Uma latente filosofia do tempo | Reinhart Koselleck
Com relativo atraso, as principais obras de Koselleck encontram-se traduzidas no Brasil. Crítica e crise (2009 [1959]), O futuro passado (2006a [1979]), Estratos do tempo (2014 [2000]) e Histórias de conceitos (2020 [2006]), publicados pela Editora Contraponto, reúnem os textos principais do autor, na diversidade de direções em que ele desenvolve suas ideias. O trabalho de tradução é quase sempre excelente, com uma linguagem clara, notas explicativas e didáticas, que esclarecem as dificuldades inerentes à tradução de textos que envolvem discussões históricas e etimológicas complexas, como é o caso em Koselleck. Crítica e crise, o primeiro livro da série, faria uma exceção ao grupo, pois consta com frases alteradas, abreviadas e fundidas com outras, o que exigiria uma revisão completa para deixar o texto mais fiel ao original. A parte boa é que se trata de uma exceção no conjunto.
Dado esse passo importante, é natural que agora se abra o caminho para textos menos conhecidos, avulsos ou presentes em coletâneas fora do campo dos livros principais do autor. Essa é a via seguida por Uma latente filosofia do tempo, publicado pela Editora Unesp, com organização de Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues (que também assina um excelente prefácio) e tradução de Luiz Costa Lima. O livro é composto por quatro textos: “Estruturas de repetição na linguagem e na história”, “Sobre o sentido e o não sentido da história”, “Ficção e realidade histórica” e “Para que ainda investigação histórica?”, retirados de uma obra publicada postumamente, em 2010, pela Suhrkamp, com titulo Sobre o sentido e o não sentido da história, na qual estão reunidos trabalhos que abarcam 40 anos da produção de Koselleck, alguns deles inéditos. A seleção de Gumbrecht e Thamara Rodrigues é inteligente e apresenta-nos um Koselleck heterogêneo e heterodoxo, defensor de uma variedade de teses, esquemas, sugestões e observações com os quais sempre aprendemos muito.
Não faremos, todavia, uma resenha conceitual do livro, pois ela está de saída prejudicada pela tradução, que contém muitos problemas, erros e omissões. No geral, há frases traduzidas erroneamente (dando sentido alterado ou até oposto ao original), além de períodos, orações e até parágrafos inteiros faltando. Isso torna frases ou páginas inteiras quase inaproveitáveis, sobretudo para trabalhos acadêmicos. No que se segue, faremos uma seleção de tais problemas – que poderiam ser estendidos mais do que cabe aqui –, para expor as dificuldades presentes na edição que por ora nos chega às mãos. Para dar uma referência precisa, citaremos os originais em suas publicações avulsas, tais como apareceram em revistas acadêmicas diversas e de acesso mais fácil, mas certificamos que os trechos permanecem iguais na versão em livro, garantindo que a divergência não seja causada por diferentes versões dos textos2.
Comecemos pelo mais grave: as omissões ou supressões. No primeiro ensaio, começamos com a falta de um parágrafo inteiro, razoavelmente extenso, logo nas primeiras páginas. Depois do parágrafo que encerra com “cabe analisar e representar em camadas as relações em que os dois polos se misturam?” (KOSELLECK, 2021, p. 58, que não está grifado no original), falta um parágrafo:
Nosso modelo de pensamento [Denkmodell], que exige combinações diferenciadas entre repetição e inovação, permite registrar atrasos e acelerações, segundo a frequência com que for possível atribuir repetição e unicidade a um e outro. A aceleração ocorreria, então, quando numa série de comparações houvesse cada vez menos repetições que antes, e no lugar se inserissem cada vez mais novidades, que dispensariam os antigos padrões. Atrasos ocorreriam, então, quando repetições habituais se conectassem ou se fixassem de tal forma que toda modificação fosse freada ou se tornasse impossível. (KOSELLECK, 2006b, p. 2)
Mais adiante, depois do período que termina com “e renova estruturas de repetição que são anteriores ao produto singularizado” (KOSELLECK, 2021, p. 66), falta um período onde se lê: “A produtividade planejada e a ser aumentada precede a produção no caso individual empiricamente correspondente” (KOSELLECK, 2006b, p. 7). Um pouco mais abaixo, na mesma página, depois do período que termina com “se realizar se o direito vigente é cumprido”, falta outro período: “Caso contrário, proliferaria o puro arbítrio, independentemente de quem o exerça” (KOSELLECK, 2006b, p. 8). Num espaço de oito páginas, portanto, surgem omissões graves, que resultam num texto problemático do ponto de vista de uma tradução acadêmica séria.
No último texto, encontramos de novo a supressão de um breve parágrafo. Depois do parágrafo que termina dizendo que “A pergunta (…) escondida atrás da crítica de nossa ciência” (KOSELLECK, 2021, p. 138), falta outro, que diz:
Essa questão reformulada não é tão sem sentido como parece. Pois a história, da qual falamos aqui de maneira tão evidente, é um produto inteiramente específico da modernidade. É possível de fato dizer que a modernidade só começa depois que a história enquanto tal foi descoberta. (KOSELLECK, 1971, p. 5-6)
Ainda nesse texto, há uma frase que não apenas mistura dois períodos do original num só, perdendo uma distinção conceitual importante, mas aponta para outra característica negativa da tradução, em que termos e frases são traduzidos erroneamente, dando sentido diferente do original. Na tradução, lemos o seguinte trecho: “A história antes [da modernidade] significava sobretudo o sucedido, seu destino, sua exposição e narrativa, particularmente uma sequência de ações sucedidas ou sofridas” (KOSELLECK, 2021, p. 138). No original, porém, são dois períodos:
Antes, história [Geschichte] significava predominantemente acontecimento, destino, acidente, sobretudo uma sequência de ações praticadas ou sofridas. A investigação histórica [Historie] significava principalmente a comunicação disso, sua investigação, o relato e a narrativa a respeito. (KOSELLECK, 1971, p. 6)
O trecho é central por introduzir a diferença entre Geschichte e Historie, na qual aliás o tradutor insiste muito, mas que foi perdida aqui. O que impede, com efeito, a compreensão da frase seguinte, que está traduzida incorretamente: “No curso do século XVII, especialmente do XVIII, esses dois campos de interpretação (…) foram mutuamente se solapando” (KOSELLECK, 2021, p. 138). Sem a tradução correta do trecho anterior, o leitor pergunta-se: quais dois “campos de interpretação”? Mas tampouco são “campos de interpretação” e sim “campos de significado [Bedeutungsfelder]”, que não se “solapam”, mas passam a se “sobrepôr” (KOSELLECK, 1971, p. 6). Trata-se de um falso cognato: überlappen foi traduzido por “solapar”, dando sentido de “destruir” ou “arruinar”. O sentido do trecho foi perdido: Koselleck está apresentando como, até os séculos XVII e XVIII, os campos de significado da Geschichte e da Historie eram separáveis, mas depois se passaram a sobrepor. São demarcações essenciais, como sabemos, sendo grave sua ausência.
Note-se, ainda, que embora a tradução defenda a distinção entre “história” (Geschichte) e “investigação histórica” (Historie), ela não é padronizada. O título do segundo ensaio rompe com essa opção, sendo vertido por “Sobre o sentido e o não sentido da investigação histórica (Geschichte)”. E o título do último texto volta à preferência inicial: “Para que ainda investigação histórica [Historie]?”. Neste, Historie será ainda traduzida por “indagação histórica” (KOSELLECK, 2021, p. 146). Uma revisão detalhada notaria vários casos semelhantes de falta de padronização. Um exemplo é o termo bewältigen, ainda no último texto. Koselleck comenta “aquela exigência” de que, na tradução, “a história tenha que dominar [bewältigen] o passado”. No período seguinte, o mesmo termo já assume outro sentido: “o passado é passado e, como tal, não mais passível de reprodução [nicht mehr zu bewältigen]” (KOSELLECK, 2021, p. 132). Ambos são totalmente diferentes, e também incorretos. Bewältigen significa simplesmente “superar”, “ultrapassar” ou “vencer” (um obstáculo, p. ex.). O sentido correto de ambas as frases deveria, portanto, ser: “a história tenha que superar o passado” e “o passado é passado e, enquanto passado, não é algo mais a ser superado” (KOSELLECK, 1971, p. 1). Ainda no mesmo parágrafo, no período seguinte, há outra tradução incorreta: “A ambiguidade do ‘passado’ – que também é presente – é reconhecida quando se crê poder-se renovar o passado” (KOSELLECK, 2021, p. 132). O correto é que a ambiguidade é “ignorada [verkannt] quando se acredita poder renovar [aufarbeiten] o passado” (KOSELLECK, 1971, p. 1). A tradução confunde verkennen com anerkennen (reconhecer).
Voltemos às supressões. Além dos casos em que faltam parágrafos ou períodos importantes, há outros menores, como ocorre neste período do segundo texto, traduzido de maneira incompleta: “São essas conotações histórico-filosóficas, ainda não contidas no conceito pré-moderno de história (Historia) e que só se introduziram em nossa compreensão pelo conceito moderno de história” (KOSELLECK, 2021, p. 96-97). No original, há uma oração no fim, que foi perdida:
São essas conotações histórico-filosóficas, que ainda não estavam contidas no conceito pré- -moderno de história (Historia) e que só inundaram [eingeflutet] nosso acervo conceitual [Begriffsvermögen] através do conceito moderno de história, sem serem teoricamente refletidas ou canalizadas cientificamente.
É um caso menor, mas o problema é que há vários semelhantes, pouco importando se afetam ou não o sentido do original. Tomemos, todavia, um exemplo em que a tradução incompleta danifica consideravelmente o sentido do texto. Trata-se do último período do penúltimo parágrafo do primeiro texto, que está incompleto, cortando uma reflexão genial de Koselleck sobre O manifesto comunista. O autor comenta como Lutero, ao traduzir a Bíblia, verteu Berith, termo que se refere à aliança com Deus, pela palavra alemã Bund, termo jurídico que significava a realização de acordos dentro de um estamento ou entre estamentos diferentes. Com isso, Lutero dava um estatuto jurídico à aliança com Deus, mas com o efeito retroativo que conferia carga teológica a vários usos políticos e jurídicos do termo Bund. O melhor exemplo disso é que, em 1847, Marx e Engels foram encarregados de redigir uma “Profissão de fé da liga [Bunde] dos comunistas”. No lugar desse texto, publicaram, no ano seguinte, o Manifesto comunista. Na tradução, a conclusão é a seguinte: “A confissão de fé foi substituída por uma manifestação histórico-filosófica e a aliança divina por um partido polêmica e conscientemente unilateral” (KOSELLECK, 2021, p. 77). Mas falta uma oração. O correto seria: “A profissão de fé foi substituída por uma manifestação histórico-filosófica e a aliança divina por um partido combativo [kampfhat] e conscientemente unilateral, que sabia agora estar em aliança [im Bunde] com a história interpretada histórico-filosoficamente” (KOSELLECK, 2006b, p. 14-15). Com a frase incompleta, o sentido inteiro da reflexão esvai-se. Veja-se ainda um caso em que basta um mero adjetivo faltando para alterar o sentido da frase. No quarto texto, Koselleck traça uma análise histórica sobre a antiga faculdade alemã e a posição que nela ocupava a história. Mais que uma disciplina, ela era um elo que unia a faculdade inteira – posição que ela perderá depois. Na tradução: o que unia a antiga faculdade era “a compreensão de si e do mundo” (KOSELLECK, 2021, p. 132). Mas o original é: “a compreensão histórica de si e do mundo” (KOSELLECK, 1971, p. 2). O detalhe é pequeno, mas pesa bastante: sem ele, não faria sentido dizer, como ocorrerá na sequência do texto, que, desde então, passou a haver uma desistoricização das disciplinas da faculdade.
Fora as supressões, o livro falha em traduzir corretamente muitas palavras, perdendo o sentido da frase original, quando não lhe dá um sentido oposto. Por exemplo, no primeiro texto, Koselleck explica que a sintaxe (ou gramática) se altera historicamente de maneira lenta, enquanto a semântica se adapta mais rapidamente a exigências externas (como as políticas). Um exemplo é o nazismo. Koselleck diz: “Mas, apesar das palavras belicistas vomitadas pela propaganda nacional-socialista, a língua alemã se modificou estruturalmente no interregno durante 1933 e 1945” (KOSELLECK, 2021, p. 75). Aqui, a concatenação do raciocínio bastaria para suspeitar que a frase tenha sido traduzida incorretamente. Todo o texto está voltado a apontar mudanças semânticas que não são acompanhadas por mudanças sintáticas. Já a oposição no trecho (“Mas, apesar”) entre a profusão das palavras usadas pela propaganda nazista e a estrutura da língua deveria sugerir que, apesar de tais palavras, não houve modificação estrutural. Seria mais coerente. E, de fato, o original diz: apesar dessas palavras, “a língua alemã no conjunto mal [kaum] se alterou estruturalmente nos doze anos entre 1933 e 1945” (KOSELLECK, 2006b, p. 13). O sentido do kaum foi ignorado, produzindo uma frase que diz o oposto do original. Erro idêntico ocorrerá no quarto texto, onde, na tradução, lê-se: “Onde, por exemplo, métodos comparativos sejam empregados, confronta-se a pressão de se alcançarem determinações diacrônicas profundas” (KOSELLECK, 2021, p. 136). Mas o correto seria: “Onde métodos comparativos, por exemplo, são empregados, eles mal escapam [entegehen sie kaum] à necessidade de tocar em determinações diacrônicas profundas” (KOSELLECK, 1971, p. 4).
No terceiro texto, que trata da relação entre ficção e história, podemos encontrar problemas semelhantes. Koselleck comenta as histórias de dois sonhos de pessoas diferentes durante a Alemanha da década de 30, tentando mostrar sua produtividade para o conhecimento histórico, já que eles antecipam a catástrofe política. Extraindo reflexões a partir dos sonhos, Koselleck diz, na tradução: “Desse modo, [as ficções] ganham para o psicanalista, mas, sob dadas circunstâncias, um outro valor de diagnóstico, mesmo se considerado na estrutura de sua narrativa” (KOSELLECK, 2021, p. 116). No original, lê-se: “Com isso, elas ganham para o psicanalista, mas sob certas circunstâncias também para o historiador, outro valor posicional do que se apenas sua estrutura narrativa for observada” (KOSELLECK, 2007, p. 44). A referência ao historiador foi eliminada, o que tornou a frase confusa. Na sequência, Koselleck aborda duas maneiras de como relatos fictícios podem ser profícuos ao historiador: eles podem funcionar como fontes a respeito de fatos históricos ou podem ser eles eventos históricos em si mesmos. No primeiro caso, a divisão entre ficção e história é mantida, ainda que utilizada metodologicamente pelo historiador para conhecimento da realidade. Na tradução, lê-se: “À medida que realizamos esse passo metodológico do historiador avançamos no território que separava a res fictae e a res factae. A partir de uma, pode-se chegar à outra” (KOSELLECK, 2021, p. 117). Aqui, não está claro o sentido de avançar no território que separava ambos domínios. Parece que estamos progressivamente deixando para trás essa divisão. Mas o sentido do original é outro: “Na medida em que damos esses passos metodológicos do historiador, permanecemos no círculo da divisão entre res fictae e res factae. Uma deve abrir a outra” (KOSELLECK, 2007, p. 45). Quer dizer: o historiador, usando a ficção para entender a história, ainda está dentro da divisão entre ambos os domínios. Daí que, no parágrafo seguinte, Koselleck comece mencionando outra possibilidade, em que os sonhos são, entretanto, “mais do que apenas um testemunho que pode ser transformado em fonte” (KOSELLECK, 2021, p. 118). Agora, começaremos a desfazer a separação entre ficção e realidade. A tese de Koselleck é: o fato de que aspectos do nazismo tenham aparecido na forma de sonho define algo de sua própria natureza histórica. A ficção é o modo de realização da história.
Comentando ainda esse segundo aspecto da ficção, Koselleck diz: “Mas o resultado é de significado mais geral: a história nunca surge (aufgehen) na linguagem” (KOSELLECK, 2021, p. 120). Aufgehen significa, de fato, “surgir”. Mas Koselleck usa aufgehen in [Geschichte geht nie in Sprache auf], que significa “concentrar-se, absorver-se em”. Então, o correto é: “A história nunca é absorvida pela linguagem” (KOSELLECK, 2007, p. 47). Que a história não surja na linguagem é uma trivialidade; mas o ponto é outro: há sempre mais na história do que a linguagem consegue captar. E isso faz mais sentido no contexto, dado que se está argumentando a respeito do significado histórico de acontecimentos pré-linguísticos (os sonhos). A sequência também está traduzida incorretamente: “Encontramo-nos ante uma tensão insuperável, que contrasta com o fato de que nenhuma ação verbal pode a todo momento requerer a realidade histórica. E isso vale tanto para a execução da história como também para a lembrança, para a história passada verbalmente fixada” (KOSELLECK, 2021, p. 120). O correto seria:
Encontramo-nos numa tensão insuperável, que impede [verhindert] que qualquer ato linguístico consiga alcançar [einholen] a respectiva realidade histórica. E isto vale tanto para a execução da história como para a recordação, que fixa na escrita [schriftlich] a história passada. (KOSELLECK, 2007, p. 47)
Em tais casos, o sentido do trecho e as intenções de Koselleck foram desfiguradas por erros de tradução. É a maneira mesma em que história e linguagem se relacionam, para Koselleck, que foi perdida.
Isso se repetirá. Outra demarcação sobre a tarefa do historiador defendida por Koselleck será perdida na tradução. No último texto, o autor mostra que reflexões metodológicas e linguísticas sobre o conceito de história podem realizar tarefas de crítica das ideologias. Desse modo, discussões semânticas e metodológicas não são neutras, mas podem contribuir para debates de cunho ético e político. Assim, é possível ver como a frase seguinte, redigida em chave de conclusão, está traduzida incorretamente: “esboçamos o espaço ideológico que desde então se estabeleceu e limitou nossa tarefa” (KOSELLECK, 2021, p. 149). Ora, essa frase fica estranha, pois Koselleck mostrava como o historiador pode realizar críticas às ideologias, em vez de ter suas tarefas limitadas por elas. De fato, no original, lemos: “circunscrevemos o espaço ideológico que foi liberado desde então e cuja limitação é nossa tarefa [und den einzugrenzen unsere Aufgabe ist]” (KOSELLECK, 1971, p. 13). Isso permite perceber que a tradução de uma frase na sequência também é incoerente com o sentido do texto: “A ‘história’ não admite nenhuma reflexão crítico-verbal ou metodológica” (KOSELLECK, 2021, p. 149). Ora, para Koselleck, a história não admite reflexões críticas ou metodológicas? Certamente, sim, e ele tem feito isso o texto inteiro até aqui. O correto seria: “Agora, é certo [Nun, lässt sich freilich] que a ‘história’ não pode ser ultrapassada [überholen] por nenhuma reflexão crítico-linguística ou metódica” (KOSELLECK, 1971, p. 13). O sentido da frase é diferente do traduzido. A história obviamente pode ser objeto de crítica e de reflexão metódica, mas não pode ser ultrapassada por estas. Assim como mais acima, a tradução falhou em traduzir corretamente as conclusões de Koselleck sobre a relação entre e história e linguagem a partir da ficção, aqui se perde as reflexões sobre os limites entre a reflexão histórica e as tarefas críticas e anti-ideológicas. Em ambos os casos, perdemos as demarcações que Koselleck quer fazer sobre os limites em torno da história e da historiografia.
Entre as diversas coisas que aprendemos com Koselleck, está o fato de que não existem detalhes desimportantes, que toda reflexão linguística tem significado. Na tradução, porém, há nuances e detalhes linguísticos que se perderam. Por exemplo, numa frase do primeiro texto, que ficou confusa, em que se diz que o direito se alimenta “do uso de sua repetição” (KOSELLECK, 2021, p. 66). De maneira mais simples e clara, o original diz que ele se alimenta “de sua aplicação repetível [wiederholbaren Anwendung]” (KOSELLECK, 2006b, p. 8). O importante é que o texto não diferencia wiederholbar (repetível) e widerholt (repetido), bem como Wiederholbarkeit (repetibilidade) e Wiederholung (repetição). O mesmo ocorre com traduzir erwartbarç por “esperado” (KOSELLECK, 2021, p. 66) e não “esperável”. Com isso, um detalhe importante do texto é perdido: Koselleck não está simplesmente falando de estruturas que se repetem, que foram repetidas, mas estruturas que são repetíveis, isto é, que denotam estruturas abertas a repetições possíveis. Assim, enquanto a tradução diz que “O trabalho”, ao qual o jovem Marx teria “reduzido” toda a história, “depende de repetições aprendidas e desenvolvidas” (KOSELLECK, 2021, p. 65), o que dá o sentido de um evento já consumado no passado, o original diz que o trabalho, ao qual Marx faz “remontar [zurückführt]” toda a história, “repousa [beruht auf] em repetibilidades aprendíveis [erlernbare] e em formação [auszubildenden]” (KOSELLECK, 2006b, p. 7). O termo é “repetibilidade”, não “repetição”; e ela é “aprendível” e “em formação”, não “aprendida e formada”. Voltando à frase sobre o direito: na continuação, a tradução escreve: a “justiça” e a “segurança jurídica” só podem se realizar “se o direito vigente é cumprido” (KOSELLECK, 2021, p. 66). Mas o original diz: “se o direito uma vez posto em vigência [in Geltung gebrachte] for aplicado de novo” (KOSELLECK, 2006b, p. 8).
Veja-se que, se o texto é voltado a uma discussão histórico-linguística sobre estruturas de repetição, a atenção a esses detalhes, bem como sua tradução correta, são indispensáveis para transmitir o que Koselleck quer dizer. Veja-se, no conjunto, além das supressões, a quantidade de informações transmitidas incorretamente, das quais apresentamos uma mera seleção. Tudo somado, várias demarcações que Koselleck quer fazer sobre o papel do historiador, bem como do conceito de História em geral — seus limites, o que se pode ou não fazer, como funcionam as estruturas de repetição, como funciona sua relação com a ficção, com as ideologias etc., todos tópicos centrais do livro —, perderam seu sentido preciso. No fundo, é a maneira mesma como Koselleck entende o que é história e pesquisa histórica que se perde. É o fundamento do livro todo.
Caberia ainda apontar uma opção de tradução questionável, que atravessa o livro todo: a tradução de sprachlich por “verbal” em vez de “linguístico”. A nosso ver, é uma opção sem precedentes e sem boas razões. Por um lado, a língua alemã já dispõe de termos para verbal e verbalmente, nenhuma delas sendo sprachlich: wörtlich, mündlich ou mesmo o termo latino verbal. Mas seria possível mostrar porque seria melhor “linguístico” apelando ao fato de que a própria tradução precisa reconhecer a importância da noção de Sprache (tanto “língua”, como “linguagem”, a depender do contexto) nos textos de Koselleck. No livro, Sprache é traduzido quase sempre por “linguagem”, de modo que há frases incoerentes em que, numa breve distância, Koselleck fala em Sprache e sprachlich, mas a tradução coloca “linguagem” e “verbalmente”. Vale notar que há estruturas linguísticas que não precisam ser estruturadas verbalmente para serem linguísticas. O universo de uma é menor que o da outra.
Como dissemos no início, as traduções de Koselleck no Brasil têm assumido, em geral, uma qualidade muito boa. Com o estabelecimento dos livros principais do autor entre nós, organizações como esta proposta em Uma latente filosofia do tempo podem abrir um novo campo para seleções de outros ensaios de Koselleck, contribuindo para a divulgação de toda a riqueza do seu trabalho no Brasil. No entanto, a tradução em questão não está em acordo com o nível linguístico de Koselleck, com as outras traduções do autor no Brasil e com o necessário para o padrão de pesquisa acadêmica. Se renunciamos, aqui, à discussão conceitual a respeito do livro, é porque caberia esperar uma revisão que fizesse jus às intenções de originais de Koselleck, que então poderiam contribuir de fato para a formação do público.
Nota
2 Não forneceremos as páginas para o segundo texto, por não dispormos de sua versão avulsa. Temos somente sua forma em livro, mas que, por ter sido usado em formato digital, não é possível citar as páginas.
Referências
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Tradução Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Fiktion und geschichtliche Wirklichkeit. Zeitschrift für Ideengeschichte, München, v. 1, n. 3, 2007, p. 39-54, 2007. ISSN: 1863-8937. DOI: doi: doi. org/10.17104/1863-8937-2007-3-39.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006a.
KOSELLECK, Reinhart. Histórias de conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social. Tradução Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.
KOSELLECK, Reinhart. Uma latente filosofia do tempo. Tradução Luiz Costa Lima. São Paulo: Unesp, 2021.
KOSELLECK, Reinhart. Vom Sinn und Unsinn der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2010.
KOSELLECK, Reinhart. Wiederholungsstrukturen in Sprache und Geschichte. Saeculum, Köln, v. 1, n. 57, p. 1-15, 2006b. ISSN: 0080-5319. DOI: https://doi.org/10.7788/saeculum.2006.57.1.1.
KOSELLECK, Reinhart. Wozu noch Historie? Historische Zeitschrift, Leipzig, v. 212, n. 1, p. 1-18, 1971. ISSN: 2196-680. DOI: https://doi.org/10.1524/hzhz.1971.212.jg.1.
Resenhista
Felipe Ribeiro – Doutorando no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2020/02171-0. E-mail: feliperibeiro1848@gmail.com
Referências desta Resenha
KOSELLECK, Reinhart. Uma latente filosofia do tempo. Trad. Luiz Costa Lima. São Paulo: Unesp, 2021. Resenha de: RIBEIRO, Felipe. Avanços e recuos na tradução de Koselleck no Brasil. Revista de História. São Paulo, n. 181, 2022. Acessar publicação original [DR]