Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966) FONTES (EH)
FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: FGV, 2008, 346 p. Resenha de: LOPES, José Sérgio. São Miguel apresenta os Nordestinos a São Paulo. Estudos Históricos, v.22 n.43 Rio de Janeiro Jan./June 2009.
Um Nordeste em São Paulo traz contribuições originais ao estudo dos processos migratórios no país, o maior dos quais tendo se dirigido no pós-guerra para a cidade de São Paulo, que se tornaria a maior área metropolitana do país. A partir de estudos anteriores relativos à imigração internacional no período pós-escravista (em particular a imigração italiana), nos quais a relação com a industrialização nas primeiras décadas do século XX é analisada, Paulo Fontes pôde estender essa linha de investigação (em que Michael Hall, seu orientador, é um dos autores mais importantes) ao caso da grande migração interna do pós-guerra, a migração rural-urbana concentrada no eixo Nordeste-São Paulo.1
Uma das grandes forças deste livro é a de conseguir iluminar processos sociais de amplitude nacional através do uso da escala local, prática em que o autor já tem um conhecimento acumulado desde a sua pesquisa para a dissertação de mestrado, que se tornou seu livro de estreia.2 A possibilidade de desvendar esse processo macrossocial em um distrito inicialmente pouco povoado da cidade de São Paulo – onde a forte ação do foco de recrutamento de mão de obra inicial, que é a Fábrica Nitro Química, ali instalada no final dos anos 1930, e que de certa forma exerce um domínio sobre o distrito como governo local de fato ostensivo ou nos bastidores até meados dos anos 1960 – é fruto dessa escolha de objeto e de um procedimento histórico-etnográfico, dando ao leitor do livro uma narrativa de densa dramaticidade. Nas décadas seguintes a localidade torna-se (e é vista como) um lugar de forte concentração de trabalhadores nordestinos.3
O fato de ser uma grande fábrica privada, de forte capital político junto ao governo federal,4 que veio a ser um dos fatores iniciais da imigração nordestina para São Paulo, e mais ainda na localidade – fábrica esta que tem uma influência preponderante na economia e na vida social do bairro – dá à observação micro, focalizada em tal distrito, um poder explicativo heurístico para a compreensão daquela grande migração dirigida à capital paulista.5
O paralelismo entre a naturalidade civil do principal proprietário da Nitro, José Ermírio de Moraes, e a origem nordestina de maior parte da mão de obra selecionada pela empresa não escapa nem aos trabalhadores e moradores locais nem ao autor. Pode-se em todo caso aprofundar, em pesquisas futuras, a presença nacional precoce de empresários nordestinos na indústria do Rio de Janeiro e de São Paulo,6 entre os quais o grupo Ermírio de Moraes ocupa um lugar singular. Ao invés de uma acumulação prévia em estabelecimento industrial e/ou comercial inicial em sua área de origem, como é o caso de outros empresários do Norte (como se dizia na época), José Ermírio entrou de forma precoce e direta num grande grupo industrial têxtil de São Paulo, a Votorantim, em Sorocaba, do industrial português Pereira Inácio, e assim passou a pertencer, desde muito jovem, à burguesia industrial que veio a ser, anos depois, o centro mesmo do poder econômico do país.7
No capítulo 2 (p. 101-102), Paulo Fontes menciona a prática, durante a década de 1940, do agenciamento direto de trabalhadores pela Nitro Química, transportados de caminhão de Minas Gerais e do Nordeste (onde o grupo Votorantim tinha implantação com fábricas de cimento, como a Fábrica Poty, em Paulista, PE, assim como usinas de açúcar).8 Nos anos 1950 o fluxo migratório se dava de forma não diretamente produzida pela fábrica, mas já era fruto seja da articulação das famílias de trabalhadores da Nitro com seus parentes provenientes de suas áreas de origem, seja da procura por parte de famílias recém-imigradas por áreas de moradia, nos loteamentos a baixos preços oferecidos a trabalhadores naquele distrito.9 Aquilo que antes se fazia em escala intrarregional (por exemplo, no interior do Nordeste, o agenciamento de famílias camponesas em estados vizinhos através de agentes pagos por fábricas têxteis por família recrutada, entre os anos 1930 e 40), agora era feito em escala inter-regional de longa distância, Nordeste-Sudeste por via terrestre (agenciamento anteriormente feito de forma internacional por via marítima de longa distância entre Europa e Sul-Sudeste do país).
O livro segue uma ordem cronológica, mas que também tem a lógica de um plano temático de exposição: começa pela análise do processo de migração Nordeste/São Paulo (condições de saída, condições de chegada) em sua dimensão geral, dando conta do mote do título principal; e passa pelas redes de chegada e estabelecimento na cidade (e em particular no bairro) de uma perspectiva étnico-regional, mostrando como pouco a pouco o que é procura por trabalho passa a ter uma dimensão étnica (um novo grupo migrante na cidade, que chega numeroso, passa a ser percebido como tal pelos próprios nordestinos em seus locais de residência, assim como pelos estabelecidos de São Paulo e a sua mídia). Assim, na passagem do primeiro para o segundo capítulo, a perspectiva maior sobre São Paulo passa a focalizar-se em São Miguel, sem, no entanto, perder a precisão na passagem do geral para o particular (no capítulo1), assim como na passagem ao geral em pontos específicos da narrativa localizada que predomina nos demais capítulos. Por outro lado, a análise do termo genérico e estigmatizante de “baiano”,10 que passa a caracterizar a interação entre os estabelecidos e os novos chegados, se localiza no fechamento do capítulo inicial “Mala de papelão e matuá nas costas”, enquanto que o seguinte, “Terra de nordestinos”, é fortemente correlacionado ao domínio do trabalho e, portanto, da presença da fábrica no bairro, que parece dar um matiz especial à localidade. Assim, o terceiro capítulo, que trata da vida cotidiana no bairro, mostrando a construção de diversidades e identidades – através do acesso às residências (da pensão ao mutirão da casa própria), da vida social do bairro no tempo livre dos trabalhadores (futebol, cinema, bares, clubes sociais e bailes), onde pode se manifestar a diferenciação no bairro entre “a elite” e a “mistura”, das carências urbanas e de transporte de São Miguel Paulista – se dá de forma thompsoniana sob a rubrica sintética de uma “comunidade operária”. Segue-se a parte propriamente política do livro, nos capítulos 4 e 5; o primeiro sobre os partidos e lideranças políticas em São Miguel Paulista, denominado “Direito de fazer política”, direito este que se estende no último capítulo aos movimentos sociais de bairro e de autonomia política municipal.11
No capítulo 4, Paulo Fontes ressalta a importância da atuação do PCB no bairro, que chegou a ter em São Miguel Paulista, nos anos de 1945 a 1947, sua maior organização de base em São Paulo (com mais de mil trabalhadores filiados) sendo então lugar proletário preferencial para aquele partido mostrar sua força (com a admiração de Jorge Amado e as visitas frequentes de Prestes). Tendo tido como ponto de partida de pesquisa o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Química de São Paulo, e, em particular, seu grêmio de aposentados, o autor teve acesso aos relatos e à experiência política daqueles trabalhadores, formados no interior ou no entorno do trabalho sindical daquele partido. Esses depoimentos dão um fio condutor não somente à política no período, mas a informações e representações sobre a vida na fábrica e no bairro. O acesso ao arquivo da polícia política organizado nos anos 1990 no Arquivo Público de São Paulo permite completar e precisar, de forma cruzada, essas informações.
Diferentemente da perspectiva de autores que produziram seus trabalhos no fim dos anos 1970 sobre a classe trabalhadora de São Paulo (como os importantes trabalhos de Francisco Weffort e José Álvaro Moisés), posicionados no interior de um debate histórico polarizado pela nova redemocratização então em curso no país, Paulo Fontes está menos impregnado pelo ímpeto incontrolado do julgamento, e mais pela intenção de compreender, a partir de uma base direta e maior de informações dos próprios trabalhadores do período (assim como do aparelho repressivo do Estado), indisponíveis aos analistas dos anos 1970. Tal perspectiva ultrapassa a capa de princípios e de práticas políticas das direções partidárias, para entender os efeitos menos intencionais que aquela ação política tem sobre a associatividade dos trabalhadores. Isso se estende à compreensão do fenômeno da chamada política “populista” nos bairros de trabalhadores, menos pela etiqueta da anomia ou do desvio político (em relação a uma política transparente de representação de interesses de classe tida implicitamente como norma), mas por uma antropologia da política efetivamente praticada nas relações de reciprocidade (desigual) entre políticos e representados (com as visitas dos políticos e suas esposas à casa dos trabalhadores, com as particularidades dos seus comícios etc.). Também nesse caso, a escolha da análise histórico-etnográfica a partir do caso, um bairro estratégico (e não do fenômeno geral, mais abstrato), tem a sua importância, fazendo o livro contribuir para uma melhor compreensão da dinâmica do ademarismo e do janismo nos bairros de trabalhadores em São Paulo (assim como suas relações com quadros egressos do partido comunista clandestino).
O capítulo final, “Trabalhadores e o bairro” é ao mesmo tempo um capítulo de clímax dos movimentos sociais e um capítulo de síntese de múltiplas determinações, que reincorpora os diversos elementos analisados em capítulos precedentes para dar conta do desfecho na metade dos anos 1960. Aqui o autor analisa o movimento das Sociedades de Amigos do Bairro, assim como três tentativas de autonomização do distrito em novo município, independente de São Paulo. A empresa Nitro aparece novamente, seu poder político sobre o bairro sendo alvo dos movimentos de autonomização (autonomia não só em relação a São Paulo, mas em oposição à Nitro). Isso se completa com a análise do que precede localmente o golpe de 1964, da crise da Nitro Química e das demissões de 1966, abalando definitivamente o caráter monoindustrial do bairro.12
Um Nordeste em São Paulo é assim um livro síntese de um novo padrão de análise, no sentido de que contém em si próprio as contribuições de gerações anteriores apropriadas e transformadas, e ao mesmo tempo o ímpeto das novas gerações de historiadores e cientistas sociais investindo no desvendamento da história social e cultural das classes trabalhadoras ou das relações que entretêm com outras classes e grupos sociais, não só nos grandes eventos, mas também no seu cotidiano.13 O livro traz assim novas contribuições para a história social das classes populares, com o trabalho perspicaz sobre fontes as mais diversas, colocando em novos termos os temas cruciais de décadas passadas sobre os operários de origem rural e sobre a grande migração de nordestinos para São Paulo.
José Sérgio Leite Lopes – Professor associado 2 do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (jsergiollopes@gmail.com).