Um marco para a fotografia: 180 anos de Daguerre/Acervo/2019

O relato lido por François Arago em 7 de janeiro na Academia de Ciências, e repetido na célebre sessão conjunta das academias de ciências e artes em 19 de agosto de 1839, estabelece em cerca de cinquenta páginas uma genealogia da imagem afinal obtida a partir dos experimentos iniciados por Nicéphore Niépce (1765-1833), a quem Louis Daguerre (1787-1851) se associou em 1829 (Arago, 1839). A partir das imagens óticas alcançadas nas câmaras obscuras, o daguerreótipo representou a possibilidade de fixar e conservar sobre uma superfície as imagens assim captadas. A trajetória descrita visava garantir a primazia das pesquisas realizadas pela dupla sobre as demais tentativas precedentes ou simultâneas. A técnica doada ao mundo pelo governo do rei Louis-Philippe I ficava ainda a dever a captura das cores, como advertiu o cientista. Arago iria mesmo lamentar que o daguerreótipo não existisse em 1798 na campanha do Egito, privando o público de conhecer com exatidão aquele tesouro ainda intocado.

De todo modo, consignava-se ali a reprodução fiel da natureza, seu espelhamento da realidade, pretensão que configurava também o seu pecado de origem ao competir com o campo da arte. É conhecida a passagem na qual Charles Baudelaire procura marcar a clivagem entre a pintura e a fotografia, reservando um lugar a essa última: “que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e devolva a seus olhos a precisão que falta à sua memória, que orne a biblioteca do naturalista, exagere os animais microscópicos […]. Que salve do esquecimento as ruínas oscilantes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma desaparecerá e que necessitam de um lugar nos arquivos de nossa memória” (Baudelaire apud Dubois, 1993, p. 29).

Comemorar os 180 anos do daguerreótipo nos convoca a enumerar uma série de outros eventos típicos do século XIX. Entre eles, sem dúvida, a criação do Arquivo Nacional um ano antes e a geração dos primeiros daguerreótipos no Rio de Janeiro, já nos anos de 1840. Mas é nesse inventário de origens comuns que podemos nos interrogar se a comemoração do invento consolidado por Louis Daguerre acaba por incorrer em uma atitude comum nos historiadores da fotografia frente à questão filosófica “o que é fotografia?”. Para Geoffrey Batchen, diante dessa pergunta, os pesquisadores têm preferido se refugiar na fórmula segura e expositiva da resposta a outro questionamento: “onde e quando a fotografia começou?” (Batchen, 2000, p. 3). Ninguém, argumenta o autor, pretende negar que 1839 foi um ano importante para a nova técnica, particularmente no que se refere ao seu subsequente desenvolvimento. Contudo, a tradicional importância dada a esse momento não deve se sobrepor ao significado mais amplo do momento da emergência da fotografia em nossa cultura. A edição deste dossiê procurou dialogar com essas e outras perguntas suscitadas pela nitidez ou pelos fantasmas dessas primeiras imagens técnicas.

Geoffrey Batchen, o entrevistado deste número da Acervo, propõe rever a origem da fotografia. Inicialmente um historiador da arte, o professor australiano tem como princípio pensar nas margens do conhecimento e problematizar o seu próprio campo: da identidade da fotografia à identidade da sua própria história e das práticas fotográficas desconsideradas pela disciplina. Assim, Batchen dedicou-se às várias formas da chamada “fotografia vernacular”, sugerindo não apenas a sua inclusão no panteão dessa narrativa, mas que esses artefatos colecionados e confeccionados por indivíduos comuns, e ignorados por museus e academias, presidissem, estivessem no centro mesmo dessa história. Essas e outras reflexões envolvendo o status da imagem fotográfica digital e os dilemas que impõe aos arquivos e aos historiadores foram também discutidas.

No artigo que abre o dossiê, Um daguerreótipo na terra da rainha Vitória: notas sobre a experiência fotográfica no Reino Unido, Ana Maria Mauad se refere à Inglaterra como “um dos continentes da fotografia”. A imediata aceitação do daguerreótipo no país do calótipo – inventado por Henry Fox Talbot e rival direto daquele – assinala a peculiaridade da história visual britânica, como escreve Mauad. A historiadora dedica-se ao circuito cumprido pelo “objeto-imagem” analisado, o daguerreótipo de William Edward Kilburn, raro registro da manifestação cartista em Londres, no revolucionário 1848, e que alcança grande visibilidade e circulação. O contraste entre as narrativas e as providências tomadas diante da aglomeração, a imagem resultante e o sucesso alcançado por Kilburn são fatores analisados e que conduzem ao aspecto central a ser explorado, a supremacia da técnica do daguerreótipo sobre o calótipo de Talbot, em um processo que, a partir de um evento de origem, irá responder sobre as condições de emergência da fotografia.

Em The daguerreotype patent: Richard Beard and the emergence of photography in Britain,o historiador Steve Edwards explora a questão da patente do daguerreótipo na Inglaterra. Inscrito no paradigma da história social, o texto discute a imagem técnica como suporte de relações de classe e evidência material de disputas jurídicas em torno da propriedade e da autoria. Edwards argumenta que a produção de imagens como mercadorias evidencia a dialética sociocultural que sustentou o direito da propriedade burguesa como elo objetivo e imaginário. Mobilizando vários nomes de sujeitos históricos individuais, mas conectando-os a suas experiências históricas coletivas, o artigo evidencia que a questão deve ultrapassar narrativas personalistas do sujeito-gênio-inventor (seja Daguerre, Talbot ou qualquer outro), fazendo emergir a dimensão propriamente histórica da autoria: o Capital-Sujeito.

Margit Z Krpata, em O início da fotografia em Chipre: uma aproximação cronológica, oferece um amplo panorama da produção visual no Oriente Próximo, por meio de uma aproximação cronológica da história da fotografia em Chipre. Em boa medida, as condições de produção de imagens na região ao leste do Mediterrâneo foram influenciadas pela geografia e pelas disputas políticas em torno da autoridade colonial. Enquanto se podem encontrar daguerreótipos feitos nas zonas continentais do Oriente Próximo, o mesmo não se aplica à ilha cipriota. A condição insular do Chipre, na rota entre Ocidente e Oriente, atraiu viajantes e pesquisadores com interesses científicos e arqueológicos. Uma crescente produção de imagens acompanha esse movimento que se inicia após a tomada da ilha pelos ingleses, em 1878. Nesse período, vê-se que o daguerreótipo já havia sido ultrapassado por processos mais ágeis de produção da imagem técnica. O detalhamento realista oferecido pelo invento de Louis Daguerre não foi suficiente para garantir seu uso em um contexto em que a demanda por imagens reprodutíveis se tornava cada vez mais acentuada.

A trajetória fotográfica na ilha cipriota tem um interessante contraponto no texto assinado por Elisa Díaz González e Diana Ramos Jorge, La presencia del daguerrotipo en archivos familiares de Canarias: el retrato de John Howard Edwards. As pesquisadoras revelam um universo visual a partir de um projeto de levantamento arquivístico das coleções fotográficas das ilhas Canárias, iniciado em 2009. A noroeste da África, a situação insular não constituiu impedimento à chegada do daguerreótipo e ao estabelecimento de estúdios. Interessante notar que, como o Chipre, as Canárias também foram ocupadas pelos ingleses. No âmbito dessa pesquisa, de natureza histórica e arquivística, é abordada a presença de daguerreótipos em coleções familiares, com destaque para o retrato do comerciante John Howard Edwards, nascido na ilha da Madeira, filho de uma família inglesa que se estabeleceu com sucesso em Tenerife (Canárias). As autoras analisam o retrato em sua especificidade, mas também em articulação com outras imagens, inclusive europeias.

Titus Riedl contribui com a resenha do livro Instantâneos de Rui: fotografias das campanhas presidenciais de Rui Barbosa (1910-1919), de Luís Guilherme Sodré Teixeira, Pedro Krause Ribeiro e Silvana Maria da Silva Telles. Sobre as imagens reduplicadas no livro e os fotógrafos que as produziram, Riedl diz que “pretendiam conciliar o olhar de seu tempo com a dimensão histórica; transmitir um pedaço de normalidade em tempos de confusão e reviravolta política”. Em tempos em que política parece pretexto para manipulações de imagens ad nauseum, nada mais atual e necessário do que revisitar a dimensão visual da política em nossa história.

As coleções fotográficas vinculam-se em sua origem à lógica estruturante de instituições como os arquivos e museus, mesmo que o reconhecimento da fotografia como objeto de análise no domínio da história tenha sido conquistado ao longo do século XX. Neste dossiê, a seção Documento convida a esse exercício a partir de um conjunto de daguerreótipos, ambrótipos e ferrótipos provenientes do fundo privado Família Bicalho, da década de 1850. Doado em 2006, só agora trazido ao conhecimento do público, o conjunto de retratos foi submetido a uma série de procedimentos visando à sua preservação e mereceu o texto Eia, pois, aos retratos!, de Mauricio Lissovsky, uma história visual do Império travada em torno de trajetórias, projetos e imagens.

Coincidência ou não, além do Brasil, o dossiê é representado por ilhas: Chipre, Canárias e Inglaterra. Em uma publicação que pretende celebrar os 180 anos do advento do daguerreótipo na França, isso não deixa de ser uma grande ironia, em face da disputa que se estabeleceu entre Daguerre e Talbot, um francês e um inglês, vale dizer, entre duas nações que se enfrentavam pela dianteira do caminhar ocidental rumo à modernidade e ao progresso. Na tentativa de oferecer uma narrativa menos teleológica da história, Michel Frizot (1997) falou em continentes primitivos da fotografia, nos quais diferentes demandas e pressões sociais se articularam para o surgimento de técnicas diferenciadas.

Em 2019, falaremos em ilhas da fotografia sem descuidar dos continentes, na chave de histórias conectadas e, em boa medida, conflituosas, como atesta a argumentação de Steve Edwards. A proposta é provocativa, sem dúvida. Ela faz eco aos argumentos de nosso entrevistado, Geoffrey Batchen, que defende uma história da fotografia fora dos constrangimentos das narrativas tradicionais. Até o título do dossiê é uma indagação sobre o significado do daguerreótipo. Celebramos 180 anos do anúncio da invenção. Porém, após dezoito décadas de reflexões, a invenção se confunde com seu inventor, é contestada em vários tempos e espaços, suplantada por outras técnicas e, por fim, sobrevive nos arquivos, museus e coleções particulares. Só nos resta adicionar uma interrogação ao título, e que comecem os debates sobre esse marco para a fotografia: 180 anos de Daguerre?


Referências

ARAGO, François (1786-1853). Rapport de M. Arago sur le daguerréotype, lu à la séance de la Chambre des députés, le 3 juillet 1839, et à l’Académie des sciences, séance du 19 août. 1839. Source gallica.bnf.fr/Bibliothèque nationale de France. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ ark:/12148/bpt6k1231630?rk=300430;4. Acesso em: 26 abr. 2019.

BATCHEN, Geoffrey. Each wild idea: writing photography history. Cambridge, Massachusetts: The Mit Press, 2000.

DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus, 1993.

FRIZOT, Michel. Os continentes primitivos da fotografia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 27, p. 36-45, 1997.


Organizadores

Claudia Beatriz Heynemann – Arquivo Nacional.

Marcos Felipe de Brum Lopes – Instituto Brasileiro de Museus.


Referências desta apresentação

HEYNEMANN, Claudia Beatriz; LOPES, Marcos Felipe de Brum. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 6-9, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR/JF]

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