Após aproximadamente um ano da publicação da chamada de artigos para este dossiê, a pandemia da Covid-19 no Brasil atinge marcas desastrosas para o país, adensando uma crise que também afeta de maneira dramática o setor da cultura. Adiada para setembro de 2021, a 34ª Bienal de São Paulo pode ter as datas da sua inauguração alteradas mais uma vez, ampliando ainda mais um hiato que pode se igualar àquele de 1998-2002, causado na época pela polêmica ‘Mostra do Redescobrimento’. Aqui, mas também no exterior, não temos ouvido por parte das instituições promotoras de bienais e outras exposições periódicas de arte contemporânea, reflexões críticas acerca do cenário atual e dos desafios para o futuro das megaexposições1. No passado recente, a experiência de crises institucionais levou agentes culturais e curadores a repensarem o esvaziamento desses eventos. Em 2008, Ivo Mesquita chegou a propor uma ‘quarentena’ durante a 28ª Bienal de São Paulo, organizando uma exposição ‘arquivística’, acompanhada por uma série de encontros e debates para discutir o modelo bienal e propor reformulações à Fundação Bienal de São Paulo. No entanto, essas propostas de se repensar o modelo das bienais acabaram sendo deixadas de lado, e uma vez superada a crise, o sistema retornou ao seu funcionamento habitual. A crise atual sendo sem precedentes, o retorno à ‘normalidade’ pode ser quimérico, e o futuro das exposições é uma questão em aberto, que exigirá novas problematizações.
A proposta deste dossiê não é discutir as bienais ‘em tempos de pandemia’, isto é, discutir os efeitos específicos da crise nas megaexposições. Propomos, porém, aproveitar o hiato presente, para mapear o pensamento existente sobre as exposições periódicas de arte contemporânea e sua história. Vale lembrar que o fenômeno da ‘bienalização’ tem sido recorrentemente mencionado nas últimas décadas. Na alvorada da ‘virada global’, a multiplicação de bienais foi saudada como uma forma de descentralização do circuito artístico. Hans Belting, por exemplo, destacou a abertura de novos eixos geopolíticos que, em seu entendimento, marcavam uma ruptura com aquela geografia da arte implícita à historiografia modernista (Belting; Buddensieg; Weibel, 2013). Mas a dinâmica prioritariamente mercadológica dessa expansão ficou logo evidente, seu movimento seguindo as linhas de expansão do capitalismo globalizado, e seria hoje leviano continuar a concebê-la apenas sob o prisma da ruptura epistemológica. Em contrapartida, encarar as megaexposições apenas como eventos de mercado também seria uma mirada redutora. Não apenas porque se trata de um terreno em constante disputa – alguns autores falam em bienais de resistência (Marchart, 2014), outros propõem que as bienais possam se afigurar tanto como “espaços do capital” quanto como “espaços de esperança” (Kompatsiaris, 2014: 78). Mas também porque as grandes exposições possuem de fato funções epistemológicas, afetando o campo da pesquisa da arte. É possível notar como as exposições periódicas serviram historicamente como mediadoras centrais no reconhecimento de artistas e tendências, operando uma triagem do cânone e influenciando a historiografia. Essa função mediadora se torna talvez mais premente após a bienalização da virada global, quando as grandes exposições assumiram para si a tarefa de revisoras do cânone e de promotoras da crítica da história da arte tradicional. As feições que a nova história da arte tem assumido desde então possuem, portanto, uma relação direta (e ainda não problematizada) com as megaexposições globais. Como notaram Gardner e Green:
No início do século XXI, uma série de bienais através do globo (…) tentaram redefinir o cânone existente da arte moderna e contemporânea, movendo-se para trás e para frente em vez de através do terreno do presente e, ao menos igualmente importante, redefinindo o envolvimento do público com a própria arte, como algo imbricado com a política e a geografia, através de complexos programas públicos que emergiram conjuntamente com as próprias exposições. (Green; Gardner, 2016: 275)2
Pensar o lugar atual ocupado pelas exposições periódicas implica, assim, considerar duas vertentes que emergiram nos últimos decênios no bojo da renovação epistemológica que tem marcado a prática e a pesquisa da arte: a história das exposições e os estudos de arte global. Os textos presentes nesse dossiê relacionam-se a esse contexto, apresentando grande abrangência tanto geográfica quanto temporal. Bienais de todos os continentes são problematizadas, edições recentes ou históricas, monográfica ou comparativamente. Seus autores e autoras provêm de diferentes países e apresentam abordagens variadas. De modo geral, o dossiê poderia ser organizado ao redor de dois eixos previstos. O primeiro, dedicado às questões referentes às bienais e exposições periódicas dentro de novas dinâmicas do sistema globalizado da arte contemporânea, como por exemplo a geopolítica inerente ao surgimento de bienais fora dos antigos centros artísticos como as Bienais do Sudeste Asiático mapeadas por Leonor Veiga ou a exposição inSite, no México, analisada por Luiz Sérgio Oliveira. Simultaneamente aos questionamentos acerca do papel das bienais e outras megaexposições periódicas nas últimas décadas e ao processo de formação de um sistema artístico global, ocorreu o advento de estudos e publicações sobre exposições, por exemplo em trabalhos de historiadores como Exhibitions that made Art History de Bruce Altschuler (2008; 2013), e projetos editoriais como a coleção “Exhibition Histories”3. Nesse campo emergente da história das exposições, criou-se uma genealogia notadamente vinculada aos cânones da história da arte, caracterizada pela referência a momentos históricos e casos curatoriais marcantes (Cavalcanti, et al., 2016; Cypriano, Marins, 2016), dando-se ênfase às megaexposições conhecidas globalmente (no caso brasileiro, por exemplo, a “Bienal da Antropofagia”) (Lagnado; Lafuente, 2015)4. Tal cronologia encontra sua origem inegavelmente na Bienal de Veneza, enquanto a Bienal de Havana marcaria o início do processo de expansão de bienais em regiões antes consideradas periféricas no circuito internacional de arte contemporânea (Niemojewski, 2010) e – embora essas hierarquias geopolíticas tenham sido em diferentes ocasiões questionadas – a documenta continua sendo reafirmada como ‘the mother of all curatorial statements’ (Esche, 2013: 9). Tal afirmação se refere não somente à centralidade da exposição na discussão estética contemporânea, mas também à politização dos debates no interior de projetos curatoriais mais recentes, questão abordada também por Gabriel Zacarias na análise da 13ª documenta e por Nora Sternfeld ao falar, para além de Kassel, sobre boicotes promovidos por agentes culturais e organizadores de exposições.
Outro vetor alinha abordagens historiográficas acerca de cânones já estabelecidos no âmbito da história das exposições. A Bienal de Veneza, a mais antiga das congêneres, criada em 1895, e por isso referência para as exposições periódicas, tem suas conjunturas recentes analisadas por Angélica Vásquez. Mais importante centro da arte moderna, Paris sediou, entre 1959 e 1985, bienais voltadas para ‘jovens artistas’, promovendo novas vanguardas sobretudo a partir da 7ª Bienal de Paris de 1970, como destacado por Jérôme Glicenstein. Se a partir dos anos 1970 as exposições periódicas passam a ser associadas à produção contemporânea, anteriormente, no imediato pós-guerra, elas foram responsáveis por promover a abstração como ‘linguagem universal’. Ao escrever sobre a documenta, Nanne Buurman destaca a função do mito modernista no ocultamento das permanências institucionais do nazismo. Entra em jogo também a influência da diplomacia cultural norte-americana nesse processo, fenômeno igualmente abordado nos textos de Marcos Rosa e German Nunez, com ênfases respectivas nas apresentações do ‘expressionismo abstrato’ e da ‘arte tecnológica’ nas Bienais de São Paulo. Bienal e documenta comparecem também no artigo de Tiago Machado, relacionadas através das intervenções do artista Daniel Buren, que indicam em contraponto a emergência do curador-autor e da exposição como obra de arte.
Fechando o conjunto de textos publicados há contribuições que tratam de algumas discussões bissextas. Joaquín Barriendos aborda a Bienal de Havana através da perspectiva geopolítica da revista Third Text. Juliana Caffé ao falar sobre as Bienais de Havana e Joanesburgo discute as origens das exposições periódicas e as genealogias da história das exposições, assunto também tratado por Vinicius Spricigo em artigo sobre a representação da produção artística brasileira em exposições internacionais na Grã-Bretanha. Embora os textos se enquadrem nos eixos anteriores, entre eles seria possível traçar uma linha transversal ligadas por discussões epistemológicas situadas no contexto atual por Mirtes Marins em texto que trata de decolonialidade e pandemia. Certamente, outros vetores e transversais podem ser traçados entre os temas e abordagens deste dossiê, portanto, convidamos o leitor a percorrer os diversos caminhos de leitura possíveis e estabelecer suas próprias relações. Esperamos que tais reflexões, historiográficas e atuais, possam promover uma reflexão crítica sobre as bienais e exposições periódicas de arte contemporânea a partir do âmbito acadêmico.
Notas
1 Um caso excepcional, que acaba confirmando a regra pela sua independência institucional, foi o debate organizado, em 2020, por Marco Baravalle e Vittoria Martini, com foco na Bienal de Veneza, com o título provisório Inhabiting the void. Covering the Distance, definido após o adiamento da Bienal de Arquitetura, quando a Biennale anunciou uma exposição de documentos sobretudo do Archive of Contemporary Arts, como estratégia de preencher o vazio do Pavilhão Central nos Giardini de Veneza. Posteriormente, o título foi alterado para The Venice Biennale in Pandemic Times. Ver Forum of Italian Contemporary Art. Disponível em: http://www.forumartecontemporanea.it/focus-ii-the-venice-biennale-in-pandemic-times
2 “a stream of early twenty-first-century biennials across the globe (…) attempted to redefine the existing canon of modern and contemporary art, ranging backwards and forwards rather than across the terrain of the present and, at least as important, redefining their audiences’ engagement with art itself as something entangled with politics and geography through complex public programs that merged with exhibitions themselves”.
3 Coleção iniciada com Rattemeyer, Christian; et al. Exhibiting the New Art: Op Losse Schroeven and When Attitudes Become Form 1969. London: Afterall books, 2010.
4 Para uma problematização do privilégio acordado à 24a Bienal, ver: (Spricigo, 2016).
Referências
BELTING, H.; BUDDENSIEG, A.; WEIBEL, P. (eds.), The Global Contemporary, Art Worlds after 1989. ZKM Center for Art and Media Karlsruhe, Sept. 17, 2011 – Feb. 5, 2012. Cambridge, MA: The MIT Press, 2013.
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_______. Salon to Biennial: Exhibitions that Made Art History. Volume 1: 1863-1959. London: Phaidon, 2008.
CAVALCANTI, A.; COUTO, M.F.M.; MALTA, M.; OLIVEIRA, E. (orgs.). Histórias da Arte em Exposições – Modos de Ver e Exibir no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Books, 2016.
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ESCHE, C. A good place or a no place? In: WEISS, Rachel. Making Art Global (Part 1): The Third Havana Biennial. London, Afterall Books, 2013, p.08-13.
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LAGNADO, L.; LAFUENTE, P. Cultural Anthropophagy: The 24th Bienal de São Paulo 1998. London: Afterall Books, 2015.
MARCHART, O. The Globalization of Art and the ‘Biennials of Resistance’: A History of the Biennales from the Periphery, World Art 4, n. 2, 2014, p. 263–76. Disponível em: https://doi.org/10.1080/21500894.2014.961645. Acesso em abril de 2021.
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SPRICIGO, V. Anthropophagisme et historiographie. Marges, revue d’art contemporain, v.23, dossier Globalismes, 2016, p.10-22.
Organizadores
Gabriel Ferreira Zacarias – Professor de História da Arte do IFCH-Unicamp. Foi pesquisador visitante da Universidade de Yale (2020), e pesquisador de pós-doutorado na EHESS-Paris (2016). Possui doutorado pelas universidades de Perpignan e Bergamo, e mestrado pelas universidade de Strasbourg e Bologna, tendo sido bolsista do programa Erasmus Mundus da União Europeia (2009-2014). Foi editor da revista Marges, revue d’art contemporain (Presses Universitaires de Vincennes), na França, e organizou, na Inglaterra, o volume The Situationist International: A Critical Handbook (Pluto Press: 2020), conjuntamente com Alastair Hammens. No Brasil, publicou o ensaio No Espelho do Terror: Jihad e Espetáculo (Elefante: 2018). Com Vinicius Spricigo, dirige o Grupo de Pesquisas ‘Política e Crítica da Arte Contemporânea’ (CNPq). Orienta pesquisas sobre história das exposições e realizou pesquisa sobre a documenta de Kassel com financiamento da FAPESP (2017-2019). E-mail: gabrielz@unicamp.br ORCID: https://orcid.org/0000- 0002-0290-9678 https://orcid.org/0000-0003-1091-0908
Vinicius Pontes Spricigo – Professor adjunto do Departamento de História da Arte da UNIFESP e membro do Grupo de Pesquisas ‘Política e Crítica da Arte Contemporânea’ (CNPq). O foco da sua pesquisa é o estudo das exposições, tendo se concentrado, nos últimos anos, nas megaexposições periódicas de arte contemporânea. Realizou pesquisa de pós-doutorado junto ao Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC) da PUC/SP, no Interdisziplinäres Institut für Historische Anthropologie da Freie Universität Berlin (2012), no programa Art dans la Mondialisation do Institut National de Histoire de l’Art (2013) e no Research Centre for Transnational Art Identity and Nation da University of the Arts London (2019-2020). Doutor pela ECA-USP, como parte de seu doutorado foi pesquisador visitante no Royal College of Art (Londres, 2007) e no Projeto Global Art and the Museum (ZKM/Karlsruhe, 2009). Contribuiu, entre outros textos publicados, para os livros The Biennial Reader e German Art in São Paulo, ambos pela Hatje Cantz. E-mail: vinicius.spricigo@unifesp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3320-1805 https://orcid.org/0000-0003-1091-0908
Referências desta apresentação
ZACARIAS, Gabriel Ferreira; SPRICIGO, Vinicius Pontes. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 5, n.2, p. 119–124, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]
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