Um Homem Bom | Rui Afonso

Nos últimos anos, pesquisadores de diferentes áreas vêm demonstrando um interesse cada vez maior na postura de diplomatas que se viram diante de perseguidos pelo nazismo na Europa, sobretudo na história daqueles que arriscaram suas vidas e carreiras para ajudar tais pessoas. No Brasil, livros como “Quixote nas Trevas” (2002), de Fábio Koifman, que conta a história de Luís Martins de Souza Dantas,1 e “Justa” (2011), de Monica Raisa Schpun, sobre Aracy de Carvalho, 2 ilustram bem esta problemática. “Um Homem Bom”, do escritor português Rui Afonso, lançado em 2011 no Brasil pela Casa da Palavra e objeto desta resenha, também pode ser visto como exemplo desta linha de investigação. Mas diferente dos personagens de Koifman e Schpun, ambos brasileiros, Rui Afonso se debruça sobre a história de um conterrâneo seu: Aristides de Sousa Mendes.

Um dos aspectos que mais chama a atenção em “Um Homem Bom” – que é uma de suas maiores virtudes – é a sua não opção por um manjado modelo teleológico de narrativa biográfica, isto é, aquela narrativa que destaca o crescimento exponencial do biografado, da infância até o épico episódio que inspirou seus biógrafos a escreverem sua história. No livro de Rui Afonso, nem sinal de hagiografias. Uma decisão bastante acertada, diga-se de passagem, não só pela artificialidade que este tipo de narrativa engendra, mas também por uma questão de justiça, pois, como a própria leitura do livro deixa bem claro, Aristides de Sousa Mendes foi um homem de “carne e osso”, um homem simples – além de bom – e imerso nas contradições e vicissitudes de quem está dado na vida.

O primeiro retrato de Sousa Mendes que Rui Afonso pinta é o familiar. Nascido em Carregal do Sal, uma pequenina vila portuguesa no Distrito de Viseu, em 19 de julho de 1885, Sousa Mendes descendia de uma família aristocrata e fervorosamente católica. Estudou direito na Universidade de Coimbra e casou-se com sua namorada de adolescência, Angelina, prima em primeiro grau. Com ela teve uma prole numerosa, mesmo para os padrões da época: 14 filhos. O casamento, no entanto, como aponta Afonso, foi bastante problemático. “Em momentos de fúria, Aristides queixava-se do espírito limitado e provinciano da mulher, da maneira como ela cumpria os seus deveres sociais de esposa de um diplomata e dos seus pequenos acessos de injustificado ciúme”. (p.29). Para o autor, porém, a revolta de Sousa Mendes – que acabou encontrando as “virtudes” que faltavam em sua companheira na pele de uma jovem amante francesa – era injustificada. Angelina crescera em uma pequena aldeia, sem muito acesso à cultura ou a uma prolongada escolaridade. E após ter 14 filhos era natural que a esposa fosse muito mais dedicada ao universo familiar.

Por outro lado, mostra Afonso, Sousa Mendes foi um pai bastante zeloso e dedicado. Em 1916, por exemplo, ele foi obrigado a abandonar repentinamente o seu posto diplomático em Zanzibar, na África Oriental, para levar um de seus filhos, gravemente doente, a Durban, na África do Sul, episódio este que lhe custou uma advertência das autoridades portuguesas. O livro, por sinal, começa com o episódio em que Sousa Mendes, já cônsul-geral de Portugal em Bordeaux, mostrou todo o seu lado de pai protetor ao levar sua família para Portugal apenas 48 horas após a Inglaterra e a França, aliadas da Polônia, declararem guerra a Alemanha.

Profissional aplicado, Sousa Mendes entrou para a carreira diplomática em 1910, dois anos após licenciar-se em direito. Recém-casado, serviu como cônsul-geral na Guiana Inglesa (1910) e Zanzibar (1911). Experimentou colocações em Curitiba (1918-1919), São Francisco (1921-1924), Maranhão e Porto Alegre (1924-1926), Vigo (1927-1929), Antuérpia (1929-1938), até chegar a seu cargo mais importante: cônsul-geral em Bordeaux. E embora a carreira tenha se desenvolvido bem até o início dos anos 1940, ela nunca foi um mar de tranquilidade. A relação com o Ministério foi quase sempre delicada. Ele havia sido advertido em 1916 por se afastar sem autorização do cargo (quando seu filho esteve doente) e novamente em 1935 quando foi a Portugal para o enterro do sogro, o que lhe fez objeto de um processo administrativo. Além disso, Sousa Mendes foi afastado durante um ano do serviço ativo (1921-1922) por defender ideias antirrepublicanas.

Mas o que mais contribuía para a sua situação de fragilidade frente ao Ministério de Salazar foi a fama que seu irmão César, também diplomata, havia construído. Tão logo Salazar chegou ao poder em Portugal, em 1932, escolheu César para ser seu ministro dos Negócios Estrangeiros, de olho no apoio dos católicos. César começou, então, a fazer alguns ajustes na pasta que lhe fora confiada. Afastou diplomatas que ele “sentia deverem as suas posições mais aos seus ideais republicanos do que às suas aptidões diplomáticas” (p.19). Tal postura lhe rendeu desafetos, o maior deles o secretário-geral Luís Teixeira de Sampaio, monárquico como ele, mas que César acreditava incapaz para o cargo que exercia. Sampaio, por sua vez, tinha rejeição na mesma medida por César. E fez de tudo para desacreditá-lo junto a Salazar, acusando-o de perseguir diplomatas e de negligenciar assuntos correntes do Ministério. Conclusão: César foi demitido e sua reputação irreversivelmente manchada. Muitos de seus inimigos passaram quase que automaticamente a inimigos também do irmão gêmeo. “Atacar o irmão gêmeo, Aristides, era um modo que Sampaio e seus amigos tinham de atingir César Mendes. Por conseguinte, cada pequeno deslize de Aristides como diplomata era zelosamente registrado” (p.23). Alguns deslizes, conforme vimos, aconteceram ao longo da vida profissional de Aristides. Mas o episódio fundamental que lhe colocaria em dificuldades chegou justamente em seu posto mais importante, como cônsul-geral de Bordeaux, na França, do alto de seus 55 anos. Este é o ponto alto da carreira (e até mesmo da vida) de Sousa Mendes e o acontecimento, naturalmente, de maior destaque do livro do português Rui Afonso.

“Um Homem Bom” é dividido em 20 capítulos. Destes, oito (2 ao 10) são dedicados a contar aquilo que poderíamos chamar de desobediência humanista de Sousa Mendes. Portugal, embora neutro na Segunda Guerra Mundial, mostrou-se indiferente ao drama dos perseguidos pela Alemanha de Hitler. Desde 1938, circulares do Ministério dos Negócios Estrangeiros chegavam a todas as legações portuguesas no exterior restringido os vistos a judeus. Para Sousa Mendes, tais medidas eram inconstitucionais, uma vez que a constituição portuguesa não permitia discriminação religiosa.

A situação piorou significativamente em novembro de 1939. A Circular N.14, assinada pelo ministro dos Negócios Exteriores, o mesmo Luís Teixeira de Sampaio desafeto de César, determinava que os cônsules de carreira não poderiam conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério para os estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, aos apátridas, aos portadores de passaportes Nansen e aos russos. A restrição também deveria ser aplicada “àqueles que apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provêm, aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde provêm”. A publicação da circular coincidia, não fortuitamente, com o avanço de Hitler na Europa. Dinamarca, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, Holanda foram caindo um a um e, consequentemente, fazendo com que milhares de refugiados se dirigissem para países vizinhos ainda livres. No consulado português em Bordeaux, as filas eram intermináveis. Dia e noite.

Para Sousa Mendes, havia um grande dilema. O diplomata sabia que a Circular N.14 deixava em situação humanitária complicada justamente aqueles que eram os principais alvos da violência nazista. Por outro lado, sua autonomia havia sido tolhida. Oficialmente, a única coisa que poderia fazer era solicitar ao Ministério vistos para essas pessoas. O dilema se tornou ainda mais grave no início de 1940, com o avanço das tropas nazistas pela Europa. Os jornais só falavam no drama dos refugiados. Bordeaux, pontua Rui Afonso, havia se tornado la capitale de la peur, (“a capital do medo”). Em junho daquele ano, a população da cidade tinha passado de 300 mil para mais de 700 mil. “Misturados com a multidão de gente desesperada havia uma verdadeira plêiade de celebridades: destacadas figuras políticas, generais, diplomatas e artistas. Encontravam-se ali o romancista francês Julien Green, bem como o poeta francês Jaquces Audiberti e o pintor espanhol Salvador Dalí. A presença de todos esses notáveis, longe de ser tranquilizadora, contribuía para aumentar a atmosfera sinistra da cidade” (p.78).

Em meados de junho de 1940, quando o próprio governo francês já se encontrava isolado e refugiado em Bordeaux, Sousa Mendes tomou aquela que talvez tenha sido a decisão mais difícil de sua vida: “daria vistos a todos os que deles necessitassem, a todos que o pedissem. Não faria perguntas nem praticaria discriminações” (p.104). O que aconteceu nos dias seguintes foi uma das ajudas humanitárias mais impressionantes vista na história da Europa. Durante três dias, entre 17 e 19 de junho, Sousa Mendes, auxiliado por funcionários de confiança, trabalhou em regime de plantão. Emitiu milhares de vistos, autorizados e não-autorizados. Em passaportes ou simples pedaços de papel. Para judeus e não-judeus, pessoas com recursos e sem recursos. Intelectuais, artistas, mas também desconhecidos, pessoas simples, receberam sua ajuda. Para dar andamento mais rápido ao trabalho, o cônsul chegou a abreviar o próprio nome, assinando apenas “Mendes”. Mas a ajuda foi muito além. Aristides acolheu pessoas desabrigadas em sua casa e chegou a emitir passaportes falsos. Quando trabalhar em Bordeaux não se tornou mais possível, concedeu os vistos na cidade de Bayonne e o fez no hotel, no carro e até mesmo na rua.

A atitude de Sousa Mendes teve um custo altíssimo. O Ministério soube de suas ações e transmitiu ordens para que o cônsul-geral – visto por muitos como enlouquecido – retornasse imediatamente à Lisboa. A punição que recebeu do governo de Salazar por suas atitudes na França são contadas por Rui Afonso do capítulo 11 ao 19. Uma vez em Lisboa, Sousa Mendes se tornou réu de um agressivo processo disciplinar. Foi condenado a um ano de serviço inativo com metade do vencimento, ao qual se seguiria sua aposentaria (equivalente a um quarto de seu salário normal). Para o chefe de uma grande família, isso significava problemas financeiros graves.

Tentou recomeçar a carreira de advogado aos 56 anos, mas não conseguia trabalho. Quando devia quatro meses de mensalidade à Ordem dos Advogados, teve sua licença revogada. Estava em total desgraça quando, em 1945, foi vítima de uma hemorragia cerebral. Ficou com o lado direito paralisado por meses. Tentou lutar contra sua situação. Reivindicou por mais de uma vez uma audiência com Salazar, sempre negada por este. Acabou ainda fichado por participar de movimentos políticos contra a ditadura no país. Em 1948, perdeu Angelina, vitimada por uma hemorragia cerebral. Sousa Mendes passou a viver com ajuda da caridade. Contou com o auxílio da comunidade judaica para pagar o aluguel. Em 1953 foi processado por falta de pagamento das dívidas criadas nos últimos anos. Em três de abril de 1954 morreu de trombose cerebral.

No capítulo 20, em uma espécie de epílogo antecipado, Rui Afonso fala sobre a “luta pela reabilitação” de Sousa Mendes após sua morte. Esta reabilitação foi longa. De acordo com o autor, dois filhos de Sousa Mendes, Sebastião e Joana, começaram a “acionar as rodas da justiça”. Sebastião, ainda nos anos 1940, já tentava fazer conhecida a história do pai. Escreveu para vários jornais americanos, sempre desinteressados na história. Chegou a escrever um livro de memórias, ignorado pelas editoras. Somente em um 1961 conseguiu alguma vitória: um artigo no San Francisco Examiner. Foi um começo de uma mudança. Neste mesmo ano, o Yad Vashem, de Israel, informou a Joana que haviam sido plantadas vinte árvores em memória de seu pai nos terrenos do museu. Nos três anos seguintes, mais três importantes artigos sobre Sousa Mendes foram publicados. Em 1967, o Yad Vashem, novamente em atitude de reconhecimento, entregou à família de Sousa Mendes, em Nova York, uma medalha de honra. Entre 1986 e 1988, Sousa Mendes foi homenageado por várias sinagogas e organizações judaicas dos Estados Unidos.

Enquanto isso, em Portugal, mesmo com a fim da ditadura, em 1974, Sousa Mendes teve de esperar para ser reabilitado. O primeiro sinal do governo com essa possibilidade somente ocorreu em maio de 1987, quando lhe foi concedida a Ordem da Liberdade. Era a primeira vitória em casa em 47 anos de luta pela memória. Mas a redenção completa teve que esperar ainda um ano mais, quando uma moção de reabilitação foi acatada pela Assembleia e, por aclamação, Portugal finalmente honrou a memória de seu antigo diplomata humanista. A partir daí, os artigos sobre Sousa Mendes multiplicaram-se. Na década de 1990 foram publicados três livros de não-ficção, um romance e um documentário. “Em 1998, Sousa Mendes foi reintegrado a título póstumo no serviço diplomático português na categoria de embaixador. No mesmo ano foi nomeado cidadão honorário de Israel, uma honra que partilha com o herói do Holocausto sueco, Raoul Wallenberg”. (p.368) Além disso, foi homenageado em selos, moedas comemorativas, monumentos, ruas e até mesmo uma fundação.

“Um Homem Bom” oferece muitas reflexões. Mas a que talvez seja mais pungente, aquela que perpassa toda a leitura da biografia, diz respeito à posição de um funcionário público diante de ordens oficiais que deveriam ter sido tomadas. Curiosos notas que em vários julgamentos de nazistas e de colaboracionistas nazistas realizados no pós-guerra, a defesa dos réus quase sempre passava pelo mesmo argumento: haviam apenas obedecido ordens. O Estado, neste sentido, aparece como um organismo inescapável e intransponível. Mais até do que isso: surge como um centro irradiador de normas, regras, leis e procedimentos que devem ser cegamente obedecidos por seus funcionários. Ou pelo menos assim desejaram os executores do holocausto. A decisão tomada por Aristides de Sousa Mendes em maio de 1940 revela o desmonte desta zona de conforto epistemológica. Ele mostra que as leis podem ser oficiais, mas não necessariamente são morais. Muitas, inclusive, são imorais e criminosas. E os que as executam são, em boa parte, responsáveis pelas consequências desta obediência. Sousa Mendes optou por não seguir leis imorais. E mesmo que a repreensão do Estado tenha sido implacável, sua atitude mostrou que, para julgar atos imorais e fazer a diferença, basta que um homem seja bom o suficiente.

Outra reflexão importante que podemos depreender do livro diz respeito ao lugar do Holocausto no cenário contemporâneo europeu. Portugal levou um bom tempo para reabilitar seu antigo cônsul-geral em Bordeaux. Mas não foi o único a cometer esta injustiça. Outros homens bons, outros homens que igualmente desobedeceram a letra da lei, quando imoral, também foram ignorados ao longo de vários décadas no pós-guerra. Tal situação somente foi repensada no início deste século XXI. Conforme aponta Tony Judt, “o reconhecimento do Holocausto é o nosso ingresso para a Europa”.3 Todos os países que aspiram ou que já aspiraram entrar para a União Europeia tiveram antes que equacionar o seu débito e a sua mea culpa com o holocausto. Prova disso são as homenagens, memoriais, museus e um sem número de discursos públicos que buscam celebrar a vida daqueles que arriscaram tudo para salvar milhares de perseguidos pelo nazismo. Esse legado, do ponto de vista de um projeto político europeu em bloco, precisa ser assumido se existe o desejo de integrar uma comunidade comum e em dia com valores civilizatórios. Ainda de acordo com Tony Judt, a Europa prepara-se para deixar a Segunda Guerra Mundial para trás, mas antes de fazer isso, é necessário que seus países assumam a responsabilidade de zelar para que os crimes de genocídio vistos no passado não sejam ignorados ou subestimados, crimes cometidos por um grupo de europeus contra outro grupo de europeus.4 Somente com esta memória – ainda viva – o velho continente poderá bem-realizar sua proposta de bloco em plenitude. Sousa Mendes, neste sentido, é mais do que um passado, é uma promessa de garantia.

Notas

1 KOIFMAN, Fábio. Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. Editora Record, 2002.

2 SCHPUN, Mônica Raisa. Justa: Aracy de Carvalho e o Resgate de Judeus: Trocando a Alemanha Nazista Pelo Brasil. Editora Civilização Brasileira, 2011.

3 JUDT, Tony. Pós-Guerra – Uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p.769.

4 Ibidem, p.790.


Resenhista

Bruno Leal Pastor de Carvalho – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Bolsista CNPq.


Referências desta Resenha

AFONSO, Rui. Um Homem Bom. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011. Resenha de: CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. O diplomata que desobedeceu ordens- Aristides de Sousa Mendes e a ajuda aos perseguidos pelos nazismo. Revista Historiar, v. 04, n. 07, p. 81-88, 2012. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.