Não é algo absurdo afirmar que o que mais ocupa o espaço nas reflexões ligadas ao pensamento político, seja no campo da ciência política ou especificamente no da história das ideias, é o Estado. Conceito extremamente polêmico, para dizer o mínimo, e que sofreu ao longo dos séculos as mais distintas caracterizações. Com as vertentes teóricas até então conhecidas, pode-se afirmar inúmeras coisas. Para alguns, o Estado se apresenta como uma grande superestrutura imanente à realidade social, e que a todos e a tudo arrasta, conforme a vontade ideológica que lhe é própria, como num turbilhão inescapável rumo a algo que independe das vontades dos indivíduos. Já para outros, não seria mais que um mero conceito abstrato, útil unicamente para nomear o que se enxerga como a mera união dos atores sociais, esses sim, por sua própria vontade agindo para a concretização da realidade efetiva. Há ainda os que pensam o Estado como nada além de um emaranhado burocrático, historicamente constituído para ser o meio de dominação de determinada classe sobre os oprimidos. Enfim, não cabe aqui narrar o grande número existente de ideias sobre o conceito. Não há espaço para tal.
E é em meio a esse cenário intelectual contemporâneo, exacerbado de tantas conceituações difusamente tendenciosas, que os pesquisadores podem visualizar uma teoria diferenciada e que leva em consideração a contextualização das ideias para se elaborar uma significação do conceito de Estado, especificamente tratando-se do Estado Moderno. De fato, o historiador britânico Quentin Skinner, já reconhecido internacionalmente nas últimas décadas como um dos maiores intelectuais em atividade, afirma ser inconcebível a compreensão efetiva das ideias, desde que elas sejam desarraigadas de um pano de fundo histórico concreto. Ao abordar o estudo do estado – e aqui se deve desde logo esclarecer que o termo se encontra com inicial minúscula, pois assim o é em língua inglesa, onde não se distingue estado (entidade soberana) de estado (condição, situação) com a utilização da inicial maiúscula no primeiro caso – ele busca realizar uma genealogia do mesmo. E é essa a empreita que ele efetuou na sua breve obra Uma genealogia do Estado Moderno, fruto de uma palestra proferida no ano de 2011 em Portugal.
Ao lado de figuras de relevo, como John G. A. Pocock e Richard Tuck, defensores cada qual com a sua perspectiva do denominado Linguistic Contextualism, Quentin Skinner, Regius Professor of History de Cambridge e, desde 2009, Barber Beaumont Professor of the Humanities da Universidade de Londres, já esteve a frente como autor e coautor de mais de 20 livros, traduzidos até o momento para 24 línguas. Foi ainda premiado dezenas de vezes, como em 2006, com o Isaiah Berlin Prize e com o Bielefelder Wissenschaftpreis, no ano de 2008. O que Skinner busca com o manejo das suas teorias é apreender os autores, em seus contextos históricos específicos, no momento no qual eles agiram, e isso mediante as palavras que proferiram. O que precisa ser entendido aqui, é que a ideia central dessa maneira de abordagem teórica é focalizar tais autores do pensamento político do passado, os quais utilizaram o instrumental linguístico que a eles estava disponível. Esses pensadores já há alguns séculos defuntos, concretamente estiveram, frisa Skinner, envoltos no embate cotidiano da época em que viveram, agindo da maneira mais frutífera possível para firmar suas posições em seu meio, isto é, através das palavras que puderam proferir.
Sendo assim, o historiador se volta para o contexto intelectual de língua inglesa para mapear a sua genealogia do que concebe ser o Estado. Mantendo-se mais uma vez fiel à sua posição teórica, Skinner traz à tona para o debate contemporâneo tanto autores de peso, como Thomas Hobbes, como também escritores que podem ser tidos como “menores”, isso para dizer que não se encontram referências a determinados pensadores nas concepções tradicionais das abordagens interpretativas. De fato, não há nas leituras filosóficas tradicionais ou nos grandes manuais de teoria política a exposição das assertivas de autores como o huguenote radical Theodore Bèze ou um italiano de nome Traiano Boccalini. Isso é só para lembrar que Skinner propõe uma análise dos embates teóricos dos pensadores do passado de uma maneira muito fina, dando a palavra a autores quase sempre deixados de fora das análises políticas, mas que, como é possível enxergar nas suas pesquisas, foram de importância ímpar para o desenvolvimento das ideias. Afinal, todos esses autores, e não apenas um ou outro, utilizaram-se dos vocabulários mutáveis para formular seus conceitos, pois suas ideias não pairavam soltas no ar, mas fizeram parte de uma comunidade linguística delimitada.
Em Uma genealogia do Estado Moderno, o autor, já no momento da sua conclusão, sinaliza para duas questões de relevada importância. A primeira é que o Estado continua ainda a ser o ator principal, o mais importante no cenário político, mesmo em que pese a conjuntura internacional atual de globalização e domínio dos sistemas financeiros. Com isso, Skinner bate de frente contra as afirmações atuais de que o Estado já não tem mais o seu papel institucional. O outro ponto é a necessidade de que a teoria ficcional acerca do Estado deve ser reapreciada e, mais ainda, reafirmada. Trata-se de um legado intelectual de grande monta, e que, segundo ele expõe, nunca deveria ter sido deixada em segundo plano, pois é um instrumento que dota os indivíduos de um aporte para refletir acerca da legitimidade das ações governamentais, principalmente nas situações emergenciais. Mas o que vem a ser essa teoria? E aqui é que se chega ao eixo das considerações de Skinner na obra referida.
Para Quentin Skinner, os debates sobre o Estado, poderes de Estado, dentre outros termos ligados ao conceito, se dá no final do século XVI e nos anos iniciais do século XVII. Falava-se no período, de reinos, nação e, mais comumente, corpo político. A terminologia ganha espaço e por um processo simples, pois já se encontrava referida nas obras, como em Maquiavel, por exemplo, autor de maior renome no gênero da literatura política espelho de príncipes, e que sempre se preocupou com as condições para que o soberano pudesse mantenere lo STATO. Eis o conceito já enfatizado. Até mesmo anteriormente tratados franceses traziam o termo, como em Pierre La Place e Jacques Hurault, por exemplo. As traduções foram realizadas para a língua inglesa e a terminologia estado assume o papel preponderante. Até mesmo os jurisconsultos à época utilizaram-se abundantemente dela. O interessante é o fato que Skinner narra sobre a transformação do conteúdo conceitual, pois já não se trata de mera sobrevivência do príncipe, mas sim do zelo com o corpo político como um todo.
No decorrer do processo de desenvolvimento da Modernidade, no caso inglês, o historiador de Cambridge focaliza três distintas teorias, as quais ele denomina respectivamente de teoria absolutista, teoria populista e teoria ficcional. Todas elas elucubraram, da maneira que julgaram ser a correta, sobre o objeto de estudo aqui apontado, o Estado. No primeiro caso, da absolutista, vários são os autores, dentre os quais os de destaque são Jean Bodin (traduzido para o inglês em 1606) e Sir Robert Filmer. O que tomou forma aqui é a posteriormente denominada teoria divina dos reis. Tem-se, assim, a predominância das ideias da divina origem dos governantes, ungidos de Deus na Terra, e cabeças dos corpos políticos, os quais não seriam nada sem aquelas primeiras, pois não passariam de mera multidão sem discernimento. Foi uma teoria amplamente defendida e que teve a sua importância histórica, mas que nem por isso ficou imune às severas críticas.
Com efeito, os teóricos da vertente populista repudiaram a ideia de que a societas ou universitas não passavam de um dorso acéfalo, sedento por um soberano que o guiasse. Para esses pensadores, que Skinner denomina de “anatomistas políticos”, a ordem política a ser instituída não deveria permitir os poderes discricionários, pois se assim o fizesse, a liberdade sob qualquer forma de governo seria inviável. A grande maioria deles afirmou que para se viver num estado livre, era preciso assegurar que se vivesse sob uma república, e que tal fosse governada por si própria. Aqui se destacam autores como Gougasses, Contarini e Heywood, e as ideias que lhes influenciaram foram recordadas, sobretudo, nas obras dos historiadores romanos, e traduções foram realizadas para o inglês, como Tito Lívio, por exemplo. Na segunda metade do século XVII é que surgiu uma renovada frente de ataque à teoria absolutista, e com muito mais vigor. Os autores influentes aqui foram Theodore Bèze e Henry Parker. Com as suas ideias, afirmaram em linhas gerais, que o populus universus é e sempre permanecerá superior em autoridade em relação a qualquer governante. Parker, por exemplo, visou desqualificar a ideia do rei enquanto cabeça do estado. O rei, como ele explicou, era um servo do Estado. Aquele foi o momento também no qual os debates sobre Parlamento, representantes supremos do povo para tais autores, assumiram posição primordial.
Pois bem, em meio a todas essas movimentações conceituais no plano das ideias, adquiriu forma algo novo, que fez surgir uma até então inédita e inovadora concepção teorizadora do conceito de Estado. Na primavera de 1640, surge um tratado intitulado The Elements of Law e, em 1651, publica-se outra obra, muito mais densa e combativa, cujo próprio título sugere algo grandioso: Leviathan. O seu autor, como é desde já muito fácil perceber, foi Thomas Hobbes. O filósofo político inglês confrontou, com as suas sarcásticas palavras, tanto os autores de vertente parlamentarista como também os próprios absolutistas. Ele não aceitou a afirmação de que os indivíduos da multidão não tivessem um papel de relevo no desempenho das funções de governo. Assim como também, ao mesmo tempo, julgou absurdo o fato de que o corpo político fosse investido de mais poder que os reis soberanos. A saída encontrada por ele foi estabelecer os soberanos como sendo sim, reis absolutistas, mas que se encontravam na condição de representantes autorizados, e com obrigações bem estabelecidas para cumprirem, que seriam a paz e a segurança daqueles mesmos indivíduos que teriam para tais soberanos delegados o poder político.
A chave para se entender a questão hobbesiana, segundo assinala Skinner, é compreender o que ele proferiu à época sobre a questão do contrato fundado pelos indivíduos, já que, dessa maneira, não se tem mais uma mera multidão aglomerada de pessoas, e sim um grupo unificado, que vive em submissão à lei. Para Hobbes, o que surge mediante esse pacto social, pode ser visto na figura de duas pessoas geradas, e que até então, não possuíam uma existência prévia. Com o contrato realizado, surge a pessoa artificial, para quem se concedeu o poder e que passa a agir em nome de todos, ou seja, toma corpo o soberano. Ao mesmo tempo, a outra pessoa é enxergada como aquilo que os indivíduos se tornaram enquanto condicionados ao julgo do pacto, adquirindo uma voz e vontade únicas, e que Hobbes designou como Common-wealth, isto é, como ESTADO. E com essa caracterização enfática, Hobbes fará história nos séculos seguintes. A ideia que se tem do Estado a partir de então, é que ele é algo distinto dos soberanos e também diferente da mera unidade da multidão. Dos primeiros porque eles vêm e vão, e da última, pois ela se altera constantemente, em processos de avanços e retrocessos. O Estado, porém, é o que efetivamente permanece.
Claro que essas ações por meio de palavras realizadas por Thomas Hobbes seriam ainda deixadas de lado, debatidas, esquecidas, retomadas, e Quentin Skinner demonstra isso muito bem ao longo dos parágrafos finais do seu texto, e sinaliza ainda o fato de que foi essa ideia de Estado formulada por Hobbes que se entranhou nos debates políticos ao longo dos séculos, tanto em solo inglês, como ainda em terras continentais. Obviamente, Hobbes, com toda a sua perspicácia, não afirmou que o Estado seria algo imortal, muito pelo contrário. Mas o objetivo é que se faça com que ele se prolongue o mais longinquamente possível, já que seria ele o maior responsável pela preservação da vida e da própria saúde da pessoa do Estado, isto é, o garantidor dos interesses públicos e do bem comum dos indivíduos. Segundo revela Skinner, esse necessário debate sobre a importância concreta do Estado ficou de certa maneira em segundo plano, já que os ataques disferidos contra ele nos séculos XIX e XX, mesmo demonstrando fragilidade e soando bem reducionistas, não foram pouco influentes. E a situação parece estar pior nesse início de século XXI, contexto onde parece prevalecer a ideia de que o Estado como se conhece deve ser banido definitivamente. Talvez a crise atual dos sistemas financeiros nos últimos anos ao redor do mundo, retome o debate de modo elegante. É algo a ser pensado, afinal, a quem, senão aos Estados, os bancos e os grandes conglomerados correram em busca de alguma ajuda? O Estado está aí, a instituição permanece e deve ser analisada. Tudo isso para dizer que vale muito a pena ler o ensaio do professor Quentin Skinner, e juntamente com ele, que vem ao longo das últimas décadas apresentando uma rica clareza de ideias, pensar sobre o passado e os seus legados institucionais, para tentar entender um pouco até mesmo o presente em que se vive.
Resenhista
Thiago Rodrigo Nappi – Mestre em História pela UEM, Maringá/PR, Brasil. E-mail: Thiago-nappi@uol.com.br
Referências desta Resenha
SKINNER, Quentin. Uma genealogia do Estado Moderno. Lisboa: ICS, 2011. Resenha de: NAPPI, Thiago Rodrigo. Repensando as ideias políticas: Quentin Skinner e o estudo sobre o Estado. Diálogos. Maringá, v. 17, n.1, p. 337-343, jan./abr.2013. Acessar publicação original [DR]
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