens e Genevieve Lloyd apelidam esta nova ética de “imaginações coletivas,” enquanto Deleuze e Guattari apelam para outras visões e para a criação de novos conceitos a partir do pensamento filosófico. No campo do movimento feminista, destaca-se o trabalho de Donna Haraway, que oferece-nos o melhor exemplo desta mistura de criatividade e poder visionário.
Rosi Braidotti finaliza sua defesa à teoria critica pós-humana manifestando-se contra o gene egoísta e individualista possessivo, defendendo assim uma forma de vida baseada no cosmopolitismo terrestre, incluída numa nova ordem mundial pós-antropocêntrica.
Pynchon Park
Dentre as diversas obras de arte retratadas no livro, há uma sessão especial dedicada à artista francesa Dominique Gonzalez-Foerster, convidada pela curadoria da exposição para criar uma obra site-specific abordando o tema Utopia/Distopia. O livro apresenta imagens da peça montada como exposição inaugural da Galeria Oval do MAAT, acompanhadas de um texto ficcional produzido pela própria artista.
Como numa science fiction, em seu texto Dominique narra a história de um futuro distante, quando extraterrestes teriam decidido reunir um grupo de humanos num sítio desconhecido chamado Pynchon Park. Como um zoológico de humanos, o parque seria o local ideal para os ETs observarem e desfrutarem do comportamento humano. O seu nome é inspirado nos livros de Thomas Pynchon – o mais enigmático autor norte-americano de ficções distópicas. O sítio de observação consiste em “uma arena branca ladeada de rampas, coberta por uma rede e cheia de bolas e livros feitos de alcatifa, gigantes e coloridos” (19). O mobiliário do parque tem função fundamental para o relaxamento dos humanos, propicio para que eles possam jogar e seduzirem-se uns aos outros, para deleite dos observadores extraterrestres.
A fábula de Dominique, representada in loco no museu, brinca com o espectador na medida em que o posiciona nos dois modos de ação – dentro e fora da obra, uma vez que é possível ocupar tanto o lugar externo de observador (na posição dos extraterrestes), como a condição de observado, sendo o humano propriamente dito. Dominique reproduz nesta obra a hipervigilância arquitetada desde o panóptico de Bentham, (tema muito explorado nas obras de Thomas Pynchon), mas com um twist: o prazer contemporâneo de observar e ser observado, noção central da sociedade midiática contemporânea.
Há, entretanto, um duplo twist: além de refletir sobre as relações humanas dos dias de hoje, creio que Dominique tenha introduzido à exposição um terceiro gênero, por sua vez muito pouco explorado pelos demais autores: as heterotopias.
Conforme abordado anteriormente na seção relativa ao artigo de Susana Ventura, o conceito de heterotopia, cunhado por Michel Foucault, diz respeitos aos contra espaços, espécie de utopias efetivamente realizadas no mundo da vida, nas quais os lugares reais (todos os lugares reais que se encontram no interior da cultura), são simultaneamente representados, contestados e invertidos; espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, mesmo quando efetivamente localizáveis (20).
Orfãos da queda
Sem dúvidas, a instalação de Dominique Gonzalez-Foerster busca evidenciar, de dentro do desértico espaço branco e neutro da galeria oval do MAAT, a soberania da sensibilidade: ao reproduzir no espaço artístico os fenômenos comuns da vida, promove a espontaneidade expressiva do corpo, na busca por um dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais.
Tal recurso artístico direcionado à ampliação dos sentidos, entretanto, já fora demasiadamente aprofundado por artistas como Hélio Oiticica.
Os “Olfáticos” de Oiticica, por exemplo, levavam o indivíduo ao encontro suprasensorial com elementos da ordem do banal: água, brita, cheiro de folhas, cheiro de café. Conforme descreve Wally Salomão:
“Hélio acopla um aspirador a um saco com café dentro para você sentir brutalmente, como se fosse Adão, pela primeira vez, a sensibilidade direta colada com o cheiro, o cheiro desimpregnado da trivialidade cotidiana e impregnando você pela intensidade bruta. No gesto simples de cheirar o café há um traço de pecado porque lembra cafungar cocaína” (21).
Oiticica buscava proporcionar aos indivíduos o encontro com uma espécie de “éden” de natureza oposta à sua concepção tradicional, pertencente à cultura judaico-cristã. Oiticica, sem dúvidas, desejou em suas obras a erradicação dos traços de pecado que a tempo nos acompanha. O éden de Oiticica, o “Éden HO,” segundo Wally Salomão (22), deseja redimir-se da queda através de uma atitude erótica não repressiva em relação à realidade.
Nesse sentido, pergunto-me se haveria, nas concepções artísticas e arquitetônicas contemporâneas, espaço para este tipo de abordagem crítica que propõe-se a abraçar as potencialidades da vida, para além da dialética utopia/distopia.
É possível sentir o tom romântico presente nos ensaios acima explorados. Essa sensação remete à reflexão levantada por Caetano Veloso em “Os outros românticos”, uma música-poesia lançada curiosamente em formato bilíngue, que atua como um manifesto afirmativo diante do mundo em declínio comunista. Em descompasso com a poesia caetaneana, as leituras não param de sugerir a dificuldade de superação das grandes quedas: a primordial de Adão e Eva, originária do pecado original e a do muro de Berlim, que há quase 30 anos vem nos convidando a abrir espaço para a vida e suas reais heterotopias.
Notas
1Inaugurada em 5 de Outubro de 2016, sob o título The Form of Form, com curadoria de André Tavares e Diogo Seixas Lopes.
2GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Utopia/Dystopia, A paradigma Shift in Art e Architecture. Ensaios de Franco Berardi, Rosi Braidtotti, Keller Easterling, Pedro Gadanho, João Laia, Atoine Picon e Susana Ventura. Milão, Mousse, 2017.
3Pedro Gadanho (1968), português, é arquiteto, escritor e curador da exposição inaugural do MAAT.
4GADANHO, Pedro. Utopia/Distopia: Breve história de uma dualidade incomoda. In GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Op. cit., p. 197.
5Para Thomas More, no livro clássico Utopia, o prefixo u-, confere à palavra o sentido de não lugar.
6Susana Ventura (1978), portuguesa, é arquiteta, escritora, curadora e pós-doutoranda pela FAUP.
7Antoine Picon (1957), francês, é arquiteto, engenheiro, historiador e professor de História da Arquitetura e Tecnologia da Harvard Graduate School of Design.
8PICON, Antoine. A arquitetura e a armadilha da distopia. In GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Op. cit., p. 228.
9Keller Easterling (1959, USA) é arquiteta e escritora e atualmente professora da Yale University.
10TAFURI, Manfredo. Projeto e utopia: arquitectura e desenvolvimento do capitalismo. Lisboa, Presença, 1985.
11Franco Berardi (1949, IT) é escritor, teórico e ativista do movimento italiano Autonomia Operaia.
12“O Ovo tântrico contém inúmeras concatenações intercelulares – a teia das possibilidades. A evolução destas concatenações do estado de virtualidade ao estado de organismo corporizado é o espaço da concretização do possível”. BERARDI, Franco. Mapa da futurabilidade: reenquadrando o par conceptual utopia/distopia. In GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Op. cit., p. 239. Mais sobre o ovo tântrico, ver em: DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil planaltos. Capitalismo e esquizofrenia 2. Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.
13João Laia (1981), português, é curador e escritor, com formação em Ciências Sociais, Teoria Cinematográfica e Arte Contemporânea.
14Jacques Rancière, citado por LAIA, João. O inimaginável como objetivo pós-utópico: sobre a necessidade de redefinição do conceito de utopia. In GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Op. cit., p. 209.
15Rosi Braidotti (1954, IT) é filósofa, teórica feminista e professora da Utrecht University.
16A teoria crítica pós-humana é mediada pela informática e biogenética, atuantes como neomaterialismo radical, algo que obriga a reconsideração das “naturezas corporais”. Rosi Braidotti. Ética afirmativa, futuros sustentáveis. BRAIDOTTI, Rosi. In GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Op. cit., p. 247.
17Como exemplo disso a autora traz o caso da ovelha Dolly, que é simultaneamente arcaica e hipermoderna. Ver BRAIDOTTI, Rosi. In GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Op. cit., p. 246.
18Idem, ibidem, p. 250.
19GONZALEZ-FOERTER, Dominique. Pynchon Park. In GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (org.). Op. cit., p. 195.
20FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: FOUCAULT, Michel. Ditos & escritos. Volumes II. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2005, p. 411-422.
21SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? E outros escritos. São Paulo, Companhia das Letras, 2015, p. 60.
22Idem, ibidem, p. 60.
Resenhista
Aline Tomasco Zorzo – Arquiteta (FAU UFRJ, 2011) e atualmente é bolsista Capes no PPGARQ da PUC-Rio, com ênfase em Teoria e História do Projeto de Arquitetura e é orientada pelo professor doutor João Masao Kamita. Nos últimos anos, atuou como arquiteta na equipe do arquiteto carioca Índio da Costa, trabalhando no desenvolvimento do projeto e acompanhamento da obra do Novo MIS – Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, projeto de autoria do escritório Diller Scoficio + Renfro (2011-2016). Sua dissertação Brasília, alegoria da modernidade Brasileira será defendida em março de 2019.
Referências desta Resenha
GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana. (Eds.). Utopia/Dystopia. A Paradigma Shift in Art e Architecture. Trad. Rosa Caldeira, Lucy Phillips e José Roseira. Ensaios de Franco Berardi, Rosi Bradotti, Keller Easterling. Milão: Mousse Publishing, 2017. Resenha de: ZORZO, Aline Tomasco. Os outros românticos. 500 anos de Utopia. Resenha Online. São Paulo, n. 207, mar. 2019. Acessar publicação original [DR]
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