Dizer que “Não há na História do Brasil nada mais velho que a ‘República Velha’” (VISCARDI, 2017, p. 18) é uma feliz escolha para propor a revisitação da política de transição entre a Monarquia e a República e discutir os impactos do federalismo na organização política nacional. Este é um dos enfoques de Cláudia Maria Ribeiro Viscardi, professora titular do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Autora de Teatro das Oligarquias (VISCARDI, 2001), obra enraizada na historiografia para oferecer uma leitura concisa sobre a participação dos estados-atores na política da primeira fase republicana, Viscardi apresenta uma nova proposta a respeito das consequências do federalismo na conjuntura do início da República e particularmente do governo Campos Sales. Unidos perderemos, como reconhece a autora, é uma continuação de discussões específicas sobre a descentralização política à época dos debates republicano-federativos.
Preocupada com a análise dos discursos políticos, a autora revela sua orientação teórico-metodológica ao trazer a lume Reinhart Koselleck, Quentin Skinner e John Pocock. Uma vez que a proposta desenvolve a maneira como discursos políticos são transformados em ações, a filiação a estes autores é apresentada no viés de uma história dos discursos políticos. Tais referenciais norteiam o caráter revisionista da pesquisa. Seu lugar na historiografia remete à corrente que propõe compreender de que modo convicções ideológicas ou culturais exerciam influências na prática política. A história intelectual do político e a história dos conceitos aparecem como principais ferramentas de articulação com as fontes. Nas palavras da autora:
A história dos conceitos e a dos discursos políticos nos ajudam a compreender as fronteiras além das quais era impossível chegar-se, dado o acesso e a compreensão que os atores tinham das experiências em curso. (VISCARDI, 2017, p. 109)
De maneira geral, os cinco capítulos que compõe a obra podem ser divididos em duas frentes. Os dois primeiros relacionados aos manifestos republicanos e suas idealizações de um novo país. Para os entusiastas do republicanismo, ávidos pelo discurso de soberania popular, a crença nos preceitos federalistas reservaria ao Brasil um outro futuro, distante da imagem enferrujada da antiga Monarquia. Nos três capítulos seguintes encaramos a realidade da República à brasileira. O que, de fato, representaram as aspirações republicanas com a fundação do novo regime? O leitor rapidamente percebe o porquê conceitos como “democracia”, “representação” e “cidadania” são tão caros para a autora. Este é um momento significativo no qual Viscardi contrasta a relação entre discurso e prática com a cultura política brasileira. Uma discussão que permite aos capítulos finais adentrarem o governo Campos Sales e questionar os efeitos de sua política de estados como estabilizadora dos conflitos entre as oligarquias.
O primeiro capítulo demonstra de que modo os discursos políticos ajudam a compreender a formação do movimento republicano, especialmente na utilização de manifestos, documentos oficiais e dicionários. O emprego de dicionários do século XVIII ao XX para o exame conceitual favorece uma interpretação de fontes que procura fugir de anacronismos e generalizações dos discursos dos atores políticos. Ponto importante, por exemplo, para diferenciar conteúdo e forma dos discursos republicanos no Manifesto de 1870 e do Manifesto dos Republicanos do Pará, de 1886. A rigor, o livro atende às expectativas da análise semântica de conceitos como “cidadania” e “tirania”. Esta discussão coloca em pauta a percepção dos republicanos em relação ao conceito de “soberania popular” e o porquê o Poder Moderador era considerado abusivo.
Atenta à análise dos discursos republicanos, Viscardi salienta a importância do movimento republicano como legitimador de uma retórica em contraposição à Monarquia. Considerada ultrapassada, havia a necessidade de uma reforma no regime. Sendo assim, questões como abolição e federalismo eram bandeiras importantes para a descentralização e atuavam como oposição a um regime considerado unitarista. Não à toa a propaganda passou a ser uma poderosa estratégia de convencimento para as transformações estruturais.
A discussão é ampliada quando a autora coteja o Manifesto de 1870 e o de 1886 e assinala as principais diferenças em seus conteúdos. Isto porque, o de 1870, produzido no Rio de Janeiro e em vista das possíveis reações de oposição, partia de uma crítica mais sutil à Monarquia e ao imperador. Por outro lado, no manifesto do Pará, confeccionado em uma região menos urbanizada e com um movimento republicano mais tímido, prevaleceu um discurso mais combativo ao regime. Em determinado momento, o manifesto de 1886 atacava diretamente a figura de D. Pedro II, chamando-o de “Cezar Caricato”. Segundo Viscardi, “O imperador é tratado como um príncipe conspirador, que permitia que a corrupção se espalhasse por todo o governo” (VISCARDI, 2017, p. 51). Considerando a forma dos manifestos, a autora menciona que o primeiro nutria um caráter mais político e o segundo buscava maior legitimidade intelectual – percebida principalmente nas referências intelectuais utilizadas, entre os quais Auguste Comte, Frei Caneca e Adolphe Thiers.
Com a República no horizonte, o segundo capítulo investiga o conteúdo do texto constitucional de 1891 e dos textos constitucionais dos estados. Em particular, o tratamento da carta constitucional em perspectiva histórica contribui para que mais historiadores se debrucem sobre esta fonte para pensar a fundação e o andamento do regime republicano. Ao comparar os diferentes projetos republicanos do período e, em especial, a carta de 1891, a discussão avança em questões relacionadas à descentralização política e à aplicação do federalismo. Em síntese, o federalismo como nova forma de organização política implicou em maior participação de estados-atores na conjuntura das eleições presidenciais. Viscardi obtém sucesso ao demonstrar como tais negociatas estavam vinculadas ao efeito do federalismo e do municipalismo e alteraram a dinâmica política brasileira.
Um tema que desponta no livro são as articulações da Constituição de 1891 e as coletâneas de textos de constituições dos estados. Percebendo os diferentes projetos republicanos em pauta, a autora entende que os textos constitucionais funcionavam “[…] mais como estratégias discursivas resultantes de consensos, na maioria das vezes arduamente construídos, do que práticas efetivas realizadas” (VISCARDI, 2017, p. 68). Segundo ela, os críticos da Monarquia argumentavam que o Poder Moderador era considerado um estado de divindade, enquanto na democracia o poder estava com o povo. Para os opositores do Império, a República se apresentava como uma alternativa real para que o país figurasse entre as nações ditas civilizadas e alinhadas à democracia. No entanto, a conjuntura do republicanismo e do federalismo à brasileira respondeu aos embates dos grupos responsáveis pela organização da letra da lei. Em outras palavras, o capítulo se preocupa em examinar a confecção da Constituição de 1891 levando em consideração a heterogeneidade dos grupos envolvidos. Entre as medidas observadas, o texto Constitucional reservou maior protagonismo aos estados em comparação à União, principalmente em relação à alocação e autonomia dos impostos para os estados. Se por um lado nota-se o avanço dos direitos civis pela ampliação do direito ao voto, mesmo ainda existindo restrições, por outro, os discursos de transformação social ficaram muito aquém da retórica republicana dos manifestos.
Outro ponto interessante está no prejuízo da descentralização para os municípios. A nova estrutura tornou os municípios, mesmo aqueles geradores de capital, dependentes dos estados e da União. O sistema também depreciou a autonomia política, tornando os municípios reféns de uma engenharia de controle de votos para as disputas eleitorais – vale referenciar o pioneiro estudo de Victor Nunes Leal (1975). Portanto, a despeito da heterogeneidade do movimento republicano e dos acordos para a manutenção da antiga elite política no novo regime, Viscardi conclui que parte das ideias republicanas esteve presente no texto de 1891.
O terceiro capítulo mergulha mais especificamente no período republicano, sobretudo na discussão da letra da lei da Constituição e as reais transformações sociais -a título de exemplo, a participação política como uma experiência de extensão da cidadania. Com efeito, os dispositivos constitucionais foram se adequando à cultura política nacional que se forjava no andamento da República. Isto é, dispositivos que foram pensados para causas excepcionais, como o estado de sítio, tornaram-se um recurso recorrente. Viscardi resume o contexto republicano da seguinte forma:
O federalismo posto em prática resultou na associação entre os princípios constitucionais estabelecidos em 1891 e as culturas políticas construídas ao longo do período que antecedeu a implantação da República. (VISCARDI, 2017, p. 126)
O resultado foi uma competição acirrada pelo poder político por meio das eleições. As elites políticas, vencedoras e derrotadas, interferiam a todo o momento no processo eleitoral para assumir o controle das localidades.
Mesmo com as fraudes, as disputas eleitorais exerciam um papel de legitimação das lideranças políticas. A autora destaca que candidaturas independentes poderiam aglomerar adesões e surpreender as chapas oficiais. O voto, então, tornava-se uma importante contrapartida para a classe política à medida que havia a necessidade do convencimento do eleitor, de maneira violenta ou não, a sair de casa para votar, bem como controlar a autonomia do seu voto. Assim sendo, Viscardi contesta a ideia de que as eleições neste período eram pouco competitivas:
Portanto, afirmar peremptoriamente que as eleições no período, por abarcarem relações coronelísticas ou clientelísticas e por serem objeto de contínuas fraudes, eram favas contadas implica subestimar as clivagens inter-regionais e a existência de um mercado político com graus variados de competição. (VISCARDI, 2017, p. 120)
No capítulo quatro, a autora se detém mais especificamente às concepções políticas de Manuel Ferraz de Campos Sales. No diagnóstico do período Campos Sales, Unidos perderemos debate a escassez de trabalhos acadêmicos que contemplem a interpretação do impacto da política dos estados e dos discursos políticos no quatriênio deste homem público. Isto porque, do seu ponto de vista, a historiografia dedicou pouca relevância a este enfoque. O governo do político paulista é a pedra de toque de uma discussão historiográfica que atribui à sua gestão a estabilização do regime político republicano. Uma memória construída – e referendada pelo próprio Campos Sales – que passou a ser compartilhada por diversos intérpretes da nação. No tocante à reforma dos estados, a investigação procura relativizar a importância conferida a Sales pela tradição historiográfica brasileira. Esta questão implica na revisão de autores como Edgard Carone, Fernando Henrique Cardoso, Hélio Silva, Francisco Iglésias e outros. Para Viscardi, muito mais que imputar a estabilização ao seu governo, o problema a ser avaliado está no contexto relacionado tanto à fundação da República e seus desdobramentos quanto na própria gestão do segundo presidente civil.
Nesse sentido, analisando os discursos políticos e sua memória, a autora apresenta um Campos Sales autoritário que buscava governar sem diálogo a partir de suas convicções, principalmente àquelas relacionadas ao presidencialismo, republicanismo e federalismo. Esta complexidade faz com que o entendimento do período não seja reduzido à reforma de Sales, mas na problematização da sua convivência com as dissidências internas. A meu ver, tal tese oferece uma visão historiográfica ampliada do conflito intraoligárquico da Primeira República.
A discussão que envolve a estabilização do governo Campos Sales é aprofundada no quinto capítulo. A autora defende que a “política dos estados”, percebida como uma reforma estabilizadora do regime, deve ser relativizada. Inclusive, sustenta que esta concepção “[…] foi uma construção de seu próprio autor, referendada em boa parte por estudiosos que lhes foram posteriores” (VISCARDI, 2017, p. 163). Portanto, ao indagar os efeitos da reforma de Campos Sales, Viscardi sugere uma releitura da Primeira República pensando na sua instabilidade política, que talvez tenha sido subestimada por parte das interpretações historiográficas. Embora as reformas empreendidas por Sales demonstrem o descontentamento com as fraudes eleitorais, as mudanças não foram suficientes para evitar a falsificação de diplomas dos eleitos e os resultados eleitorais contraditórios.
Procurar uma tese geral para Unidos perderemos pode limitar sua proposta de análise. Penso que seu principal mérito seja repensar o período político inicial da República e os projetos em competição que buscavam viabilizar e legitimar o regime recém-fundado. Aliás, a obra deve ser situada tendo em vista a própria produção intelectual da autora e sua trajetória na temática. Desde a década de 1990, a professora da Universidade Federal de Juiz de Fora tem como preocupação as discussões relacionadas ao pacto federativo, às elites políticas e à construção do regime republicano. Sendo assim, em continuidade a outras produções, a pesquisa avança na reflexão de que o período precisa ser revisitado, inclusive no que diz respeito ao abandono de certos esquematismos, como a intitulada “política do Café com Leite”. Desse modo, investigar o governo Campos Sales permite um repensar dos conflitos entre as oligarquias a partir da proposta federalista de nação. Nesse sentido, pode-se alargar discussões relacionadas ao voto, aos direitos políticos e à participação civil no processo eleitoral.
O caráter de revisão de alguns consensos historiográficos não pretende invalidar as pesquisas sobre o Brasil republicano que precedem a obra, mas estimular a releitura do período a partir da apresentação de dados originais e diferentes perspectivas de análise. Esta é a intenção ao recuperar, por exemplo, a dissertação de Maria Carmem Magalhães, acerca dos Mecanismos das “comissões verificadoras de poderes”, publicada em 1986 na Universidade de Brasília. O referido trabalho permitiu verificar que o controle sobre as eleições “[…] se dava muito mais no âmbito dos municípios e estados do que no próprio Parlamento, antes ou depois da reforma de Campos Sales” (VISCARDI, 2017, p. 163). Uma vez considerada a proposta de Unidos perderemos, é preciso aguardar um novo conjunto de investigações para expor quais seriam os limites de sua interpretação.
O escopo teórico metodológico somado a uma bibliografia atualizada faz com que o tratamento das fontes – especialmente na leitura intratextual dos manifestos republicanos e nas cartas estaduais – seja apresentado de forma inovadora, justificando o argumento revisionista proposto por Viscardi. Assim como em John Pocock (2003) é possível observar que
“[…] a história do pensamento político torna-se uma história da fala e do discurso, das interações entre langue e parole. Sustenta-se não somente que essa história do pensamento político é uma história do discurso, mas que ela tem uma história justamente em virtude de se tornar discurso. (POCOCK, 2003, p. 28)
A escrita clara e simples favorece a leitura dos capítulos e possibilita maior interação entre o leitor e o argumento central. A obra responde àqueles pesquisadores debruçados no estado da arte da Primeira República e que se orientam na perspectiva dos discursos políticos e suas ações. Em última análise, é um convite para uma atualização historiográfica aos que leem a Primeira República e o federalismo unicamente pela chave dos interesses de classes ou do predomínio regional em detrimento do nacional.
Referências
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
POCOCK, John Greville Agard. Linguagens do ideário político Tradução Fabio Fernandez. São Paulo: Edusp, 2003.
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias: uma revisão da “política do café com leite” Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro Curitiba: CRV, 2017.
Resenhista
Leonardo Dallacqua de Carvalho – Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Rio de Janeiro. Professor no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Sagrado Coração. Coordenador do Laboratório de Estudos em História da Saúde e das Doenças (LHSD), na Universidade Estadual do Piauí – Campo Maior. E-mail: leo.historiafiocruz@gmail.com
Referências desta Resenha
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro. Curitiba: CRV, 2017. Resenha de: CARVALHO, Leonardo Dallacqua de. Recortando a nação: federalismo e política. Revista de História. São Paulo, n. 178, 2019. Acessar publicação original [DR]
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