Uma Casa de Educação Literária: 150 anos do Atheneu Sergipense | Eva Maria Siqueira Alves, João Paulo Gama Oliveira e Rosemeire Marcedo Costa

As efemérides constituem relevantes espaços de celebração e de construção de análises que tendem a avaliar as experiências tecidas na malha do tempo. Nos idos de 2020, em pleno contexto dilacerado pelos dilemas da pandemia, ocorreram as celebrações alusivas ao bicentenário da emancipação política de Sergipe e do sesquicentenário da mais longeva instituição educacional do estado, o portentoso Atheneu Sergipense. Infelizmente, em decorrência das necessárias ações de isolamento social, as ruas e os auditórios estiveram vazios, desprovidos de festejos, de eventos e da presença de sujeitos que enfaixam sentidos, vivem e narram as histórias. Entretanto, nem tudo foi silêncio. No dia 19 de outubro, uma live reuniu um considerável número de historiadores da Educação no efusivo lançamento da coleção “Uma Casa de Educação Literária: 150 anos do Atheneu Sergipense”. Trata-se de uma coleção que reúne dez livros que têm como escopo a trajetória da velha instituição de ensino secundário de Sergipe.

Certamente, o evento de lançamento pode ser entendido como o principal episódio das aludidas celebrações. Além disso, a coleção se tornou o marco, o registro historiográfico que investiga o passado do Atheneu Sergipense em seus variados aspectos. Assim, os discípulos de Clio cumpriram seu compromisso com a memória, ao reunir esforços para demarcar o tempo com uma produção que amplifica a visibilidade do ensino secundário sergipano.

Os livros publicados na coleção se inserem em um importante corpus historiográfico atinente às instituições de ensino secundário no Brasil. Pensadas como espaços de formação de elite burocrática que passaria a ocupar os cargos públicos do Império, esse modelo institucional se proliferou pelo país ao longo da centúria oitocentista, com o Ginásio Pernambucano (fundado em 1825), o Atheneu Norte-riograndense (1834) e o Imperial Colégio Pedro II (1837). Tido como modelo para as escolas congêneres do Império do Brasil, o Colégio Pedro II se tornou um objeto amplamente investigado na historiografia educacional brasileira, tanto em momentos de efemérides, como o centenário da instituição (ALMEIDA, 1936; DÓRIA, 1937; MOACYR, 1937), como no processo de consolidação da pós-graduação e dos campos da História da Educação (SEGISMUNDO, 1972; HAIDAR, 1972; ANDRADE, 1999) e do ensino de História (MATTOS, 2000; GASPARELLO, 2004). Por meio da coleção “Uma Casa de Educação Literária”, é possível afirmar que o Atheneu Sergipense também passa a integrar o seleto grupo de instituições privilegiadas, ao ser dotado de múltiplas leituras historiográficas.

O ensino secundário na província de Sergipe teve como experiências inaugurais o antigo Liceu de São Cristóvão (1830-1839, 1847-1855), instituição na qual teve breves períodos de atuação e em decorrência de diferentes motivos, acabou encerrando as suas atividades. Com isso, a instituição que se tornaria duradora no cenário educacional sergipano seria o Atheneu Sergipense, inaugurado em Aracaju, no dia 24 de outubro de 1870. A escola tornou-se uma experiência exitosa de ensino secundário na província e se consolidou como o espaço que congregava alguns dos principais nomes de homens letrados que atuaram na formação das novas gerações (NUNES, 2008). É possível afirmar que esse protagonismo perdurou até a criação das primeiras faculdades ao longo da década de cinquenta do século XX.

A coleção “Uma Casa de Educação Literária” foi coordenada pelas professoras Eva Maria Siqueira Alves, Rosimeire Marcedo Costa e pelo professor João Paulo Gama Oliveira, docentes da Universidade Federal de Sergipe, os quais têm contribuído de forma significativa nas pesquisas no âmbito da História da Educação. Contudo, é possível afirmar que a coleção é devedora de um processo mais longínquo, remontando ao início do novo milênio, com o curso de doutoramento da professora Eva Maria Siqueira Alves (entre 2001 e 2005) que marca o início de sua pesquisa sobre o Atheneu Sergipense, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trata-se de um estudo pioneiro no âmbito da pesquisa acadêmica a qual descortinou a trajetória do ensino secundário sergipano no oitocentos e primeiros decênios do novecentos (ALVES, 2005).

Ao concluir o doutorado com o retorno às suas atividades docentes no Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe, a professora Eva Siqueira capitaneou um amplo esforço no processo de sistematização da salvaguarda documental do Atheneu Sergipense e na mobilização no sentido de formar novos pesquisadores. A primeira ação resultou na criação do Centro de Educação e Memória do Atheneu Sergipense (CEMAS), espaço que contribuiu de forma significativa para a preservação da memória da instituição, por meio de ações de salvaguarda das fontes. Desde 2005, inúmeros alunos da graduação envolvidos em projetos de pesquisas e extensão tem atuado no processo de sistematização das fontes, na produção de instrumentos de pesquisas que possibilitam o acesso aos registros históricos, em um louvável esforço de democratização ao acesso dos registros documentais.

Como resultante dessa política de salvaguarda documental e desdobramento de sua pesquisa de doutoramento, a professora Eva Maria Siqueira Alves contribuiu com a formação de novos pesquisadores no campo da História da Educação, da qual destacam-se a orientação de 22 dissertações de mestrado e 8 teses de doutorado defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Em grande medida, são pesquisas que se debruçaram sobre a história do Atheneu Sergipense e parte dessa significativa produção historiográfica veio à lume por meio da coleção “Uma Casa de Educação Literária”.

A coleção publicada pela Editora Mercado das Letras é constituída por dez livros. Um dos livros tem como autora Christianne Gally, que atualmente realiza o estágio pós-doutoral no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Trata-se de “Brício Cardoso no canário das humanidades do Atheneu Sergipense (1870-1874), que foi prefaciado pelo historiador Samuel Albuquerque. A pesquisadora investiga o processo de estruturação do ensino secundário sergipano entre as cidades de São Cristóvão e Aracaju, como pano de fundo para o processo de consolidação do Atheneu Sergipense por meio da atuação docente de Brício Cardoso na cadeira de Retórica e Poética. Apoiada em vasta documentação, a autora discute os meandros que atravessaram os primeiros anos após a inauguração da instituição.

A saga da juventude estudantil do Atheneu Sergipense foi o escopo da análise de Simone Paixão Rodrigues, em “Com a palavra, os alunos: associativismo discente no Grêmio Literário Clodmir Silva”. A autora atualmente é professora da educação básica e do ensino superior em Sergipe. O livro foi prefaciado e apresentado respectivamente pelas professoras Rosa Fátima de Souza Chaloba e Margarida Louro Felgueiras. Com uma escrita leve e elegante, Simone Rodrigues construiu uma história a partir do ângulo dos alunos.

Se Simone Rodrigues se debruça acerca das vozes estudantis, Fábio Alves dos Santos buscou as vozes dos professores em Sergipe oitocentista. Trata-se “Das cadeiras isoladas ao Atheneu Sergipense: elite letrada e ofício docente em Sergipe no século XIX”. O autor é docente do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe. O livro foi prefaciado pelo professor Péricles Andrade e mapeaia a atuação de professores no oitocentos.

Os saberes escolares matemáticos foram o escopo de Simone Silva da Fonseca em “De um curso de comércio do Atheneu Sergipense à escola Técnica de Comércio: a configuração dos saberes matemáticos para a formação profissional (1871-1971). A autora é professora da educação básica e do ensino superior e o livro foi prefaciado pelo professor Iran Abreu Mendes. A autora busca entender os meandros que atravessaram os cursos técnicos de comércio em Sergipe ao longo de um século, entre a fundação do Atheneu Sergipense, nos idos de 1870, até a extinção da Escola de Comércio Conselheiro Orlando em 1971.

A política de salvaguarda documental também integra a coleção, por meio da reedição da tese do concurso para a cadeira de História Geral do Atheneu Sergipense, defendida pelo professor José Silvério Leite Fontes. Trata-se do livro “Formação do conceito de fato histórico na cultura ocidental”. A nova edição foi organizada e apresentada por Edmilson Menezes, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.

Oriundo da escrita de um dos organizadores da coleção, temos também “Na trilha dos jovens anos escolares: itinerários intelectuais sergipanos (1935-1945), no qual apresenta parte de sua tese de doutorado. João Paulo Gama Oliveira é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe. O livro foi prefaciado por Norberto Dallabrida. O livro tem escopo os itinerários de quatro dos principais intelectuais sergipanos de meados do século XX: Maria Thetis Nunes, Bonifácio Fortes e Cabral Machado e José Silvério Leite Fontes. Em uma narrativa envolvente, o autor nos leva a mergulhar em “tramas que entrelaçam as vidas dos sujeitos investigados ao tempo e espaços vividos”.

Outra organizadora da coleção, Rosimeire Marcedo Costa, nos apresentou “O reluzir da ordem e da disciplina: práticas de instrução pré-militar no Atheneu Sergipense (1909-1946)”. A professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe nos brinda com uma sua leitura acerca dos significados da disciplina escolar Instrução pré-militar. O livro foi prefaciado pela professora Cynthia Greive Veiga. Pautada em vasta documentação, Rosimeire Costa investigou a relação entre educação e militarismo e explicita a polifonia nos sentidos atinentes às práticas militares no espaço escolar.

Um trabalho de fôlego e instigante foi pensada por Suely Cristina Silva Souza, em “Os concursos para professores do Atheneu Sergipense (1938-1947)”. A autora atua na educação básica e no ensino superior. O livro foi prefaciado pela professora Sara Martha Dick. Provida de uma vasta documentação, a Suely Souza investiga o processo de recrutamento de intelectuais na principal vitrine do ensino secundário sergipano.

A história das disciplinas escolares foi pensada por Ana Márcia Barbosa dos Santos Santana, em “Sob a lente do discurso: aspectos do ensino de Retórica e Poética no Atheneu Sergipense (1874-1891)”. A autora é professora de Língua Portuguesa do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe. O livro foi prefaciado pela professora Eurize Caldas Pessanha. Trata-se de uma leitura que investiga a configuração dos planos de estudos do Atheneu Sergipense em um contexto de redefinição do ensino de humanidades no Brasil.

A coleção é finalizada pela professora Eva Maria Siqueira Alves, com “Planos de estudos do Atheneu Sergipense (1870-1931). Autora é professora titular aposentada da Universidade Federal de Sergipe e o livro foi prefaciado pela professora Carlota Botto. Trata-se de uma importante edição de fonte, no qual é possível vislumbrar os aspectos centrais das disciplinas e docentes da instituição. Além disso, ressalta-se a sensível apresentação do documento, tecida pelas mãos habilidosas da professora Eva Alves, que tece uma malha narrativa na qual a sua trajetória se conecta com a da instituição a qual se dedicou a levar para as páginas da historiografia.

A coleção coroou uma trajetória dedicada ao estudo da história do Atheneu Sergipense. Possibilita uma ação de retorno social das pesquisas em história da Educação e revela as especificidades do ensino secundário em Sergipe, que ora se aproximava das experiências de outros centros, ora se distanciava. De toda forma, a emergência de novos estudos explicita a polifonia das trajetórias educacionais vivenciadas em diferentes estados e instituições do país. Além disso, consolida a certeza de que para se pensar a história do Brasil é salutar reconhecer as fissuras existentes no suposto tecido uníssono e valorizar as particularidades que enlaçam a malha do nacional. Trata-se de uma historiografia que merece a leitura atenta.

Referências

ALMEIDA, Antônio Figueira de. História do ensino secundário no Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Baptista de Souza, 1936.

ALVES, Eva Maria Siqueira. O Atheneu Sergipense: traços de sua história. Aracaju: Adgraf, 2005.

ANDRADE, Vera Lúcia Cabana de Queiroz. Colégio Pedro II: um lugar de memória (1999). Tese, 181f. (Doutorado em História). Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.

DÓRIA, Escragnolle. Memória Histórica comemorativa do primeiro centenário do Colégio Pedro Segundo (1837-1937). Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1937.

HAIDAR, Maria de Lourdes M. O ensino secundário no império brasileiro. São Paulo: EDUSP, 1972.

GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de Identidades: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu, 2004.

MATTOS, Selma Rinaldi. O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro: Acces, 2000.

MOACYR, Primitivo. A instrução e o império: subsídios para a história da Educação no Brasil. São Paulo: Nacional, 1937.

NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. São Cristóvão: EDUFS, 2008.

SEGISMUNDO, Fernando. Colégio Pedro II: Tradição e Modernidade. Rio de Janeiro: Unigraf, 1972


Resenhistas

Ane Luíse Silva Mecenas Santos – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. https://orcid.org/0000-0002-5648-7060  http://lattes.cnpq.br/5086611569752849 E-mail:  ane.mecenas@ufrn.br

Magno Francisco de Jesus Santos – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. https://orcid.org/0000-0002-2218-7772  http://lattes.cnpq.br/9046069221784194 E-mail: magno.santos@ufrn.br


Referências desta Resenha

ALVES, Eva Maria Siqueira; OLIVEIRA, João Paulo Gama; COSTA, Rosemeire Marcedo. (Orgs). Uma Casa de Educação Literária: 150 anos do Atheneu Sergipense. Coleção. 10v. Campinas/SP: Mercado de Letras. 2020. Resenha de: SANTOS, Ane Luíse Silva Mecenas; SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Uma Casa de Educação Literária: o Atheneu Sergipense em perspectiva historiográfica. Cadernos de História da Educação, v.21, e092, 2022. Acessar publicação original [DR]

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