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Uma pré-história do turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850) – CAMARGO (RBH)

CAMARGO, Haroldo Leitão. Uma pré-história do turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850). São Paulo: Aleph, 2007. 383p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55  jan./jun. 2008.

Na efeméride dos duzentos anos da chegada da Coroa Portuguesa a terras brasileiras e na esteira das inovações que trouxe consigo — como a criação de instituições de ensino superior, indústrias, imprensa e museus, entre outras —, observamos que a historiografia tem revisitado esses temas. No entanto, poucos especialistas têm se debruçado sobre o estudo das formas de lazer introduzidas no Brasil Colônia, após 1808 — temática eleita por Haroldo Leitão Camargo em Uma pré-história do turismo no Brasil. Trata-se de um volume que retoma a análise dos percalços das viagens transoceânicas realizadas entre os séculos XVI e XIX e das transformações que distintas formas de diversão adquiriram no Brasil. Todavia, sua principal contribuição diz respeito à conceituação do ‘proto-turismo’ e ao estudo das conotações atribuídas às recreações, aos banhos de mar, às caldas e às estâncias hidrominerais desfrutados pelos membros da corte e seus pares.

Uma narrativa envolvente e fundamentada em documentação diversificada nos introduz em um universo que abarca desde relatos de navegadores anônimos manifestos por tripulantes de embarcações, funcionários da Companhia das índias ocidentais, comerciantes, jesuítas e capuchinhos, até correspondências pessoais de aspirantes a marinheiro como Manet, que se tornaria reconhecido artista plástico. Registros de exploradores e cientistas estrangeiros que se aventuraram pelas terras tropicais e comentários de personagens emblemáticos, como Pero Vaz de Caminha, também não escaparam de uma cuidadosa análise por parte do autor.

Com efeito, Camargo nos deleita com impressões transmitidas por olhares estrangeiros através da literatura de viagem, muito apreciada entre os europeus no século XIX. Um gênero que corroborou para transformar o exercício individual da leitura numa prática de sociabilidade compartilhada em serões domésticos não apenas na Europa, mas também no Brasil. Além dessa literatura, o autor toma como referenciais investigativos folhetins, anúncios, vinhetas, ilustrações e diários de membros da corte com o intuito de apreender o sentido atribuído para as práticas sociais que incluíram os benefícios medicinais das águas minerais e sulfurosas, as atividades em balneários marítimos e as diversões desfrutadas por parte significativa da aristocracia portuguesa instalada no Brasil no início do século XIX, reproduzidas também pela fidalguia mais abastada.

Tal empreitada exigiu a averiguação de pistas acerca das motivações e as inovações tecnológicas capazes de propiciar a oferta de atividades que levariam os indivíduos a se afastarem do trabalho (ou do não-trabalho) e seriam, na atualidade, decodificadas como anseios associados às necessidades psíquicas e culturais de os cidadãos esquivarem-se de suas rotinas cotidianas. Nesse percurso, Camargo não se furta da investigação sobre os significados históricos da vilegiatura, das caçadas e dos jogos de carteado, da hospedagem nos cottages na Serra, da construção de casas de veraneio, enfim, de recreações em tempos e espaços sociais distintos. Aborda a origem etimológica dos vocábulos e as suas similaridades e diferenças em relação ao turismo, tal como é concebido pela sociedade capitalista.

O livro examina de que maneira determinados costumes passaram a ser reconhecidos como embriões do turismo no país e procura desvelar visões simplistas, cujo intuito se circunscreve a associar, por exemplo, os banhos ao turismo. Interessado em compreender as alterações que, simultaneamente, enredaram a ritualização desse fenômeno, pesquisa os hábitos que passaram a adquirir sentidos lúdicos e a envolver serviços remunerados sem, no entanto, excluir as indicações médicas que os inflaram. Para tanto, opta por analisar a gênese e o desenvolvimento de determinadas práticas cotidianas, como as desenvolvidas nos antigos balneários romanos e outras que, ao longo dos séculos, se transformaram em atividades recreativas ou terapêuticas recorrentes entre a aristocracia européia, igualmente adotadas no Brasil pela ‘Corte Tropical’.

Do seu ponto de vista, a vilegiatura, as visitas à Floresta da Tijuca, ao Corcovado ou ao Horto Real ou Jardim Botânico indicam a busca de ares mais puros e a fuga da usualidade. Os banhos em águas salgadas ou passeios à beira-mar difundidos entre aristocratas e burgueses, a princípio recomendados por médicos, posteriormente assumiram um perfil hedonista e prazeroso distante das motivações terapêuticas e profiláticas iniciais.

Nessa linha argumentativa, o autor salienta que as visitas às fontes de águas minerais e às caldas, praticadas desde a Antiguidade, assumiram uma dimensão disciplinada e regular a partir da amplitude que atingiram no discurso médico no século XVIII e ora se imbricaram a empreendimentos médico-hospitalares, ora se associaram ao ‘curismo-turismo’, como ocorreu na Grã-Bretanha, na Europa Ocidental e Central. No Brasil, o usufruir das chamadas ‘águas virtuosas’ implicou as facilidades de acesso a esses locais, bem como diferentes percepções sobre suas finalidades. Enquanto para o comerciante inglês John Luccock1 elas apresentavam um potencial comercial a ser explorado, para D. João VI, fundamentado talvez em princípios de ‘eqüidade’ ou em perspectivas empresariais limitadas, a virtude curativa dessas águas devia ser consagrada a remediar “moléstias rebeldes aos esforços da Medicina e da Cirurgia” (p.259).

As viagens transoceânicas e os seus infortúnios constituem um outro assunto abordado por Haroldo L. Camargo, um tema recorrente na literatura especializada que deu e continua dando vazão às fábulas alimentadas no imaginário social. Assim, por intermédio de fragmentos de relatos dos vários viajantes, o historiador evidencia situações vivenciadas no cotidiano das embarcações que se precipitavam mar adentro e remete à precariedade das condições de vida a bordo, entre os séculos XVI e XVIII. Para esses passageiros e tripulantes, o conceito de uma viagem profícua se circunscrevia à condição de escapar com vida ao seu término.

Apenas para aguçarmos a diligência de futuros interlocutores, vale retomar determinados relatos analisados nesse volume, como os do jesuíta Antônio Sepp, do funcionário da Companhia das índias ocidentais da Holanda Joan Nieuhof e do marquês de Távora. Alguns deles descrevem suas impressões sobre o Brasil e seus habitantes, mas salientam os contratempos enfrentados no transcurso das viagens, tais como: sucessivas tempestades, a putrefação dos alimentos, a contaminação da água potável, o desconforto psicológico e material, a necessidade de superar a ‘lenta’ passagem do tempo, as pestes e doenças. Como se não bastassem tais mazelas, mencionam ataques de corsários inculpados de saquear as embarcações, ferir os tripulantes e escravizar os sobreviventes. O temor dos ‘perigos do mar’, por exemplo, é exposto com minúcias por Joan Nieuhof que, em 1640, desembarcou no Recife.

Os relatos tomados como fontes por Camargo tendem a desmistificar o imaginário ocidental relativo às imagens romanescas criadas em torno dos tripulantes das naus e suas ‘façanhas heróicas’. Se nos séculos XV e XVII alguns registros dessas viagens se aproximam do que o autor define como ‘confissões catárticas’, os relatos dos séculos XVIII e XIX apontam alterações no perfil dos viajantes e, principalmente, da tripulação — em geral, composta por pessoas marginalizadas socialmente e que abraçavam a profissão sem conhecer as artimanhas do ofício. O jesuíta Antônio Sepp, cujo translado iniciou-se em Cádiz (Espanha) com destino a Buenos Aires (Argentina), no segundo quartel do século XVII, inquieta o leitor porque se refere aos ‘conceitos e preconceitos’ manifestos no ambiente social interno dessas embarcações. Ele admite nutrir rancores contra o comandante considerado mesquinho e ambicioso. Já em 1750, o marquês de Távora mostra-se indignado frente à brutalização dos marinheiros e chega a afirmar: “Posso lhes assegurar que … sentem mais a morte de um de seus frangos do que a perda de cinco ou seis companheiros de viagem” (citado na p.53).

De todo modo, cabe-nos destacar que o historiador extrai das entrelinhas dessas narrativas algumas verossimilhanças e esmiúça as imagens idealizadas impressas na literatura que se reporta à pirataria ou aos desafios das viagens transoceânicas. Tais temas foram e continuam sendo alvo de inspiração para produções cinematográficas e literárias que não raro são apropriadas por empreendimentos turísticos e pela publicidade. Nessa direção, assevera: “O turismo reelabora para os seus próprios fins as imagens e a produção delas decorrentes…” e ao referir-se às recreações dessa natureza lembra que “Em torno delas, há uma orquestração que pretende revivê-las, mitigadas e conseqüentemente desprovidas de suas características reais…” (p.55).

Sem dúvida, as perspectivas de desfrutar da aventura, do terror ou do prazer estimulam sensações muito bem exploradas por empresas que se ocupam do turismo desde que a sociedade industrial criou o axioma ‘tempo é dinheiro’. O tempo deve ser integralmente aproveitado, até mesmo aquele destinado ao descanso, à recreação e ao lazer. Encerramos esta resenha citando o historiador Evaldo Cabral de Mello quando afirma que “o prazer de falar de um bom livro só é inferior ao prazer de lê-lo”,2 e salientamos a propriedade com que Haroldo Camargo trata a problemática pesquisada — tema candente na atualidade.

Notas

1 Luccock viveu no Rio de Janeiro entre 1808 e 1818. Ao retornar ao seu país publicou Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, em 1820. O livro foi traduzido para o alemão um ano depois e compilado em 1831 numa versão destinada ao público juvenil, dada a significativa aceitação do tema entre os europeus. No Brasil, há duas edições: Itatiaia (Belo Horizonte) e São Paulo (Edusp, 1975). Cf. CAMARGO, 2007, p.79, 367.

2 Cf. MELLO, E. C. “Em O modelo italiano, Fernand Braudel examina o apogeu cultural, político e econômico do país nos séculos 15, 16 e 17″. Folha de S. Paulo, 23.dez.2007, Caderno Mais, p.8.         [ Links ]

Sandra C. A. Pelegrini – Depto. de História – Universidade Estadual de Maringá. Avenida Colombo, 5790, Jardim Universitário.87020-900 Maringá – PR – Brasil. E-mail: spelegrini@wnet.com.br

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Itamar Freitas

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