Uma Vindicação dos direitos das mulheres | Mary Wollstonecraft

Numa tradução cuidada de Elisabete M. de Sousa, Uma vindicação dos direitos das mulheres1, consagrada obra de Mary Wollstonecraft, é disponibilizada ao público, na íntegra, em língua portuguesa. A obra, publicada em 1792 e considerada um clássico na área dos estudos do género, do feminismo e da luta pela igualdade entre os sexos, retrata, numa perspetiva macro, a situação económica, social e política das mulheres na Europa do século XVIII. Uma análise meso sobre os seus mecanismos de luta para alterar essa condição é complementada com uma análise micro sobre o impacto real da Revolução Francesa (1789-1799)2 em todo esse processo.

Na presente obra, a autora, acérrima defensora dos direitos das mulheres, da liberdade, igualdade e fraternidade, procura sobretudo questionar a ordem sexual que faz com que prevaleça a opressão estrutural das mulheres em relação ao sexo masculino, atribuindo responsabilidades à educação que lhes é ministrada, que as educa somente para serem esposas fiéis e dedicadas ao lar. Apesar de ter eleito a educação como temática central da obra, informação que encontramos logo na introdução, a crítica de Wollstonecraft ao sistema dominante não se esgota por aqui, roçando igualmente temáticas imprescindíveis que durante séculos mantiveram as mulheres subjugadas a uma ideologia social dominante, com destaque para o carácter, a modéstia, a virtude, a moralidade, a reputação, a sociedade, o afeto parental.

Antecede aos capítulos uma carta endereçada Ao Sr. Talleyrand-Périgord, bispo resignatário de Antum, onde deixa patente o propósito da sua obra “apelo em favor do meu sexo – e não em meu próprio favor” (p. 27), demonstrando todo o seu altruísmo, a favor de uma causa coletiva e não individual, ou seja, a autora não olha para a condição das mulheres de forma individualizada. Para o efeito, Mary edifica o principal argumento sobre o princípio “se não for a educação a prepará-la para ser a companheira do homem, será ela a parar o progresso do conhecimento e da virtude, porque a verdade tem que ser comum a todos ou será ineficaz” (p. 29). E será sobre a ideia desse “falso sistema de educação” (p. 36) que a autora se irá dedicar a desconstruir nos 13 capítulos que compõem a obra.

No primeiro capítulo Considerações sobre os direitos da humanidade e correspondentes deveres, a autora debate sobre os direitos e os deveres de cada um dos sexos. Começa por pedir permissão para colocar algumas questões, simples, no seu entender, que conduzem à razão e a virtude como caminho para o conhecimento. Assim, dotadas de razão, virtudes e conhecimentos nada pode bloquear o seu direito à participação na vida social e política. Ainda nesse capítulo, elabora uma crítica ao uso indevido do poder, “todo o poder que inebria o homem fraco, e o abuso do poder prova que quanto mais estabelecida estiver a igualdade entre os homens, tanto mais a virtude e a felicidade hão-de reinar na sociedade” (p. 50).

Então, o que entrava a igualdade? A autora defende, nos capítulos que se seguem (II e III), que a principal causa para a desigualdade reside na educação que é ministrada a homens e mulheres. Esse modelo educativo, que coloca a mulher sob a alçada do homem, onde a ignorância é definida como inocência, virtude é confundida com razão, liberdade é sinónimo de libertinagem, tem colocado as mulheres num mundo de superficialidade, tornando-as criaturas “mais tristes” (p. 97). A autora descortina assim uma série de explicações, desculpas e preconceitos que têm sido utilizados pelo sexo masculino para insultarem as mulheres e as manterem dominadas como “afáveis animais domésticos” (p. 56). Mary defende ainda que já é mais do que tempo de “restaurar a dignidade perdida” (p. 97) das mulheres.

O que faz com que a autora teça algumas observações acerca do estado de degradação a que a mulher fica reduzida por várias causas (capítulo IV), resultado sobretudo da sua condição de escrava perante o sexo masculino, assim como da utilização dos sentimentos e emoções, em detrimento da razão. Para Mary Wollstonecraft, essa condição, que advém da educação, faz com que a mulher fique cada vez mais isolada do mundo, fragilizada, dependente, humilhada, inexistente. A autora não deseja que as mulheres “tenham poder sobre os homens, mas sobre si mesmas” (p. 124), condição que a leva a elaborar severas censuras a alguns escritores que fizeram das mulheres objetos de uma piedade que roça o desdém (capítulo V), nomeadamente, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Dr. Fordyce (1720-1796), Dr. Gregory (1724-1773), Madame de Stael (1766-1817), Lord Chesterfield (1694-1773) e outros.

O pressuposto defendido por Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual a mulher deve ser “fraca e passiva porque tem menos força física do que o homem” (p. 149) contribui para a continuidade dessa situação, o que faz com que esse efeito de uma associação precoce de ideias sobre o carácter (capítulo VI) continue a alimentar essa condição de sujeição, subordinação, subjugação, submissão, apropriação, dependência e servidão. Daí que a autora defenda que somente o “correto uso da razão nos torna independentes de todas as coisas” (p. 217). Nos capítulos seguintes (VII, VIII e IX) Wollstonecraft debruça-se sobre os efeitos perniciosos que essa condição de sujeição tem sobre a vida das mulheres, tornando-as “manhosas, mesquinhas e egoístas” (p. 251), fazendo com que estas sejam “mais humilhadas e constrangidas por elas do que os homens” (p. 254).

A análise da autora é complementada com a abordagem sobre a educação familiar e o afeto parental (capítulos X e XI). A autora aponta a educação parental como uma das principais responsáveis pela condição em que as mulheres se encontravam, daí que considere que o afeto parental, “para muitas mentes, mais não é do que um pretexto para tiranizar” (p. 267). Refere ainda que “em todos os países as mulheres estão excessivamente sob o domínio dos pais” (p. 273), “são mais reprimidas pelos pais do que os rapazes” (p. 274) e a sua educação assenta apenas na sua preparação para o casamento.

Por esse motivo se compreende a sua acérrima defesa sobre o pressuposto de que “a educação que as mulheres agora recebem nem sequer merece esse nome” (p. 299), propondo, para o efeito, um modelo de educação nacional (capítulo XII), que combine educação pública, promovida pelo Estado, logo, “direcionada para formar cidadãos” (p. 286), com educação privada, aquela que é ministrada no meio familiar, que exercita afetos e virtudes. De igual modo, esse modelo deve assentar na igualdade de tratamento para homens e mulheres de modo a que estas sejam “preparadas para ser suas companheiras em vez de suas amantes” (p. 291), cultivando assim a amizade e a confiança. Wollstonecraft vai mais longe na sua análise e propõe a gratuitidade do ensino primário “dos cinco aos nove anos de idade” (p. 295), “aberta a todas as classes“ (p. 295), tendo em vista uma maior igualdade. Defende igualmente que todos “deveriam vestir-se da mesma maneira” (p. 296), e a prevalência da prática do exercício físico pois, “nesta idade não devem permanecer confinadas e entregues a ocupações sedentárias por mais de uma hora de cada vez” (p. 296). A autora identifica ainda algumas possíveis tarefas que, sendo valorizadas, podem e devem ser atribuídas às mulheres, tais como a anatomia e a medicina.

Para terminar, a autora apresenta alguns exemplos do disparate gerado pela ignorância das mulheres (capítulo XIII), que perpetuam a ideologia dominante, ou seja, a sua contínua subjugação ao sexo masculino. E é em torno dessa ignorância, que a autora apresenta a sua crítica “é a vossa própria conduta, vós, mulheres imprudentes!, a lançar o ódio sobre o vosso sexo” (p. 316), reforçando uma vez mais a ideia central da obra: a necessidade de se alterar o modelo de educação vigente. Wollstonecraft realça ainda a questão da religião em oposição à racionalidade, os sentimentalismos que apregoam a felicidade, a opressão política e cívica, as ocupações triviais, a “dependência do romancista” (p. 322) e todas as outras artimanhas que a educação vigente utiliza para continuar a negar às mulheres os privilégios políticos, a existência civil e a capacidade de decisão em relação à sua própria vida.

Trata-se de uma obra de leitura imprescindível para uma mais abrangente e alargada visão das condições sociais à que as mulheres foram expostas, o caminho de luta que têm percorrido ao longo dos séculos, o percurso já trilhado e o caminho ainda por desbastar. A sua leitura permite sobretudo penetrar, de forma estimulante e profunda, em toda a dimensão económica, social e política da mulher em pleno século XVIII. A obra permite-nos ainda uma análise mais alargada em torno de toda a dinâmica social e “acontecimentos turbulentos” (Giddens, 2013:9) deste conturbado século, caraterizado pelas novas leituras em torno de ideias como representação, direitos, deveres, igualdade, liberdade, fraternidade, alimentadas pela Revolução Francesa e pela independência dos 13 estados que vieram a constituir os Estados Unidos da América (1776), cuja fonte brota das ideias dos conhecidos filósofos3 e da corrente do iluminismo4.

Ao defender a construção de valores e ideais opostos aos modelos sociais e políticos vigentes, a autora abre assim caminho para o início de uma luta que ainda continua nos dias de hoje, daí a sua atualidade mais de dois séculos depois. Ao se posicionar contra um modelo patriarcal vigente, Wollstonecraft advogava sobretudo a igualdade entre os sexos, ao que se seguiu a luta das mulheres por melhores condições sociais (século XIX) e posteriormente, a luta pela liberdade social, política e sexual (século XX).

Finalmente, é mister realçarmos ainda o trabalho magnífico de Elisabete Reis que conseguiu, de uma forma inteligente e culta, traduzir da língua inglesa do século XVIII, em que a obra foi escrita, para a língua portuguesa do século XX, sem descurar nenhum detalhe ou omitir alguma informação, adicionando esclarecimentos em nota de pé de página que clarificam o leitor sobre determinados detalhes menos evidentes. É de fato, um trabalho de aplaudir.

Notas

1 No original, A vindication of the rights of woman.

2 Período de intensa agitação política, que teve início com a insurreição que subverteu o Ancien Régime, conhecido por Antigo Regime. Sob o lema de liberté, égalité, fraternité (liberdade, igualdade e fraternidade), os franceses clamavam pela democracia liberal e constitucional. A promulgação dos Direitos do Homem é o grande marco da Revolução Francesa.

3 Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755), Diderot (1713-1784), entre outros.

4 Movimento cultural surgido na Europa e que defendia que o homem é um ser racional (Enciclopédia Verbo luso-brasileira de cultura, 1999:482/83) logo, deve prevalecer o uso da racionalidade na análise e explicação de todos os acontecimentos, sejam sociais, políticos ou outros.

Referências

Enciclopédia Verbo luso-brasileira de cultura – Edição Século XXI. Lisboa/ São Paulo, Editorial Verbo, 1999.

Giddens, Anthony. Sociologia 9ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013;

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Página Editora, 1998.


Resenhista

Ermelinda Liberato – Doutora em Estudos Africanos País de Especialidade – Angola Área de Especialdiade – Economia e desenvolvimento, Instituto Superior de Ciências da Comunicação (ISUCIC), Luanda, Angola. E-mail: ermelinda.liberato@gmail.com  https://orcid.org/0000-0002-9857-4269


Referências desta Resenha

WOLLSTONECRAFT, Mary. Uma Vindicação dos direitos das mulheres. Lisboa: Antígona, 2017. Resenha de: LIBERATO, Ermelinda. Wollstonecraft, uma defensora dos direitos das mulheres: a propósito do livro. Cadernos Pagu. Campinas, n.58, 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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