Universidade brasileira: reforma ou revolução? | Florestan Fernandes
Em 2020, foi reeditada uma obra clássica acerca das universidades no Brasil, escrita por Florestan Fernandes. Publicada pela primeira vez em 1975, ainda durante a ditadura, o livro Universidade brasileira: reforma ou revolução? reúne 10 ensaios do sociólogo paulista, escritos nos primeiros anos depois do golpe de 1964. Os textos são oriundos de palestras e participações em debates, realizados em 1968, discutindo os problemas e os embates em torno da Reforma Universitária. A única exceção é o texto “O problema da universidade”, que inicia o livro, originalmente publicado em 1965. Esta nova edição da obra, publicada pela editora Expressão Popular, conta também com uma apresentação escrita pelo professore Roberto Leher (UFRJ).
Fernandes apresenta no livro um estudo detalhado da universidade no Brasil, procurando, entre outras questões, demonstrar o recorrente embate acerca do caráter que deveria ter a educação superior. Segundo Fernandes (2020, p. 359), “presos a uma tradição cultural estreita, teimamos em ver a universidade como uma instituição apegada a um ensino livresco, de segunda mão”, ou seja, “uma instituição cuja maior contribuição à coletividade estaria na transferência e absorção de conhecimentos produzidos originalmente no exterior”. O sociólogo, defendendo a importância da pesquisa científica na organização da universidade, aponta que
para poder acompanhar os progressos incessantes dos diversos ramos do conhecimento científico, a universidade precisa produzir, por meios próprios, pelo menos algumas parcelas daqueles progressos; para poder comunicar ao meio circundante as técnicas do conhecimento científico, a universidade necessita de vias internas de descoberta, aplicação e avaliação de tais técnicas. (Fernandes, 2020, p. 364)
O autor destaca, entre outros elementos, que o embate em torno do caráter da universidade está permeado pelos interesses das classes dominantes. O sociólogo demonstra como as ações do Estado se dão no sentido de garantir a manutenção de uma universidade que reproduza os interesses de classe. Segundo Fernandes (2020, p. 91), “as classes dominantes procedem como se fossem sensíveis e leais aos requisitos educacionais da ordem legal republicana, porque extraem desta a legitimação de seu próprio poder político”. Contudo, essas classes “opõem-se, consciente e tenazmente, à constituição e à observância de uma política educacional adequada a semelhante objetivo” (Fernandes, 2020, p. 91). Podem, dessa forma,
privilegiar-se educacionalmente, monopolizando a maior parte dos recursos educacionais da comunidade para seus próprios fins e eximir-se, socialmente, dos sacrifícios cívicos que poderiam resultar de uma compreensão adequada das funções da educação escolarizada no equilíbrio de uma sociedade regional republicana. (Fernandes, 2020, p. 91)
O livro se estrutura em duas partes. Na primeira, o sociólogo apresenta um diagnóstico da situação da universidade, detalhando os dados acerca da expansão ocorrida nas décadas de 1950 e 1960, a concentração das universidades em algumas regiões e, também, em algumas áreas do conhecimento, bem como o caráter fragmentário da organização dessas instituições. Na segunda parte, Fernandes centra-se principalmente na análise da Reforma Universitária, não apenas trazendo o debate acerca das concepções de universidade que estavam em disputa, como também analisando as propostas e ações promovidas pela ditadura. Remetendo-se ao golpe de 1964, que procurou desarmar os movimentos sociais articulados em torno das reformas de base, Fernandes (2020, p. 105) aponta que a ditadura
[…] elevou-se ao poder com duas ambições. Primeiro, destruir o processo em curso, que fazia da “crise da escola superior” uma “crise do controle conservador” da universidade. Segundo, equacionar a “solução conservadora” da reforma universitária, canalizando as alterações qualitativas inevitáveis em um sentido aparente puramente técnico, mas, de fato, dominado pelo afã de criar novos mecanismos de tutelagem conservadora do ensino superior e do tipo emergente de universidade.O título do livro procura refletir sobre a dicotomia entre reforma e revolução, presente na tradição da esquerda. Embora use o termo “reforma”, contido nas perspectivas dos setores dos movimentos sociais que debatiam as mudanças nas universidades, para Fernandes, é preciso uma reconstrução completa da universidade, não sendo possível esperar que eventuais reformas pudessem resolver os problemas da sociedade brasileira. Segundo o sociólogo,
a disposição coletiva por reformas sociais requer um extenso desenvolvimento prévio da institucionalização do jogo político democrático. O reformismo exige, em outras palavras, uma sociedade de estrutura democrática e que tenha possibilidade de preservar ou de aperfeiçoar a ordem social existente por meio de opções coletivas, fundadas no consenso da maioria, e imperativas. Como não existe democracia no Brasil, o reformismo, como expressão de movimentos econômicos, socioculturais ou políticos, não faz parte de uma tradição cultural e não tem viabilidade. (Fernandes, 2020, p. 43)
Na situação analisada, em que as classes dominantes não renunciariam as suas benesses, quaisquer ações que pudessem ser chamadas de “reformas” poderiam levar a um cenário de ruptura, instabilidade e transformação social. Segundo Fernandes (2020, p. 44), se referindo às posições que poderiam ser chamadas de “reformistas”,
a rigidez e o monolitismo do cerceamento conservador convertem-nas, sistematicamente, em expressão da “revolução”, pouco importando se elas sejam puramente liberais e nacionalistas ou autenticamente revolucionárias. Vão contra o status quo como ele se define a partir do pensamento e do comportamento conservadores: caem todas no mesmo saco, suficientemente amplo para receber “subversivos” e “revolucionárias” de todos os naipes, de cambulhada com os “corruptos” de hostes conservadoras em ostracismo.
Esta obra possibilita reflexões acerca da universidade atual, podendo-se destacar, primeiro, a permanente ideia de reformas, normalmente para atender a interesses econômicos imediatos, sem colocar no debate o papel estratégico que essas instituições possuem. Em segundo lugar, o debate acerca do papel que a universidade deve ocupar na formação da força de trabalho, e como isso se relaciona com a pesquisa científica. Em terceiro lugar, o papel da universidade no desenvolvimento de pesquisas, que tem se mostrado de forma mais clara a cada ano. Para Fernandes (2020, p. 69),
não precisamos da universidade como um bem em si, como um símbolo de progresso e de adiantamento cultura. Precisamos dela como um meio para avançarmos da periferia para o núcleo dos países que compartilham a civilização baseada na ciência e na tecnologia científica.
Deve-se destacar que as universidades continuam a sofrer com cortes e piora nas suas estruturas, garantindo a predominância dos interesses privados. Fernandes demonstrou, em sua obra, que essas ações ocorrem há décadas e, de certa forma, fazem parte do próprio desenvolvimento da universidade no Brasil, afinal não se compreende o papel estratégico dessas instituições, em especial no desenvolvimento e difusão científicos.
Referência
FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2ª ed., 2020. 400p.
Resenhista
Michel Goulart da Silva – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: michelgsilva@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução? 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2020. Resenha de: SILVA, Michel Goulart da. Florestan Fernandes e a universidade no Brasil. Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 52, p. 370-374, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]