“Gosto deste velhinho”. Declarou o poeta Carlos Drummond de Andrade em uma crônica publicada em homenagem ao bicentenário do nascimento de Saint-Hilaire (1979, p. 5). Para o escritor mineiro era “um caso de simpatia pessoal e também de gratidão. Entre os viajantes estrangeiros do começo do século 19, ele me interessou mais do que qualquer outro, pelo que viu e contou de Minas. E não só de Minas: do Espírito Santo, de Goiás, de São Paulo, do Sul do Brasil. Graças a ele viajei por essas terras, conheci seus moradores, seus costumes, plantas, animais e minerais sem precisão de sair de casa.” Às suas palavras, o poeta viajou, imaginariamente, apoiado nas narrativas do naturalista.
Auguste François César Prouvençal de Saint-Hilaire nasceu na cidade francesa de Orleans em 4 de outubro de 1779. Sua biografia é conhecida: nascido de uma família nobre, teve uma formação inicial no Colégio Militar de Pontlevez. Após a Revolução Francesa esteve fora da França e retornou em 1802 onde estudou botânica no Museu de Ciências Naturais. Devido a um convite do então embaixador da França na Coroa Portuguesa veio para o Brasil em 1816.
Adentrando nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Goiás, SaintHilaire penetrou na grande nebulosa formada pelos sertões do Brasil. Uma palavra prenhe, desde os primórdios da colonização, de pesada carga semântica social e histórica. Sertão era o gentio, o desconhecido, o nada a ser conquistado e domado. Pelos caminhos rumo ao sertão Saint-Hilaire partiu a (re)descobrir o Brasil. Como herdeiro do Iluminismo de seu tempo se desdobrou para registrar, catalogar, sistematizar e hierarquizar o que viu. Evidentemente, não lhe era possível desembaraçarem-se de convicções pessoais, formações acadêmicas e cargas simbólicas pessoais europeias. No complexo jogo das alteridades – como os demais viajantes a olhar o Brasil no século XIX – as diferentes biografias produziram diferentes narrativas: olhares sempre deslocados, ainda que portadores a priori de uma intenção científica, objetiva e de acordo com seus próprios princípios de coerência e consistência analítica. Como os demais, os registros de Saint-Hilaire são registro do que suas culturas permitiam-lhes ver.
Dos viajantes europeus que passaram por Goiás Saint-Hilaire talvez tenha sido o que emitiu os julgamentos que podem ser inscritos entre os mais ácidos. Logo no prefácio do seu relato à Viagem à Província de Goiás, ele deixou claro que não de se devia julgar o interior da América segundo padrões europeus. Feita esta observação, em seguida ele se contradiz e avisa ao leitor, que a avaliação de Goiás não seria favorável. O território de Goiás, se comparado com o da província vizinha de Minas Gerais, era uma infortunada região entregue por longos anos a uma administração quase sempre imprevidente. O francês viu em toda parte indolência, desânimo e preguiça que levava os fazendeiros à situação de penúria e miséria que os embrutecia. Sobre todos pesava uma apatia em relação a tudo e a todos. Nem mesmo as pessoas de alguma instrução escapavam e a única exceção seria o Comendador Joaquim Alves de Oliveira (1770-1851) e sua propriedade denominada por ele de fazenda modelo.
Saint-Hilaire estava imbuído do sentido civilizatório como muitos cientistas viajantes de sua época. Diversas são suas colocações no sentido a “melhorar” as situações que ele identificava como decadentes. Não deixou escacar nada: economia, propriedade, estradas, relações humanas, hábitos e costumes passaram por seu escrutínio. Seu relato termina reforçando o papel da missão civilizatória da qual ele se via como partícipe. Estava convicto de que a divulgação dos relatos de suas viagens e suas impressões sobre o sertão – divulgando as mazelas, as dificuldades e as potencialidades – poderia mover alguém rumo a alguma ação propositiva. Estava convicto igualmente da relevância de sua sistemática coleta e registro do mundo natural: ao menos registrava exemplares que ele identificou como passiveis de extinção. Neste sentido Saint-Hilaire estava certo. Não são poucos os exemplares da fauna e da flora extintos ou comprovadamente em vias de extinção.
Consciente disto, um grupo organizado pela pesquisadora Lenora Barbo se propôs a revisitar a região explorada por Saint-Hilaire em termos sociais, culturais, históricos, econômicos e ambientais. Através de diversos “olhares” contemporâneos, estudiosos de diversos campos do conhecimento, pretendeu-se revisitar os “olhares” desencadeados pela viagem no século XIX. A partir daí o grupo principiou a refazer, simbolicamente, a viagem por Goiás.
A publicação do livro Uma Viagem pelo Sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás não foi o único resultado desta iniciativa. Foi localizado um mapa que serviu de base cartográfica para a sistematização das informações sobre o percurso. Itinéraire des Cinq Voyages accomplis dans linterior du Brésil 1816-1822 par Aug. de Saint-Hilaire seria um documento à leitura e interpretação das observações feitas pelo naturalista. Em 2020 foi realizado, na Universidade Federal de Goiás, o seminário Os Caminhos de Saint-Hilaire em Goiás: rotas e roteiros de pesquisa. Após isto os diversos pesquisadores debruçaram-se à elaboração de ensaios em suas respectivas áreas.
A coletânea é composta em cinco partes, reunindo textos de 24 autores. A apresentação, feita por Marc Pignal, pesquisador do Museu Nacional de História Natural de Paris, coloca que, mesmo passados duzentos anos de sua estadia em Goiás, existem perguntas não de todo respondidas. A primeira parte, está dedicada aos traços biográficos, aos itinerários na cartografia oitocentista, ao percurso de Minas até Goiás e às expedições no início do século XIX. A segunda, dedicada à arquitetura e aos povoados, inclui ensaios observando as narrativas sobre as cidades goianas, as observações referentes à produção arquitetônica, os arraiais da Picada de Goiás e as contribuições que subsidiaram o reconhecimento do patrimônio cultural goiano. A terceira parte, dedicada às paisagens culturais, inclui análises a entender a música, o imaginário que formavam o ambiente onde o naturalista esteve e as paisagens de Ouro Fino a embasar o que se pode entender como “goianidade”. A quarta parte, analisa a presença dos indígenas, as possibilidades alimentares e as releituras do desenvolvimento urbano a partir das observações do francês no Engenho São Joaquim. A quinta parte analisa o cerrado, as análises da vegetação, o gado, as paisagens campestres no século XIX e a geodiversidade do cerrado goiano.
Como obra coletiva, a análise dos argumentos do livro é plural. Só pode ser feita à luz de cada autor. Diversas são as linhas argumentativas que seguem às temáticas agrupadas na obra. Mas o fio condutor que costura os grupos temáticos é claro. Este fio principia da visão ampla ancorada na geografia e na cartografia para, a partir daí reduzir o foco das observações. Parte da definição do trajeto, ao trajeto e aos objetos deste percurso. Podemos dizer que reproduzem de maneira análoga o procedimento que Saint-Hilaire se propôs a fazer, partindo de um mapa e estabelecendo um percurso, um itinerário, fazer o percurso, ver as paisagens e identificar os objetos. Como ele os autores partiram de uma cartografia e chegaram, por exemplo, à arquitetura e à música produzida naqueles locais.
Cada uma das partes da coletânea recebeu a delicadeza de incluir ilustrações do artista goiano Elder Rocha Lima. Um enriquecimento visual do texto a permitir ao leitor algumas imagens dos locais que Saint-Hilaire viu.
Para um dos autores da coletânea, o Doutor em religião Rafael Lino Rosa, usando nossa imaginação e tendo como base o imaginário que moveram viajantes como Saint-Hilaire, podemos imaginá-lo vendo as terras do sertão. Podemos perceber seu olhar de estranhamento diante de um lugar que talvez fosse o mais distante de sua terra natal. Podemos perceber as energias que o moveram a atravessar o Atlântico rumo a um regiões que ele pouco, ou nada, sabia.
Depois de passados duzentos anos a viagem de Saint-Hilaire por Goiás ainda suscita investigações, permite abordagens, leituras. Permite abordagens a serem inscritas em outras bases e confrontações com outras fontes. Processo contínuo de se rever e (re)fazer História.
Como Saint-Hilaire, os autores realizaram uma viagem pelo sertão onde o percurso é mais relevante que a chegada a algum lugar. Como ele, percebem que o os lugares aparecem como um objeto científico, estético e sensível que comporta modelos de seleção a analisar as camadas de significados constituintes do próprio objeto. O grupo de pesquisadores reunidos sob a coordenação da pesquisadora Lenora Barbo certamente gosta – como Carlos Drummond de Andrade – do “velhinho” francês que passou pelo sertão.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Meu amigo Saint-Hilaire. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 5, 16 out. 1979. Caderno B. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/206977. Acesso em: 20 ago. 2021.
BARBO, Lenora (org.). Uma viagem pelo Sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás. Jundiaí: Paco Editorial, 2021.
Resenhista
Rafael Alves Pinto Junior – Possui graduação em Arquitetura pela Universidade Católica de Goiás (1991), Brasil, mestrado em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (2008), Brasil, e doutorado em História pela Universidade Federal de Goiás (2011), Brasil. Foi Chefe do Departamento de Planejamento Urbano da Prefeitura de Jataí (GO) onde teve a oportunidade de desenvolver projetos no âmbito municipal além de coordenar o processo de Planejamento e Implantação do Plano Diretor local. Atualmente é professor do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Goiás, Câmpus Jataí, Brasil. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9208712284117352. E-mail: rafael.junior@ifg.edu.br
Referências desta Resenha
BARBO, Lenora (Org.). Uma viagem pelo Sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás. Jundiaí: Paco Editorial, 2021. Resenha de: PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Albuquerque. Campo Grande, v. 13, n. 26, p. 208- 211, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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