Paolo Prodi é atualmente catedrático de História Moderna da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha, Itália. Sua trajetória dentro do panorama da historiografia ultrapassa as fronteiras italianas e é impossível pensar na história das instituições e do direito sem recorrer a seus trabalhos fundacionais, sobretudo II sacramento deipotere. II juramento político nella storia costitu^ionak deliOcádente (1992) e //soiranopontefice (1998).- A obra que nos propomos resenhar aqui é uma continuação desses estudos anteriores, publicada na Itália, pela editora Mulino, em 2000, e traduzida para português, em 2002. Prodi passeia o conceito de justiça pela linha do tempo, revelando uma análise dialética entre as normas jurídicas e as normas morais, mas profundamente vinculada à história da cultura do Ocidente.
Sua pretensão, anunciada logo nas primeiras linhas da introdução, “é fazer uma reflexão histórica sobre o modo como a justiça foi vivida e pensada no nosso mundo ocidental, sobre uma tradição que faz parte do nosso patrimônio civilizacional e que agora estará, talvez, a extinguir-se” (p.13). Mais do que tecer uma teoria da justiça, o que Prodi se propõe é a colocar problemas que nos permitam compreender como chegamos até aqui, ou seja, à crise atual do direito.
Recuando à Grécia antiga, lembra que a consciência do cidadão coincidia substancialmente com a ordem objetiva do cosmos, uma vez que a polis era, ao mesmo tempo, Estado e Igreja. Já no mundo hebraico, a justiça será subtraída ao poder civil e colocada na esfera do sagrado. Em Israel, o pecado, como culpa aos olhos de Deus, desvincula-se do delito, este apenas compreendido como violação das leis dos homens.
A partir da Idade Média, Prodi reconstrói o embate entre o foro interno e o externo, por um lado, e o foro penitencial e o foro judicial, por outro. Uma configuração criada pelo direito canônico medieval, que “produziu uma confusão-fusão entre penitência, excomunhão e direito penitencial eclesiástico, com conseqüências até hoje na vida da Igreja e da sociedade civil” (p.108). O objetivo, por parte da Igreja, era fornecer à sociedade um sistema integrado de justiça. O fracasso da proposta afastou o perigo do monopólio eclesiástico nesta área, mas inaugurou “o caminho para o pluralismo dos ordenamentos jurídicos concorrentes, para o “utrumque ms” e para a distinção entre o foro eclesiástico e o civil, mas também para uma nova relação entre a lei humana (civil e eclesiástica) e a consciência”(p.109). Assim, o direito canônico encarna cada vez mais o lado humano e perde sua essência divina, passando a disputar os mesmos espaços dos outros direitos seculares.
Portanto, é fundamental recuar à Idade Média, para ver como se chega à idéia do dualismo entre o poder temporal e o espiritual e como esta percepção é matricial para se alcançar posteriormente “um equilíbrio dinâmico entre a união sagrada do juramento e a secularização do pacto político” (p.14). Neste caso valeria mesmo a pena recuar aos primórdios do Cristianismo para compreender como Igreja e Estado se separam, formando aquilo que Rosenzweig chamou de “grande duplo sistema” (p.109). Um dualismo que supõe a estreita convivência entre as duas esferas e não uma separação propriamente dita. Hoje, em plena vigência do poder secular, esquecemos amiúde que ele próprio encerra essa dualidade e que o Estado era tão cristão quanto a Igreja.
Além da dualidade entre o plano celestial e o terreno, surge um outro, o da Igreja, que não pode pretender arrogar-se a justiça divina, mas que tampouco está ao nível da justiça dos homens. Na realidade, ela vai estabelecer as pontes entre a justiça dos homens e a de Deus, desenhando o próprio espaço junsdicional, e emergindo da simbiose excessiva entre o poder tem poral e o espiritual dos primórdios do feudalismo. Aqui nasce a Respublica Christiana.
Este é o momento institucional mais emblemático da civilização ocidental, chegando-se mesmo a pensar em uma “revolução papal”. A grande questão é que apesar de que a Igreja se converta em uma instituição autônoma, jamais conseguiu o monopólio sagrado do poder. A competição e a cooperação se estabelecem com as cidades, as monarquias, as universidades, numa dialética que é o alimento da política da Respublica (p.64). Aqui está a chave para compreender toda a conflitividade junsdicional que arranca na Idade Média e atravessará todo o Antigo Regime. E esta concorrência que livrará o Ocidente da teocracia ou do cesaropapismo e que lhe permitirá viver no futuro as experiências liberais e democráticas.
Os embates em torno à jurisdição, ou ao foro são o resultado dessa maneira tão judaico-cnstã de construir a justiça. A assembléia dos fiéis (ecclesiae) converte-se num foro alternativo ao poder político, posto que ela tem autoridade para mediar o perdão da divindade. Essa assembléia institucionalizada na Igreja é herdeira desse foro – agora “foro eclesiástico” – que compete, complementa e legitima a justiça humana. Uma estrutura jurídica análoga à secular, sem a qual esta não se sustenta. Todas as instâncias do poder reconhecem- se como agentes ativos de uma “respublica sub Deo” e no exercício de suas funções são orientadas por uma ética inspirada na autoridade divina, o que explica que sempre se busque a convergência entre o foro externo e o interno.
Prodi mostra, ao longo de nove capítulos, que a construção do direito no mundo ocidental está assentada na dialética entre ética e direito, consciência e lei, pecado e delito, dando-lhe um perfil dinâmico e sempre atual. Entretanto, quando o direito positivo tende a normatizar e regular toda a vida social, e se ilude de que é capaz de resolver todos os problemas e conflitos, tornando-se absoluto, instala-se a crise. Cada vez mais, surgem problemas em tomo às regras positivas – que nunca são suficientes -, exige-se a especialização da autoridade. Um espesso tecido legal é invocado para cobrir todos os aspectos da vida cotidiana, e as leis transformam-se em camisa de força, engessando a dinâmica da sociedade. Prodi se interroga como será possível garantir a sobrevivência da civilização jurídica ocidental sem contar com as distintas normas morais que, desvinculadas do direito positivo, garantiram ao ocidente, no passado, o oxigênio necessário à sua revitalização. O pluralismo dos ordenamentos medievais deu lugar a um confronto entre um direito inexoravelmente amarrado ao poder e uma norma moral que agora já não consegue encontrar um espaço que vá além da consciência.
Esta História da Justiça de Paolo Prodi é uma obra indispensável, um instrumento fundamental para compreender como chegamos a esta encruzilhada: uma justiça que se deixou engolir pelo reducionismo da norma e do nominalismo. Uma justiça inoperante, cujo artífice está tão inebriado com a própria criatura, que não consegue mais percorrer o caminho filosófico que lhe dava sentido: do ser aos conceitos, dos conceitos aos termos. A justiça está agora amarrada unicamente aos termos e os “operadores de Direito” já não conseguem estabelecer a conexão entre este nominalismo, a realidade e o objetivo que a gerou. Por outro lado, perdida a dimensão plural das normas e das sedes de juízo, compromete-se o futuro liberal e democrático da sociedade.
Maria Filomena Coelho Nascimento – Pesquisadora associada ao Programade Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília.
PRODI, Paolo. Uma História da Justiça: do pluralismo dos tribunais ao moderno dualismo entre a consciência e o direito. Lisboa: Editorial Estampa, 2002, 494p. Resenha de: Textos de História, Brasília, v.11, n.1/2, p.247-250, 2003. Acessar publicação original. [IF]
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