Uma feminista na contramão do colonialismo – GOMES (RH-USP)

GOMES, Raquel. Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Shreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880-1902. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: DULLEY, Iracema. Imbricações entre o ordinário e o excêntrico: literatura, feminismo e política na África do Sul nascente. Revista de História (São Paulo) n.172 São Paulo Jan./June 2015.

Como destaca Robert Slenes em sua apresentação, o trabalho de Raquel Gomes, Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880-1902, insere-se no “novo surto brasileiro de monografias” voltadas para contextos africanos. O livro deriva da dissertação de mestrado da autora, realizada na área de História Social na Unicamp. A obra dialoga com a tradição de estudos desse departamento ao articular a trajetória e os escritos políticos e literários de um sujeito específico, Olive Schreiner, ao contexto histórico e social mais amplo em que estavam inseridos: a formação da nação sul-africana. A autora anuncia a intenção de dar conta de questões como as seguintes: “Nesta nação em formação, quais papéis seriam desempenhados por britânicos, bôeres e nativos? Como o discurso [de Schreiner] refletia e dialogava com o avanço da legislação segregacionista?” (p. 15). Estas são, sem dúvida, questões que apontam, como nota Omar Ribeiro Thomaz na orelha do livro, não só para a gênese da nação sul-africana, como para problemas contemporâneos candentes neste país.

Como no estudo de Ginzburg sobre Menocchio em O queijo e os vermes(2006), trata-se de atentar para a biografia e os escritos de um sujeito que não é exatamente ordinário, mas que, em virtude de sua excentricidade, revela não só o que seria comum em seu contexto como um possível caminho de diálogo e disputa com ele. Olive Schreiner certamente não seria considerada uma mulher sul-africana exemplar em sua época. No entanto, sua distância em relação ao que seria ordinário ajuda a iluminá-lo. A partir da circulação de Schreiner pela Inglaterra e África do Sul, é possível vislumbrar não só questões sociais e políticas mais amplas – como a criação da União Sul-Africana, o lugar da mulher na sociedade e a questão do nativo, contexto muito bem reconstruído por Gomes –, como acompanhar a minúcia das relações cotidianas com base em suas obras e cartas.

Anglófona no contexto de formação da nação sul-africana, Schreiner opõe-se à política imperialista britânica para fazer uma defesa do modo de vida bôer e da integração anglo-bôer. Feminista em um ambiente bastante conservador quanto aos costumes, chocou inclusive a sociedade inglesa com sua denúncia da condição “parasitária” da mulher no casamento. Para Schreiner, homens e mulheres deveriam ser parceiros no casamento, em igualdade de condições e com divisão do trabalho; ademais, a mulher não deveria depender financeiramente do homem, mas casar por amor. Pertencente a uma camada privilegiada da sociedade sul-africana por ser branca e anglófona – a despeito das dificuldades financeiras que a teriam levado a trabalhar como governanta para famílias bôeres na juventude –, acabará por questionar as políticas adotadas em relação à “questão do nativo” após sua desilusão com a política de Cecil Rhodes: cerceamento do acesso das populações africanas a terra, restrição de seu já pouco expressivo direito ao voto, educação racialmente segregada com destino das melhores escolas aos brancos. Schreiner, simultaneamente colonizadora e colonizada, aparece na narrativa de Gomes como o lugar da disjunção possível. Seu viés particular coloca a possibilidade do deslocamento. A caracterização de seu lugar social por Gomes mostra como, se o centro do império é o lugar a partir do qual se pode olhar para todas as suas bordas, as discordâncias introduzidas a partir das margens podem ser tão revolucionárias quanto passíveis de receber o rótulo de selvagens.

É principalmente por meio de sua produção literária que Schreiner se posiciona em relação ao cenário político e social da África do Sul de seu tempo. The story of an African farm, de 1883, retrata a vida em uma fazenda bôer e teve grande repercussão quando de sua publicação, acabando por tornar-se parte do cânone da literatura vitoriana de língua inglesa. Segundo Gomes, Schreiner deu a um lugar que fazia parte do imaginário britânico as cores necessárias para que pessoas que o viam como distante imaginassem seu cotidiano. Em meio às paisagens sul-africanas, a oposição entre as aspirações de vida dos personagens delineia a crítica social de Schreiner, direcionada principalmente às relações de gênero: Lyndall, anglófona, morre tragicamente após dar à luz o filho do amante com o qual se recusa a casar-se; por outro lado, Tant’Sannie, fazendeira bôer retratada como religiosa, conservadora e ignorante, casa-se com sucessivos maridos por interesse financeiro. A atitude predatória inglesa na África do Sul é também evocada por meio da figura de Bonaparte Blenkins. Com sua publicação, a autora foi recebida nos círculos intelectuais da Inglaterra, embora não sem atritos. Conforme se depreende da narrativa de Gomes, as resistências se deveram a suas ideias feministas e à origem africana.

Gomes é especialmente bem-sucedida ao mostrar como os personagens de African farm remetem aos estereótipos que se projetavam sobre as diversas posições sociais nos contextos em que Schreiner se inseriu. Tant’Sannie aponta para a visão dos bôeres como ignorantes, arcaicos e ociosos por parte dos ingleses; a isso se soma a figura do inglês ganancioso, visto pelos bôeres como não comprometido com o território que pretendia unicamente explorar. Se no romance os kaffirs bantos são retratados como ladrões preguiçosos, seriam em obras posteriores caracterizados como “conscientes de si e reflexivos”, capazes de organização política e reflexão intelectual – Schreiner chega a comparar sua capacidade de expressão àquela permitida pelo Taal, língua vista como indissociável do ser bôer –, os hotentotes seriam “versáteis, vivos e emotivos”, além de dóceis. A discussão de Gomes sobre os personagens e seus nomes reflete tanto sobre seu papel na narrativa quanto sobre o que ela revela a respeito da estrutura social em questão e do posicionamento político de Schreiner. No que diz respeito aos estereótipos, tampouco escapa a sua percepção a forma como as mulheres da elite intelectual inglesa viam Schreiner: uma sul-africana boêmia que falava com as mãos.

Em um momento em que se coloca o “debate acerca de quem é – e quem tem o direito de ser – sul-africano” (p. 51), as apreciações dos vários lugares sociais acerca de si e dos outros exercem papel fundamental. A relação entre as diversas categorias de designação, relacionadas por sua vez de forma complexa às posições sociais passíveis de serem ocupadas pelos sujeitos assim nomeados, determinará o que significa ser sul-africano. E o posicionamento político de Schreiner a esse respeito – que vai da ênfase na união entre ingleses e sul-africanos com o silenciamento sobre a questão nativa a uma mudança de atitude conforme o final do século XIX assiste à articulação da legislação segregacionista – traz para o leitor os debates políticos da época a partir de sua inserção neles. O trabalho de Gomes extrapola, portanto, uma perspectiva estritamente biográfica ou de análise literária para compreender a obra de Schreiner em relação ao contexto de formação da nação sul-africana.

Nesse sentido, ganha importância o mapeamento de Gomes dos diálogos intelectuais e políticos de Schreiner, que vão do amigo e sexólogo inglês Havelock Ellis ao admirado e depois inimigo Cecil Rhodes e membros da South African Improvement Society, em sua maioria, africanos negros. No que diz respeito a esses diálogos, um olhar etnográfico sente falta de uma discussão sobre a relação de Schreiner com seu marido, Samuel Cronwright-Schreiner, com quem escreveu o panfleto político The political situation. Se a intimidade do casal é provavelmente pouco relevante para a constituição da nação sul-africana, o casal, por meio de sua atuação conjunta, passou a ocupar um lugar na cena política sul-africana no qual os dois indivíduos não estavam completamente dissociados. Talvez levar essa relação em conta permitisse acompanhar os desenvolvimentos da militância feminista de Schreiner em relação a um aspecto cotidiano de sua vida: sua própria relação conjugal.

Outros escritos se seguirão ao romance de estreia de Schreiner, segundo Gomes nem sempre facilmente classificáveis do ponto de vista da forma: se The political situation e Thoughts on South Africa poderiam ser ditos de cunho político, Trooper Peter Halket of Mashonaland é um romance-alegoria que trata da trajetória de um inglês pobre que foi para a África do Sul lutar na guerra de pacificação contra os Mashona. A narrativa mostra como Peter Halket, que chegou ao território africano em busca de ascensão social à custa de pouco trabalho, humaniza-se a ponto de recusar-se a matar um nativo. Embora os escritos de Schreiner difiram em sua forma, Gomes argumenta de forma bastante convincente que não se pode pretender classificá-los segundo uma divisão estanque entre “trabalhos de imaginação” e “textos polêmicos”, pois há algo de político nos textos mais explicitamente literários, como African farm ; ademais, os escritos predominantemente políticos seguem muitas vezes um estilo literário, com grande destaque para a paisagem sul-africana, personagem expressivo de muitas de suas narrativas. Trooper Peter Halket seria por excelência inclassificável nesse sentido.

Na narrativa de Gomes sobre Schreiner, os detalhes do cotidiano se articulam às grandes questões políticas do seu tempo: a Guerra Anglo-Bôer, o papel de Rhodes no Cabo e na Rodésia, as guerras de pacificação contra os nativos, sua exploração como mão de obra barata e seu alijamento da cena política sul-africana. No que diz respeito à questão dos “nativos”, vistos por Schreiner como “um pequeno humano em formação”, penso que parte da riqueza da leitura de Gomes deve-se a sua capacidade de mostrar de forma muito clara qual era o sistema de classificação vigente e as concepções que se atrelavam a cada categoria social. Os africanos eram divididos basicamente em quatro categorias: bosquímanes, hotentotes, kaffirs (bantos) e coloured(termo que pode ser imperfeitamente traduzido como “mestiço”). A cada uma dessas categorias estavam relacionadas características e personalidades distintas, como apontamos acima, e a classificação se baseava principalmente no critério econômico (bosquímanes eram caçadores-coletores; hotentotes eram pastores; kaffirs eram pastores e agricultores dotados de organização centralizada). Contudo, se as três primeiras categorias eram compreendidas como “raças”, e juntamente com a “raça branca” perfaziam as quatro “raças” que compunham a nação sul-africana segundo a classificação de Theal em Compendium of the history and geography of South Africa (1878), não se poderia dizer o mesmo dos coloureds, classe trabalhadora sul-africana compreendida por Schreiner e grande parte dos intelectuais de sua época não como uma “raça” distinta, mas como half-castes (literalmente “meia-castas”). Estes seriam, segundo ela, resultantes da união entre mulheres negras escravizadas e um branco dominante.

A crítica de Schneider incide não só sobre a desigualdade dessa relação de gênero como sobre o caráter indesejável da miscigenação. Para ela, a África do Sul deveria ser construída harmonicamente a partir de todas essas “raças”, uma nação com várias cores que, no entanto, deveriam permanecer separadas, como muito bem explicitado em seu “mandamento” mais importante: “ Keep your breeds pure!” [“Mantenham sua raça pura!”] (p. 113). A miscigenação é silenciada ou vista como problema por Schreiner que, no entanto, defende a assimilação, “obrigação moral de elevar os outros”. A visão de Schreiner em relação à questão do nativo mostra como ela, ao mesmo tempo em que assumia uma atitude progressista em relação ao lugar dessas pessoas na política sul-africana, era também uma mulher de seu tempo, pertença esta derivada em grande medida da linguagem de que dispunha para pensá-lo: para ela, os nativos sul-africanos eram distintos dos brancos e assim deveriam permanecer. Não há espaço, em seu discurso, para o questionamento da ideia de raça e das hierarquias dela resultantes. Imersa nas ideias eugenistas de sua época, Schreiner via a miscigenação com preocupação e considerava ser papel da raça branca, especialmente dos ingleses, que ocupavam seu mais alto nível, contribuir para a melhoria das outras raças por meio da assimilação. Para ela, cada raça tinha suas qualidades e defeitos e poderia, a partir deles, desenvolver-se; a miscigenação traria o problema da degenerescência, pois faria uma junção das piores características de cada raça1. A riqueza da narrativa de Gomes aponta, contanto, para as vozes dissonantes de três clérigos anglicanos e Abdol Burns. Estes se opuseram à segregação racial nas escolas com base no seguinte argumento: como identificar brancos e negros em uma sociedade miscigenada e com “notória permeabilidade em sua barreira de cor”? Se seu questionamento apontava para a evidência que a classificação racial buscava distorcer, seu apelo não teve ressonância no debate político do período.

O texto de Gomes, extremamente bem escrito, faz jus à proposta de análise que apresenta e convida o leitor, com bom humor e perspicácia, a participar do contexto do nascimento da nação sul-africana e da definição de lugares sociais marcados por categorias de designação que determinariam muitas das possibilidades e impossibilidades colocadas para os diversos sujeitos sul-africanos ao longo do século XX.

1São curiosas as semelhanças do discurso eugênico sobre raça na África do Sul e no Brasil do mesmo período. Sobre o contexto brasileiro, ver Schwarcz (1993).

Referências

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. [ Links ]

THEAL, George. Compendium of the history and geography of South Africa. Londres: Edward Stanford, 1878. [ Links ]

Iracema Dulley – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutoranda, bolsista Fapesp. E-mail: idulley@gmail.com.

Itamar Freitas

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