Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científica – GHINS (P)

GHINS, Michel. Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas. Curitiba: Editora UFPR, 2013. Resenha de: CANI, Renato C. Principia, Florianópolis, v. 22, n2, p.359–370, 2018.

Há razões para acreditar que as teorias científicas mais bem-sucedidas representam a realidade? Aliás, em que consiste uma teoria científica? Os resultados e os relatos fornecidos pelas ciências acerca do mundo legitimam a crença na existência de leis da natureza? Caso admitamos o discurso sobre as leis, que tipo de ontologia devemos adotar a fim de explicar a necessidade envolvida nas leis científicas? Essas perguntas resumem algumas das principais questões discutidas em filosofia e metafísica da ciência ao longo das últimas décadas. Elas resumem, também, os temas tratados pelo Professor Michel Ghins (2013) no livro Uma introdução à metafísica da natureza. A obra possui um duplo objetivo — e, podemos acrescentar, um duplo mérito.

Em primeiro lugar, trata-se de uma excelente introdução a alguns dos problemas mais relevantes e instigantes da filosofia da ciência contemporânea. O livro é dividido em quatro capítulos, que abordam as seguintes questões, respectivamente: (i) a estrutura das teorias científicas e o problema da representação; (ii) o debate entre realismo científico e antirrealismo; (iii) o estatuto ontológico e epistemológico das leis científicas; e, finalmente, (iv) a metafísica das propriedades categóricas e disposicionais.

Cada tema é tratado com notável consistência e em diálogo estreito com a literatura filosófica mais recente na área. As posições dos demais autores são reconstruídas e criticadas por Ghins com grande precisão. De fato, o segundo objetivo (e mérito) da obra é apresentar ao leitor uma versão direta e clara das principais posições defendidas pelo autor ao longo de sua carreira. Desse modo, o livro representa a culminância (mas não o ponto final) das investigações que tem animado o Professor Ghins ao longo de diversos artigos e conferências. Com efeito, o formato e a organização do livro—em quatro capítulos—resulta do curso ministrado pelo autor durante a Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência, evento organizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná, em 2011. Como dissemos, as teses avançadas pelo autor são construídas e expostas a partir do diálogo com interlocutores e colaboradores frequentes, dentre os quais destacamos: Bas ⃝c van Fraassen, David M. Armstrong, Alexander Bird, Brian Ellis, Anjan Chakravartty e Stathis Psillos.

No primeiro capítulo, Ghins caracteriza as teorias científicas como conjuntos de modelos (estruturas) e proposições (as leis científicas). Os modelos são capazes de representar estruturas de determinadas propriedades abstraídas dos fenômenos (como a pressão e o volume de um gás, por exemplo) e, assim, tornar verdadeiras as proposições (leis) que atribuem tais propriedades a certas entidades. A partir dessa interpretação das teorias, Ghins dedica o segundo capítulo à defesa de uma forma de realismo moderado e seletivo, sustentando que é possível formular bons argumentos não apenas em favor da adequação empírica das teorias científicas, mas também da sua verdade parcial e aproximada. No que tange às entidades inobserváveis postuladas pelas teorias, o autor considera que a convergência de diferentes métodos de mensuração permite legitimar o compromisso com a existência de, ao menos, algumas dessas entidades, tais como átomos e campos eletromagnéticos. O terceiro capítulo, por sua vez, centra-se na problemática das leis científicas. Após reconstruir e criticar as concepções de lei fornecidas por regularistas (Mill, Ramsey e Lewis) e necessitaristas categorialistas (Dretske, Tooley e Armstrong), Ghins propõe a identificação das leis a proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas. Desse modo, a teoria desenvolvida nos dois primeiros capítulos serve para explicar a verdade das leis científicas. No entanto, sabemos que, a fim de atribuir o estatuto de lei a uma proposição universal verdadeira, é preciso argumentar em favor do seu caráter necessário e explicar de que modo ela acarreta a verdade de contrafactuais. Afinal, são esses os fatores que distinguem as leis das generalizações acidentais. Para completar essa tarefa, Ghins elabora, no quarto capítulo, uma metafísica das propriedades categóricas e disposicionais. Nesse sentido, o autor sustenta uma ontologia mista — i.e. tanto certas propriedades categóricas quanto disposicionais são admitidas como irredutíveis — em que o caráter nomológico das leis é fundamentado na existência de disposições intrínsecas às entidades físicas. Por fim, a conclusão do livro é dedicada à formulação de argumentos favoráveis à existência das disposições, especialmente endereçados a filósofos menos propensos às discussões puramente metafísicas e mais sensíveis à abordagem empirista.

A seguir, detalharemos alguns aspectos da argumentação de Ghins, destacando questões problemáticas que, na nossa visão, merecem uma discussão mais detalhada. Faremos isso em duas partes. Na primeira, trataremos da representação e do realismo; na segunda, das leis e das propriedades.

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Logo no início da obra, Ghins declara que o objetivo da ciência é predizer e explicar os fenômenos. A fim de tornar isso possível, precisamos adotar uma atitude objetivante (cf. van Fraassen 2002) diante dos fenômenos. Trata-se de encará-los não como totalidades singulares, mas como sistemas, isto é, “como conjuntos de elementos organizados por meio de relações” (Ghins 2013, p.15). Nisso consiste a abstração primária, por meio da qual o cientista se coloca à distância das entidades e processos que busca representar. Em seguida, é preciso selecionar as propriedades — quantidades ou parâmetros — relevantes para um estudo científico particular. Se vamos estudar um gás de um determinado ponto de vista—para seguirmos o exemplo mais mencionado pelo autor—interessam-nos o seu volume e temperatura, mas não o seu cheiro. Esse passo é denominado abstração secundária (Ghins 2013, p.17).

Uma vez identificados os parâmetros de interesse, o cientista procede com o processo de modelização. Em geral, um modelo é definido pelo autor como “uma estrutura que torna verdadeira ou ‘satisfaz’ certas proposições” (Ghins 2013, p.19). A primeira dessas estruturas a ser construída é a estrutura perceptiva, que consiste na organização por meio de relações envolvendo as propriedades perceptivas em questão (o volume e o grau de calor de um gás ou os períodos orbitais de planetas).

Quando introduzimos instrumentos de mensuração a fim de tornar mais precisas e exatas essas propriedades, somos capazes de elaborar um modelo de dados. Contudo, se quisermos explicar o comportamento de um gás, por exemplo, não basta elaborar um catálogo com os valores mensurados de sua pressão, temperatura e volume. É preciso embutir esse modelo de dados numa estrutura teórica mais ampla. De acordo com Ghins, essa estrutura nos permite, mediante o cálculo, construir uma subestrutura empírica (e teórica, porque também faz parte de uma estrutura teórica) a fim de representar o modelo de dados. No caso dos gases, essa subestrutura é dada pelos valores de pressão, volume e temperatura obtidos mediante a relação pV = kT (em que k é a constante de Boltzmann). O processo de modelização se encerra quando incluímos essa estrutura teórica numa classe de modelos, isto é, numa teoria (no caso dos gases, trata-se da mecânica estatística de partículas).

Podemos resumir esse processo, portanto, da seguinte maneira (Ghins 2013, p.27s): a partir dos (i) fenômenos, nós abstraímos as (ii) estruturas perceptivas, que são representadas pelos resultados das mensurações, isto é, os (iii) modelos de dados.

Estes, por sua vez, são representados pelas (iv) subestruturas empíricas (e teóricas).

Assim, as relações de representação se dão entre (ii), (iii) e (iv), o que equivale a dizer que, quando a teoria é empiricamente adequada, tais estruturas são isomórficas (ou homomórficas).1 Por sua vez, a relação entre a subestrutura empírica, o (v) modelo teórico e a (vi) classe de modelos é meramente a inclusão conjuntista.

A ênfase de Ghins no papel dos modelos e na noção de adequação empírica entre estruturas não significa que o autor subscreva a abordagem semântica das teorias. De acordo com essa abordagem, as teorias são caracterizadas como famílias de modelos, em oposição à abordagem sintática, que define as teorias como conjuntos de proposições.

Ghins busca uma terceira via, defendendo o que chama de abordagem sintética, segundo a qual “uma teoria científica é um conjunto de modelos e de proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos” (Ghins 2013, p.26).

Ao formular a concepção sintética das teorias, o objetivo de Ghins é estabelecer sua posição no espectro do realismo científico. Para o autor, o problema do realismo compreende dois níveis. No primeiro, há a questão “sobre a relação entre as estruturas por nós construídas e os fenômenos observáveis” (Ghins 2013, p.33). Trata-se do problema que van Fraassen (2008, p.240) denominou objeção da perda de realidade.

Visto que os modelos e estruturas representacionais por nós desenvolvidos são entidades abstratas, que garantias possuímos de que tais estruturas guardam algum tipo de relação com os fenômenos observáveis? A resposta de Ghins a essa objeção se dá em duas etapas: primeiramente, o autor assume a concepção da verdade como correspondência. Essa concepção “implica a existência de realidades que tornam as proposições verdadeiras” (Ghins 2013, p.39), mas não exige que se formule uma teoria para explicar a natureza de tal correspondência. Assim, é possível encarar as proposições não como representações, mas como a atribuição de propriedades a determinadas entidades.

Logo, a próxima etapa da resposta à objeção é enfatizar que os modelos não representam diretamente os fenômenos, mas somente as estruturas perceptivas (Ghins 2013, p.21; p.39). Portanto, a atividade representacional repousa sobre proposições verdadeiras, o que garante que “nosso contato com a realidade jamais foi nem será suspenso” (Ghins 2013, p.40). Não temos certeza de que essa resposta é plenamente satisfatória, uma vez que ela parece muito mais assumir o realismo científico de teorias — isto é, a tese de que há razões para considerar as teorias científicas como verdadeiras — do que efetivamente demonstrá-lo. Como veremos adiante, consideramos mais satisfatórios os argumentos do autor em favor do realismo de entidades — a afirmação da existência das entidades postuladas pelas melhores teorias.

Passemos ao segundo nível da problemática do realismo científico, que corresponde ao problema de determinar se nossas superestruturas de propriedades inobserváveis guardam relação com a realidade externa. Em outros termos, a adequação empírica de uma teoria — o isomorfismo entre valores mensurados e calculados de certas grandezas — implica que os seus modelos teóricos sejam verdadeiros sobre os aspectos inobserváveis do mundo? Se levarmos em conta o argumento antirrealista da subdeterminação das teorias pelos dados empíricos, responderemos negativamente a essa pergunta. Trata-se da afirmação de que, em princípio, é sempre possível construir diferentes teorias empiricamente adequadas, mas que sejam incompatíveis entre si na parte inobservável. Assim, não haveria razões empíricas para preferir determinada teoria em detrimento das outras.

Ghins admite a força desse argumento, reconhecendo que a “adequação empírica não constitui, por si mesma, uma garantia de verdade de uma teoria” (Ghins 2013, p.42). Porém, a fim de sustentar a sua posição realista, o autor apresenta críticas à subdeterminação, quais sejam: (i) os céticos antirrealistas, muitas vezes, apenas acenam para a possibilidade de teorias alternativas incompatíveis, mas não mostram casos concretos em que isso efetivamente ocorre (Ghins 2013, p.41); (ii) se levarmos em conta condições suplementares, é possível quebrar a subdeterminação. Isto é, Ghins afirma que, diante de teorias incompatíveis, devemos preferir aquela que possua leis que descrevam mecanismos causais, sendo que “essas leis possuem termos que assumem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos” (Ghins 2013, p.43). As leis da teoria cinética de Maxwell-Boltzmann são exemplos dessa definição.

O recurso à teoria correspondentista da verdade e ao poder explicativo das leis causais fundamentam as respostas de Ghins às objeções antirrealistas. No entanto, que argumento positivo em favor do realismo científico é oferecido pelo autor? Para Ghins, o único argumento razoável em favor da existência dos inobserváveis é a convergência de mensurações em analogia com a experiência sensível ordinária. Assim como legitimamos nossa crença nas entidades observáveis quando podemos acessálas intersubjetivamente por diferentes ângulos e sentidos, “nossa crença na existência dos elétrons é justificada pela possibilidade de medir suas diversas propriedades [. . . ] por meio de métodos independentes que proporcionam resultados precisos e convergentes” (Ghins 2013, p.45).

Ademais, Ghins sustenta a superioridade de sua defesa do realismo em relação ao argumento do milagre (no-miracle argument), o mais usual em favor do realismo.

O argumento do milagre afirma que, em virtude do sucesso empírico das nossas melhores teorias, seria uma coincidência altamente improvável que elas fossem falsas e que as entidades centrais postuladas por elas não existissem. A vantagem de Ghins é que seu argumento evoca a concordância entre mensurações, noção mais exigente que a de sucesso empírico (Ghins 2013, p. 47). Além disso, comumente é dito que o argumento do milagre repousa sobre o esquema conceitual da inferência para a melhor explicação (IBE).2 Em algumas passagens, Ghins enfatiza que seus argumentos não devem ser lidos como inferências desse tipo; afinal, “não há razão a priori para que a natureza se submeta aos requisitos explicativos que impusemos às nossas teorias” (Ghins 2013, p.48). De nossa parte, não vemos razões para deixar de considerar a IBE como esquema válido de raciocínio. Poderíamos considerar que a existência dos inobserváveis postulados pelas melhores teorias é a melhor explicação para a convergência entre mensurações independentes, sem que, com isso, voltemos ao argumento do milagre.3 Afinal, mesmo que o tipo de inferência seja o mesmo (a IBE) em ambos os argumentos, as premissas das quais eles partem são claramente distintas.

Em suma, Ghins considera sua versão de realismo como falibilista, seletivo e parcimonioso, uma vez que o requisito de convergência é exigente o bastante para admitir a crença apenas em um número escasso de entidades inobserváveis (Ghins 2013, p.50). Passemos para o tema das leis e das propriedades, apresentados nos capítulos finais da obra.

***

A questão que norteia os últimos capítulos do livro de Ghins é a seguinte: leis científicas são também leis da natureza? Na concepção do autor, leis científicas dizem respeito às generalizações que desempenham função explicativa relevante no contexto de teorias científicas bem-sucedidas (cf. Ghins 2013, pp.51–2). Para que as leis científicas sejam identificadas a leis da natureza, é preciso articular uma metafísica da natureza que fundamente a sua verdade. O que Ghins busca demonstrar é que essa tarefa só pode ser cumprida por uma metafísica baseada em poderes causais ou disposições.

A fim de defender esse ponto de vista, o autor critica as principais concepções rivais acerca das leis, quais sejam, o regularismo e o necessitarismo categorialista.

Em linhas gerais, o regularismo é a teoria que encara as leis como regularidades, compreendidas como conjunções constantes, no sentido de Hume. Trata-se, portanto, de “proposições universais que são verdadeiras, sem dúvida, mas de modo meramente contingente” (Ghins 2013, p.53). Segundo Ghins, a principal dificuldade dessa concepção é o chamado problema da identificação, desafio que se impõe a qualquer concepção de lei que se pretenda defensável. Esse problema é originalmente formulado por van Fraassen (1989, p.39), mas Ghins o divide em dois aspectos. O primeiro deles é o problema epistêmico da identificação: devemos ser capazes de distinguir as generalizações nomológicas das acidentais. Nesse sentido, o regularista deve oferecer um critério para distinguir enunciados do tipo “Todas as esferas de urânio possuem diâmetro inferior a um quilômetro” (que parece remeter às propriedades radioativas do elemento urânio) e “Todas as esferas de ouro possuem diâmetro inferior a um quilômetro” (verdadeira de modo acidental). Ghins concede que, à primeira vista, a teoria do melhor sistema, de David Lewis (1973), fornece uma resposta a esse problema.

Nessa teoria, as leis são os teoremas ou axiomas presentes nos sistemas dedutivos que melhor equilibram os desiderata de simplicidade e força (cf. Ghins 2013, p.54).

Entretanto, a teoria de Lewis não tem a mesma sorte no que se refere ao segundo aspecto do problema da identificação, a saber: o problema ontológico da identificação.

Trata-se de identificar o “tipo de fato acerca do mundo” que torna as leis verdadeiras (Ghins 2013, p.55). Nesse sentido, Ghins argumenta que Lewis “permanece silencioso” acerca dessa questão, uma vez que ele não indica quais fatores ontológicos seriam os responsáveis por tornar certos sistemas axiomáticos mais satisfatórios que outros. Ora, essa crítica não é forte o bastante, pois alguém poderia objetar que o regularismo não precisa fornecer uma solução ao problema ontológico, uma vez que as uniformidades não carecem de explicação adicional, isto é, elas são encaradas como fatos brutos. O problema ontológico da identificação só faz sentido para as concepções realistas das leis, já que estas caracterizam as leis a partir de categorias metafísicas que se projetam para além das regularidades.

A fim de rejeitar o regularismo, portanto, é necessário mostrar que essa teoria não soluciona adequadamente o problema epistêmico da identificação, visto que é nesse âmbito que Lewis formula os seus principais argumentos. Para cumprir esse objetivo, Ghins (2013, pp.56–8) apresenta, de modo esquemático, algumas críticas a Lewis, dentre as quais destacamos: (i) a teoria do melhor sistema tem alcance restrito, pois só funciona para teoria axiomatizáveis; (ii) os critérios de equilíbrio, simplicidade e força, conforme tratados por Lewis, são meramente epistêmicos e subjetivos, sendo insuficientes para caracterizar as leis; (iii) se as leis são regularidades contingentes, a única maneira de explicar como elas sustentam os enunciados contrafactuais é apelando para a controversa noção de “similaridade entre mundos possíveis”.

De acordo com Ghins, esses problemas mostram que o regularismo é, na verdade, incapaz de distinguir as leis de generalizações acidentais. O autor passa a investigar, portanto, concepções de lei que se fundamentem em discussões de caráter metafísico.

É o caso do necessitarismo categorialista de Dretske, Tooley e Armstrong. Nessa visão, uma lei “é uma proposição singular que exprime um fato não empírico, a saber, uma relação de necessidade entre propriedades universais” (Ghins 2013, p.60). Segundo Armstrong (1983), que articulou a versão mais sofisticada de necessitarismo, as leis possuem a forma N(F,G), em que F e G são universais de primeira-ordem e N é, ao mesmo tempo, um universal de segunda-ordem e uma relação de necessitação entre universais. A solução necessitarista ao problema ontológico da identificação depende, portanto, da metafísica de universais elaborada por Armstrong.

Todavia, Ghins aponta que a maior dificuldade dessa teoria é o problema da inferência, que consiste na tarefa de que explicar de que modo é possível que “uma proposição que descreve uma relação da segunda ordem N entre universais [. . . ] implique logicamente uma proposição que descreve uma relação de necessitação entre as instâncias desses universais” (Ghins 2013, p.61). Em outros termos, Armstrong deve justificar a inferência N(F,G)→(x)N(F x Gx) A solução de Armstrong consiste em identificar a relação N, que se dá entre types, e a relação de causalidade entre tokens. Assim, da mesma forma que os universais F e G são obtidos por abstração a partir dos estados de coisas particulares {Fa, F b, . . .} e {Ga,Gb, . . .}, também a lei N(F,G) é obtida a partir da observação das sequências causais particulares {(Fa,Ga), (F b,Gb), . . .}. Para Armstrong, esse argumento mostra que a solução do problema da inferência é automática. A objeção de Ghins a esse raciocínio consiste em afirmar que, mesmo que se admita a hipótese de que a relação de causalidade entre tokens seja observável (tese negada por autores empiristas), a relação de causalidade entre types não o é (Ghins 2013, p.62). Logo, a resposta de Armstrong se encontra comprometida, uma vez que não há razões para supor que N seja idêntica à relação de causalidade entre particulares.4 Após discutir os problemas do regularismo e do necessitarismo categorialista, Ghins apresenta sua própria concepção das leis, derivada do essencialismo disposicional.

Vimos anteriormente que o autor caracteriza as leis como proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas. Conforme a teoria desenvolvida nos primeiros capítulos, o que torna as leis verdadeiras são as regularidades da natureza, descritas pelas estruturas perceptivas e pelos modelos de dados.

Mas como explicar a existência de regularidades na natureza? Em que aspecto da realidade está fundamentado o caráter nômico das leis? É aí que entram as disposições: “o que funda a nomicidade de uma lei ou, em outras palavras, o que torna verdadeira a proposição ‘p é uma lei’ é a existência de poderes causais intrínsecos, reais e irredutíveis” (Ghins 2013, p.69).

Desse modo, a visão de Ghins também pode ser classificada como necessitarista.

A diferença é que Armstrong aceita apenas as propriedades categóricas (isto é, não modais) como irredutíveis. Ghins e os outros disposicionalistas — como Ellis e Bird — admitem a existência de propriedades disposicionais irredutíveis. Afinal, o que são disposições? Ghins oferece a seguinte definição: “Uma entidade x possui a disposição D de manifestar a propriedade M em resposta ao estímulo T nas circunstâncias A, se e somente se, na eventualidade da entidade x ser submetida a T no ambiente A, x necessariamente manifestar M” (Ghins 2013, p.69). O autor explicita essa definição por meio da menção à análise condicional proposta por Bird (2007, pp.36–7): □Dx↔((T x&Ax)□→ Mx)] Exemplos comuns de disposições são a disposição da água para dissolver o sal nas condições apropriadas ou a capacidade de certa anfetamina para, quando ingerida, melhorar o desempenho de um atleta (cf. Ghins 2013, p.70). No entanto, o estatuto ontológico preciso das propriedades disposicionais é assunto de um intenso debate em filosofia da ciência. Vejamos de que modo Ghins se situa nesse espectro.

Em primeiro lugar, o autor considera que as disposições são propriedades de primeira ordem, isto é, são instanciadas pelas próprias entidades físicas. Elas não são, portanto, “propriedades de propriedades”. Em segundo lugar, o autor adota uma ontologia mista, diferentemente do monismo disposicional defendido por Bird. Segundo Ghins, todas as propriedades capazes de figurar nos modelos científicos são propriedades categóricas. Essa visão abrange não apenas as propriedades espaçotemporais (distância, estrutura molecular, etc.), mas todas “as propriedades matemáticas e quantificáveis referidas pelos símbolos matemáticos que figuram nas leis científicas” (Ghins 2013, p.85).

Por fim, Ghins sustenta que essa ontologia de propriedades permite responder aos problemas da identificação e da inferência. No que tange ao segundo, o autor afirma: “Se p é uma lei, então p é uma proposição universal e as situações e os processos descritos por p ocorrem efetivamente no mundo” (Ghins 2013, p.65). A teoria da representação de Ghins, desenvolvida na parte inicial do livro, tem por objetivo explicitar essa solução. Além disso, limitar as leis ao contexto de teorias científicas aproximadamente verdadeiras e explicativas visa a responder ao problema epistêmico da identificação (Ghins 2013, pp.63–4). Quanto ao problema ontológico da identificação, Ghins afirma que “as regularidades descritas nas várias disciplinas encontram seus fundamentos nas naturezas relacionais, reais, de certas entidades e em suas disposições a submeter-se a processos específicos” (Ghins 2013, p.85). A metafísica das disposições implica, pois, que as leis científicas mereçam o título de leis da natureza, uma vez que sua verdade é fundamentada por uma metafísica da natureza.

Compartilhamos das motivações que levam o professor Ghins a defender uma metafísica disposicionalista e, em grande medida, simpatizamos com a solução do autor à problemática das leis. No entanto, temos algumas dúvidas com relação à sua metafísica da natureza, em especial à preferência pela ontologia mista. Essas incertezas se tornam explícitas quando analisamos a seguinte passagem: Uma entidade possui, por exemplo, uma carga de certo valor independentemente da força que pode exercer ou sofrer. Em outras palavras, a carga não é uma propriedade disposicional. [. . . ] Ao lado de suas propriedades categóricas, o elétron possui igualmente propriedades disposicionais, tal como a capacidade de interagir com partículas e campos em conformidade a certas equações matemáticas como, por exemplo, a lei de Maxwell (Ghins 2013, p.84).

Acreditamos que esse modo de ver as coisas obscurece as relações entre as leis e as disposições, dando margem a críticas categorialistas. De fato, estamos de acordo com o fato das disposições serem irredutíveis às suas manifestações. Entretanto, consideramos que é em virtude de possuir determinada carga que o elétron pode participar das interações de que participa. Aliás, o próprio autor admite que não há como determinar a carga do elétron a não ser com base nas suas interações, o que envolve elementos disposicionais. Logo, não vemos motivos para afirmar que haja duas propriedades distintas em jogo, como o faz Ghins. Dito de outro modo, Ghins afirma que o elétron possui carga (propriedade categórica) e, “ao lado” de tal propriedade, disposições essenciais. Ora, se quisermos argumentar que as leis da natureza são metafisicamente necessárias em razão de serem fundamentadas em disposições essenciais, então o vínculo entre as propriedades categóricas e disposicionais precisa ser esclarecido.

Sustentamos que a desvinculação entre as propriedades categóricas e disposicionais torna estas últimas misteriosas, comprometendo o caráter metafisicamente necessário das leis e a irredutibilidade das disposições. Essa consequência favorece o monismo categórico, segundo o qual as disposições dos objetos podem ser reduzidas às suas propriedades categóricas e às leis da natureza (impostas externamente aos objetos. Nesse sentido, Cid (2016, p.242s) aponta que a teoria de Ghins e o categorialismo fornecem explicações similares às leis e aos contrafactuais. Em última análise, o que Cid e outros críticos apontam é o fato de que, se nosso objetivo é explicar a necessidade das leis da natureza, é mais simples fazer isso admitindo apenas um tipo de propriedade irredutível (as categóricas) em vez de dois (como na ontologia mista).

De fato, a ontologia mista parece levar a problemas adicionais. Suponhamos que, conforme afirma Ghins, a carga do elétron (Q) seja uma propriedade categórica e seus poderes causais para participar de determinadas interações (D) consistam numa disposição.

Ghins afirma que D é essencial ao elétron. Naturalmente, é razoável supor que, se a carga Q do elétron fosse diferente, a disposição D também o seria. Então, qual a relação entre essas propriedades? Q também é essencial ao elétron? D é superveniente a Q? Gostaríamos de indicar um caminho para uma solução disposicionalista (e monista) a este problema, inspirada na visão de Heil (2003) acerca das propriedades.

Em primeiro lugar, devemos considerar que, de acordo com o disposicionalismo, as leis são metafisicamente necessárias precisamente porque os objetos, em virtude de possuírem as propriedades que possuem, não poderiam se comportar de forma diferente.

Portanto, D e Q correspondem, na verdade, a uma única propriedade, apenas descrita de duas maneiras diferentes ou, mais precisamente, em níveis de abstração distintos. Conforme o contexto de investigação no qual estivermos inseridos, será mais relevante enfatizar as possíveis interações do elétron ou simplesmente o valor de sua carga. Entretanto, não há razão para considerar que se trata de duas propriedades de naturezas distintas. Com efeito, essa sugestão de resposta — que certamente precisa ser detalhada — está alinhada com os argumentos de Ghins, não exigindo maiores alterações em sua ontologia. Além disso, essa caracterização evita os embaraços envolvidos na noção de superveniência, bem como explicita a origem da necessidade metafísica das leis.

*** Nesta resenha, procuramos abordar os principais temas tratados pelo Professor Ghins ao longo de sua obra, atestando que ela funciona como uma excelente introdução tanto ao realismo científico quanto ao realismo nomológico. Ao mesmo tempo, discutimos alguns dos argumentos formulados pelo autor, com vistas a fazer avançar, ainda que modestamente, o debate para o qual Ghins tanto contribuiu.

Referências

Armstrong, D. M. 1983. What Is a Law of Nature? Cambridge: Cambridge University Press.

Bird, A. 2007. Nature’s Metaphysics: Laws and properties. Oxford: Clarendon Press.

Cani, R. C. 2017a. O Dilema Central é suficiente para refutar a visão disposicionalista das leis da natureza? In: J. D. Carvalho et al. (eds.) Filosofia da natureza, da ciência, da tecnologia e da técnica, pp.356–69. São Paulo: ANPOF. (Coleção XVII Encontro ANPOF).

———. 2017b. Realismo nomológico e os problemas da identificação e da inferência. Curitiba, PR. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná.

Cid, R. R. L. 2016. Uma crítica à metafísica conectivista de Ghins. Filosofia Unisinos 17(2): 233–43.

Ghins, M. 2017. Defending Scientific Realism Without Relying on Inference to the Best Explanation.

Axiomathes 27(6): 635–651.

Heil, J. 2003. From an Ontological Point of View. Oxford: Oxford University Press.

Lewis, D. 1973. Counterfactuals. Cambridge: Harvard University Press.

van Fraassen, B. 2002. The Empirical Stance. New Haven: Yale University Press.

———. 2008. Scientific Representation: Paradoxes of perspective. Oxford: Oxford University Press.

Notes

1 A distinção entre isomorfismo e homomorfismo corresponde, respectivamente, à diferença entre uma função bijetiva — em que há correspondência um-para-um entre todos os elementos do conjunto de partida e do conjunto de chegada da função — e uma função injetiva— em que a única exigência é que, para um valor no conjunto de chegada, não haja dois valores distintos no conjunto de partida. O homomorfismo, portanto, é uma noção menos exigente do que o isomorfismo.

2 A sigla se refere à formulação em inglês — inference to the best explanation (IBE) — frequentemente utilizada pela literatura.

3Num artigo recente, Ghins (2017) adverte que sua posição, nesse caso, é encarar a convergência entre mensurações como um fato que não demanda explicações ulteriores. Em linhas gerais, isso significa afirmar que o simples fato de a convergência ser verificada é o suficiente para argumentar em favor da visão realista.

4 Conforme salienta Cid (2016), é importante ressaltar que a crítica de Ghins ao necessitarismo categorialista se aplica somente à versão aristotélica dos universais, tal como defendida por Armstrong. Em linhas gerais, Cid tenta mostrar que é possível argumentar, de modo independente, que uma versão de necessitarismo baseada na concepção platonista dos universais (à la Tooley) escapa às objeções apresentadas. No entanto, parece-nos que a objeção mais forte ao necessitarismo categorialista não é o problema da inferência, mas o quidditismo. Em outros textos (Cani 2017a, pp.361–7; 2017b, pp.83–7), argumentamos que esse problema perpassa tanto a teoria de Armstrong quanto a de Tooley. Trata-se da objeção de que, se somente as propriedades categóricas são irredutíveis, então pode haver mundos possíveis em que as mesmas propriedades categóricas possuam perfis causais absolutamente distintos.

Nesse cenário, seria impossível fixar a identidade das propriedades (e, por conseguinte, das leis). É uma pena que Ghins não tenha discutido diretamente o quidditismo — ainda que o autor aborde a questão lateralmente — pois isso daria mais força a seu argumento.

Agradecimentos Ao Professor Michel Ghins, agradeço pelo incentivo, por comentários a uma versão anterior deste texto, bem como pelos diálogos acolhedores e instigantes acerca das temáticas aqui tratadas. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Renato C. Cani – Universidade Federal de Santa Catarina, BRASIL renatocani@gmail.com

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