Um oceano, dois mares, três continentes | Wilfried N’Sondé

Sem fôlego! É assim que ficamos quando lemos, analisamos e refletimos sobre uma obra tão intensa e cativante como Um oceano, dois mares, três continentes, um romance histórico que nos transporta numa viagem ao século XVII, para o epicentro da maior catástrofe da humanidade: o comércio transatlântico. Ao narrar, embora de forma romanceada, a viagem do primeiro “embaixador do Reino do Kongo no vaticano” (p. 44), Wilfried Nsondé mostra, uma vez mais, que muito ainda está por descortinar não só em relação a essa figura emblemática da história do Kongo, mas sobretudo, em relação ao tráfico de escravos. A obra resulta da imaginação do autor para tecer as malhas do romance (histórico, porém romance), bem como do seu domínio histórico-científico na contextualização dos diferentes acontecimentos que, acreditamos, está assente num extenso e profundo trabalho de pesquisa em arquivos e literatura especializada.

Numa análise sócio-histórica completa, Nsondé apresenta o padre Nsaku ne Vunda, bacongo2,  nascido na aldeia de Boko, batizado António Manuel que, seduzido pelo catolicismo alimentado pelos missionários, envereda pela vida religiosa. É nessa condição, e enquanto pároco na sua aldeia natal, que é mandado chamar por sua majestade “Manzou a Nimi, rei dos Bakongo de ontem, hoje e amanhã, chamado também Álvaro II3 pelos seus irmãos cristãos desde o batismo” (p. 39), dando assim início à ação que se desenrola ao longo de toda a obra, numa concatenação perfeita de acontecimentos históricos devidamente referenciados e explorados. É esse descortinar de acontecimentos que nos permite dividir a obra em duas partes: a primeira, corresponde ao início da viagem de Nsaku ne Vunda do Kongo para o Novo Mundo (continente americano) e, a segunda, do Novo Mundo para o continente europeu.

A primeira parte da obra pode ser divida em três momentos distintos, nomeadamente: a) apresentação do narrador, onde este relata a sua trajetória de vida, desde o seu nascimento, primeiras letras nas escolas missionárias, atração pelo catolicismo, ordenação e vida feliz enquanto pároco da sua aldeia natal, num claro e inteligente equilíbrio entre tradição, dado que evoca sempre a sua cultura africana, crenças e saberes, e a modernidade da cultura europeia; b) nomeação como embaixador para o Vaticano e início da viagem de que foi imbuído pelo rei do Kongo, que o levou para Um oceano, dois mares, três continentes; c) viagem para o Novo Mundo, onde o mesmo descreve minuciosamente os acontecimentos mais marcantes e que o levaram a “interrogar Deus sobre a sua criação” (p.127), levantando dúvidas sobre a sua e a existência humana no geral, nomeadamente, o início e evolução do tráfico (captura, embarque, acomodação), a travessia (alimentação, necessidades fisiológicas, doenças, sexo…), o desembarque no Novo Mundo, as relações (des)humanas, os comportamentos destrutivos “irmãs e irmãos vendidos no Novo Mundo, violados, humilhados, negados” (p. 127), entre outros.

Na segunda parte da obra, assistimos, em quatro momentos distintos, a um agudizar dos medos, das dúvidas e dos questionamentos de Nsaku ne Vunda em relação à humanidade e, sobretudo, em relação à Igreja, nomeadamente: a) a narração da viagem entre o Novo Mundo até o seu desembarque em Lisboa; b) “A complexidade das relações entre a Igreja de Espanha e a Santa Sé, as tensões entre o clero secular e o clero regular, a reforma e o Islão” (p. 137); c) as lutas pelo poder no seio da Igreja católica, que “tinham feito de Deus um instrumento para servir as suas ambições pessoais e políticas” (p. 226); d) a real dinâmica social no Vaticano “tratava-se apenas de interesses, de influências e de finanças, questões muito afastadas das preocupações celestes”. Ao constatar que o cenário europeu era igualmente ultrajante, e após desenhar o sinal da cruz na testa do Papa Paulo V, Nsaku ne Vunda deu o seu “último suspiro, realizado, extenuado, mas feliz” (p. 229), deixando assim o mundo dos vivos e embarcando para “o abismo do tempo” (p. 229), “disposto a cumprir [o seu sonho] de eternidade” (p. 229).

Assente na transdisciplinaridade e fazendo uso de uma linguagem acessível e fluida, porém, cuidada, a obra promove e tem a vantagem de colocar à disposição de um público mais alargado, não especializado, um conjunto de informações úteis e interessantes sobre um dos fenómenos mais marcantes da história da humanidade. O enredo e o cruzamento de diferentes momentos históricos inteligentemente construídos permite ao leitor, visualizar o seu desenrolar à medida que vai lendo, como se fossemos teletransportados para o centro da ação, tornando-nos leitores igualmente participantes da ação. Tendo o tráfico de escravos como epicentro, outros acontecimentos narrados são minuciosamente descortinados, num brilhante cruzamento de diferentes escalas de análise que dão coerência à ação. A negação do continente numa perspetiva macro, da sua cultura numa perspetiva meso e do negro enquanto ser humano numa perspetiva micro legitimaram ideologicamente a inferioridade de África e dos africanos em favor do homem branco e levaram à construção e consolidação do racismo anti-negro.

Dentro dessa dinâmica, outras temáticas, igualmente exploradas pelo narrador, ganharam forma e se enraizaram, perdurando ainda nos dias de hoje, com destaque para: a) a condição das mulheres, seja na Europa do século XVI-XVII “mantidas no fim da escala, presas à terra pelo sangue numa sociedade regida segundo uma hierarquia muito rigorosa: enfeudadas à vida do Senhor, submetidas à autoridade dos seus pais primeiro e, mais tarde, depois do casamento, à dos seus maridos” (p. 135), seja no reino do Kongo, “que reconhecem ao género feminino um estatuto privilegiado e a colocam na origem da filiação” (p.139), comparando duas realidades distintas em que uma acabou por, ao longo do tempo, impor-se à outra; b) brutalidade e violência contra a mulher africana: “compreendi imediatamente que nada nem ninguém ia impedir as jovens reféns… de estar à mercê dos desejos sexuais de toda a tripulação composta de uns sessenta homens” (p.71), dando igualmente origem depois ao processo de c) miscigenação pelo mundo, negativamente categorizada pelas ideias racistas e pelas teorias do darwinismo social.

A par destas, encontramos igualmente outras referências que nos ajudam a compreender melhor a atual situação do continente e dos africanos no geral, com destaque para: a) a imposição dramática do capitalismo “os seres humanos passaram a ser considerados como mercadorias à mercê dos negociantes que se dedicavam a uma concorrência feroz, sem ética, dispostos a tudo” (p. 32), assente na b) Ganância, “vidas esmagadas, utilizadas em proveito da prosperidade de um punhado de indivíduos” (p. 95), na c) corrupção “tinha passado o tempo em que a prosperidade era fruto do trabalho árduo” (p. 49), na d) predação “a nossa sociedade transformou-se num perigoso sistema de predação generalizada” (p. 34), e) a desconfiança: “os bacongos já não se relacionavam, espiavam-se” (p. 48), e sobretudo, no f) racismo “foram inventadas na europa ideias insensatas de uma violência inaudita, um raciocínio abjeto de hierarquização dos seres humanos segundo uma escala que relegava alguns a categoria de animais: o racismo e o seu vocabulário redutor e infame” (p. 110), que fez com que todo o continente e seus habitantes desabasse “sob o peso da submissão” (p. 94),

Mais de 500 anos se passaram desde o início do tráfico de escravos e mais de 100 desde a sua abolição e, contrariamente à ideia que vai prevalecendo que o estudo e pesquisas sobre o tráfico já se esgotou, o autor prova que muito ainda está para ser revelado em relação a esse período sombrio da humanidade. Por outro lado, Nsondé reforça a ideia da necessidade do conhecimento do passado para a compreensão do presente e assim traçarmos perspetivas para o futuro. Arriscamos dizer que na presente obra história e literatura se uniram em prol de uma causa: levar-nos a refletir e a questionar aquilo que temos aprendido até ao presente, constatando assim que se trata de um passado que ainda tem “muitas verdades” para serem reveladas, pois, tal como nos diz Nsaku ne Vunda, “sobrevive uma memória esquecida, a dos escravos, oprimidos e supliciados” (p. 15), e são essas e outras histórias que precisam de ser desvendadas.

De referir ainda o esforço e o trabalho do tradutor e da editora4 , que se uniram e trabalharam em conjunto, para disponibilizarem em língua portuguesa, a história negligenciada de uma “personalidade muito mal conhecida da história angolana” (p. 11), o padre Nsaku ne Vunda, bem como o reacendimento do debate sobre o período do tráfico de escravos e contínua identificação das suas consequências. A tradução impecável de Mena Abrantes, conhecido dramaturgo angolano, de quem partiu a iniciativa, abre caminho para uma maior divulgação da informação para o espaço lusófono, bem como mostra que a língua não deve continuar a ser utilizada como desculpa para a ausência de diálogo entre a maioria dos países africanos. É igualmente imperioso enaltecer a editora Mayamba pelo apoio, investimento e risco, numa altura em que, apesar da crise económica e financeira profunda e dos baixos índices de leitura e investimento residual na publicação de obras, não se coibiu, iniciativa que é de fato, de aplaudir e que todos os falantes de língua portuguesa agradecem.

Notas

2 Terceiro maior grupo étnico bantu que habita em Angola.

3 Álvaro II (1587-1614).

4 A obra contou ainda com a revisão linguística do Diretor da Alliance Française de Luanda, Paul Barascut.


Resenhista

Ermelinda Liberato – Instituto Superior de Ciências da Comunicação (ISUCIC), Luanda – Angola.


Referências desta Resenha

N’SONDÉ, Wilfried. Um oceano, dois mares, três continentes. Luanda: MayambA Editora, 2019. Resenha de: LIBERATO, Ermelinda. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.05, n.05, p. 216-219, abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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