Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial | Demétrio Magnoli
Certamente, não é fácil comentar um assunto tão polêmico quanto apaixonante como esse. As temáticas raciais já há bastante tempo ganharam a mídia e têm influenciado o senso comum de pessoas dos mais diferentes estratos sociais. Grupos de pesquisa e opinião têm propagado o resultado de suas crenças por todos os meios de comunicação, além do papel (um tanto preocupante) desempenhado pelo Estado na promoção desses ideais. Talvez o maior problema dentro dessa perspectiva seja a tentativa de se recriar uma nova História, um tanto tendenciosa, em que os que pensam diferente assumem o papel de hereges frente aos clérigos que criaram conceitos um tanto dogmáticos. É por esse viés que vejo a obra de Demétrio Magnoli, Uma gota de sangue.
A principal intenção do autor ao longo de seu trabalho é mostrar como foram construídas as principais ideias acerca do conceito de “raça” ao longo dos últimos séculos. Partindo sobretudo do homem europeu, tais conceitos foram usados nos séculos XIX e XX para explicar a suposta superioridade do europeu/eurodescendente frente a outros grupos humanos com pele e traços físicos diferentes ao redor do mundo, como o negro africano, o amarelo asiático e o indígena americano. A maneira como esses conceitos nasceram e se desenvolveram ao longo do tempo é, em minha opinião, denominada corretamente pelo autor como “mito”. Esses mitos tiveram papel fundamental no passado para justificar a dominação de um povo sobre outro.
Após apresentar-nos um resumo bem elaborado acerca da criação desses mitos, Magnoli mostra-nos como cada homem ou povo de seu tempo tentou aplicar o mito da raça dentro de sua sociedade – não deixando de levar em consideração as peculiaridades geográficas, políticas, culturais e históricas. Assim, cada caso, como o dos EUA das leis Jim Crow ou Hitler e a “Solução Final” são analisados individualmente. Depois de retratar os acontecimentos ocorridos em cada exemplo sem perder a linha temporal dos fatos, o autor chega até décadas recentes mostrando como diversas lideranças civis e instituições lutaram para derrubar políticas opressoras baseadas nos mitos de cor/raça. Porém, – e aí se encontra o problema – ao invés de romper definitivamente com políticas baseadas em tais mitos, em muitos casos o que ocorreu foi uma “reconstrução” do mito da raça.
Com o fim dos horrores causados pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), caem por terra as bases científicas do mito da raça (apesar de EUA e África do Sul resistirem por mais tempo). A partir de então, a maior parte desses países que sofreram com pro-blemas raciais criaram políticas de compensação pela situação à qual sua “raça” esteve submetida anteriormente. E no Brasil?
Magnoli faz uma análise historiográfica muito interessante sobre os autores brasileiros que trataram do tema. Um dos grandes ícones no assunto foi o sociólogo Gilberto Freyre. Freyre teve contato com intelectuais reconhecidos a nível mundial, como o americano Franz Boas. Conheceu bem os EUA e o problema que este possuía nas questões raciais. Entendia a maneira pela qual uma nação formada por uma maioria branca, de religião protestante e de tradição segregacionista tratava escravos e seus descendentes daquela maneira, criando leis raciais e empurrando a população negra à margem da sociedade. Diferentemente disso, no Brasil, como demonstrou em sua consagrada obra Casa-Grande e Senzala, tivemos uma configuração bastante diferente dos americanos do norte. Para Freyre, ao invés de uma segregação racial, a maior marca do povo brasileiro foi a mestiçagem entre as matrizes branca, negra e indígena. Tomo emprestada a citação que Magnoli utiliza de Freyre: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena e do negro” (p. 150).
Recordo-me que em uma de minhas aulas de História do Brasil, minha professora disse (um tanto contradita): “Casa-Grande e Senzala é um livro muito bom, mas…”. Esse “mas”, representa toda uma corrente formada por intelectuais e grupos racialistas de discriminação reversa que procuram colocar Freyre e os pensadores anti-racistas numa prisão ideológica por suas teses não se alinharem aos modelos raciais e de discriminação reversa importados basicamente dos EUA, como tanto insiste Magnoli. Fatos históricos que reforcem a ideia de mestiçagem ou assimilação também são deixados de lado ou no mínimo reinterpretados (cf. pp. 322-327). A pesquisa de Peter Fry citada no final do livro também se encaixa nesse parâmetro, já que contraria o que muitas entidades racialistas pregam (p. 382). Mostrou que uma grande parcela de negros admitiu nunca terem se sentido vítimas de preconceito racial (64%). Recordo ter visto há alguns anos atrás uma pesquisa similar realizada em São Paulo, que chegava a uma conclusão semelhante (embora com números na casa dos 70%). Quando a entrevistada responsável por comentar a pesquisa deu sua opinião, mais uma vez se fez presente a conjunção adversativa “mas”.
Como historiador, aprendi que é impossível corrigir o que alguns chamam por aí de “erro histórico”. Aos judeus do Holocausto não será dada a vida. De muitos dos indígenas das Américas só nos resta um lampejo de sua cultura. Grupos humanos de vários lugares do planeta simplesmente desapareceram às mãos de outros sem que nos sobrasse sequer algum registro. Duvido muito que qualquer um de nós, que tivesse nascido no espaço/tempo passados e se enquadrasse entre os que hoje consideramos como “opressores” fizesse diferente. Enxergar o passado com o olhar do século XXI e tratá-lo como se fôssemos “juízes da História” pode resultar em grandes equívocos. O que certamente podemos fazer é encarar os fatos do passado como exemplos do que fazer e do que não fazer. Pena que para alguns, por motivos políticos e ideológicos muito fortes isso não seja possível.
Freyre foi excomungado. Seu sacrilégio foi pensar que a sociedade brasileira aprendeu a lidar melhor com a mestiçagem do que os EUA. Isso vai de encontro à ideia formulada algumas décadas atrás e alimentada por alguns pensadores atuais, de que existe um “racismo à brasileira”; uma forma muito pior do que o racismo americano com seus linchamentos, ataques de turbas e leis segregacionistas. O “racismo à brasileira” seria caracterizado por “dar as caras” apenas em situações-limites, e é tão enraizado na sociedade brasileira que os próprios negros o incorporam sem dificuldade. (cf. p. 159) Prega ainda que, nossa sociedade, de forma subterrânea, promove um “genocídio silencioso” desde os tempos da escravidão (cf. p. 350).
As ONGs racialistas e suas lideranças passaram a enxergar o Brasil única e exclusivamente pelo prisma da cor/raça, deixando de lado qualquer outro viés como a política, a cultura e a religião. Magnoli aponta que a maneira como essas lideranças vêm construindo seu leque ideológico no Brasil remete aos mesmos artifícios utilizados na construção do mito da raça de uma Alemanha nazista ou da elite wasp estadunidense, como a supervalorização da cor/raça, forte papel das instituições acadêmicas, políticas governamentais e até a ciência. Além disso, colocam de lado qualquer indício que recorde a mestiçagem no Brasil, separando-o em duas nações: uma branca (ainda exploradora) e uma negra (ainda explorada).
Em momento algum Magnoli nega que tenha havido ou há racismo no Brasil. Também não nega que a pobreza de muitos negros está associada ao fato histórico escravidão (cf. p. 363). No entanto, defende que políticas baseadas na cor/raça geram mais controvérsias do que benefícios, colocando brancos e negros em posições apartadas dentro da sociedade e os estigmatizando. Por diversas vezes tive de trabalhar com essa temática em minhas aulas, abarcando com alunos de diferentes escolas, classes sociais e origens diferentes. Antes de inicia-los nas discussões, procuro saber de antemão suas opiniões sobre as políticas de preferência baseadas na cor. Uma parte significativa entre todos os que já tiveram contato com o tema por algum veículo de comunicação acredita que tais políticas possuem apenas efeito paliativo em nossa sociedade, destacando que os problemas brasileiros não têm que ver com cor da pele ou origem, antes, são econômicos. Similar a opinião destes jovens e adultos, imagino que se trocarmos o foco, poderemos enxergar melhor nossos maiores problemas.
Por fim, acredito que essa seja uma obra que traz uma mensagem importante àqueles que têm interesse em se aprofundar no tema, ampliando o debate dentro da nossa sociedade. Não me parece que em algum momento o autor vise esgotar o tema – seria desonesto achar que certos assuntos deveriam ser ainda mais aprofundados. Entretanto, não acredito que Uma Gota de Sangue esteja isento de algum erro ou que não seja passivo de revisão em algum ponto (talvez as intenções da Fundação Ford seja um exemplo), mas acho que o objetivo final foi encontrado pelo autor, ou seja, se há de se valorizar alguma “raça”, que seja a raça humana.
Resenhista
Fernando Mattiolli Vieira – Doutorando em História/UNESP-Assis. E-mail: khirbet.qumran@gmail.com
Referências desta resenha
MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009. Resenha de: VIEIRA, Fernando Mattiolli. História e raça: a raça na História. Temporalidades. Belo Horizonte, v.2, n.2, p.108-109, ago./dez. 2010. Acessar publicação original [DR]