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Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios | Ciro Flamarion Cardoso

Produzida pelo professor/pesquisador Ciro Flamarion Cardoso, Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios, nos fornece uma ampla discussão no que se refere à teoria da História. Ao dialogar com diferentes tendências historiográficas, o autor promove uma série de debates em torno da questão de como se “fazer História”.

Com sua postura marxista, acredita que a História só possa ser interpretada através das condições materiais que compõem cada sociedade e não pela consciência, linguagem ou religião que cada uma possui. Apóia as primeiras gerações dos Annalles por privilegiarem as estruturas e a longa duração, refutando veementemente o positivismo por restringir-se apenas à história factual e a curta duração.

Num segundo momento de sua trajetória, debates entre as tendências pós-modernas, o neoconservadorismo e a História Cultural tornaram-se constantes. Segundo o autor, o pós-moderno surge com os problemas da modernidade e também com o intuito de preencher algumas lacunas deixadas pelo marxismo. Apesar de trazer algumas contribuições para a história estrutural, isso não reduz o seu papel de superioridade sobre as demais.

Sua obra se situará neste contexto, nos aspectos de estudos teóricos e metódicos. Publicada em 2005, é composta por um conjunto de ensaios os quais nos permitem refletir acerca das discussões de como a história pode ser vista em tempos atuais.

É notável a preocupação do autor frente a novas visões de tempo e espaço e a relação que estes estabelecem com a história, devido às variadas funções que exercem em diversas áreas.

Na vida moderna os acontecimentos se dão de forma muito rápida, o que faz com que fiquemos perdidos no tempo. Os meios de comunicação contribuem para isso, pois ao distorcer os fatos, ocasionará o que Cardoso irá chamar de “desnorteamento”. Dessa maneira, as pessoas acreditam viver em um mundo totalmente diferente do que já existiu, esquecendo-se do próprio passado.

Essa “falta” de referência origina um sentimento de “necessidade”, sugerida pelo autor como o nascimento de uma memória coletiva – recordações as quais todos acreditam ser. Foram criadas com esse propósito podendo ser modificadas de acordo com o contexto social de cada época.

É válido ressaltar que a noção de espaço precede a de tempo. Contudo, ao dialogar com estudiosos de outras áreas, serve-se do conceito de Supermodernidade do antropólogo francês Marc Augé, para tentar compreender esse “desnorteamento” imposto à sociedade, mesmo observando que este percebe o sujeito apenas no nível individual. (Cardoso, 2005, p. 47).

Ao elucidar questões que retratam a veracidade da narrativa histórica, o autor demonstra como historiadores tradicionais e atuais ocupam diferentes posições. Enquanto primeiramente acreditava-se existir uma relação entre narrativa e realidade, desde que almejadas algumas regras, recentemente algumas teorias afirmam que a narrativa não passa de produto de uma construção do imaginário. (Cardoso, 2005, p. 64).

Na atualidade, vários historiadores consideram a narrativa uma descontinuidade, pois acreditam que suas características estejam ligadas apenas aos textos e não ao mundo real. Cardoso se coloca contra essa descontinuidade, pois alega que a estrutura da ação é comum tanto à narrativa, quanto à realidade. Afirma que a vida não somente se vive, ela se relata, se conta o tempo todo: vivemos o relato, relatamos a vida. (Cardoso, 2005, p. 67).

É notável a importância do papel desempenhado pela linguagem na construção da narrativa histórica. Enquanto os historiadores tradicionais se ocupam em estabelecer uma sistematização dos fatos/relatos para encontrar uma verdade, os pesquisadores atuais, chamados pelo autor de anti-realistas, propuseram a desconstrução e a virada lingüística.

Estes historiadores tentam demonstrar que os textos históricos são manipuladores. Mas essa manipulação só é possível a partir da conversão do processo narrativo de primeiro nível para segundo nível, ou seja, de constitutivo para cognitivo.

Em um dado momento, o autor afirma que isto acarretará mudanças no conteúdo, pois a narrativa é prática antes de ser cognitiva e todo esse processo não se trata de uma reconstituição, mas de algo embutido na própria ação. (Cardoso, 2005, p. 69).

Quanto às sociedades complexas, Cardoso elucida teorias tanto de integração social, quanto aquelas que se referem ao conflito social. Coloca-se a favor desta última, pois as ações humanas passam a ser vistas no coletivo. O homem social agora é entendido como classe social e não mais como indivíduo. É também capaz de promover grandes transformações num curto espaço de tempo.

Ao demonstrar a evolução da historiografia, Cardoso a qualifica como uma atividade não-profissional durante a Antiguidade, devido à ausência de métodos. Nesse período as ações humanas não são valorizadas, pois tudo é atribuído aos deuses. Os relatos eram produzidos em forma de prosa e apenas as fontes orais e oculares eram aceitas.

Na Idade Média, várias transformações geram um caráter erudito e uma maior preocupação com os fatos, resultado do maior acesso aos livros proporcionado pela imprensa. Após o estabelecimento do Cristianismo, aquela visão cíclica é substituída por uma visão linear da história e tanto as ações humanas quanto a causalidade tornam-se valorizadas.

Na Idade Moderna o avanço das ciências rompe com o plano espiritual. Outras preocupações surgem com relação aos documentos, pois na tentativa de se estabelecer uma história abrangente, novos métodos são propostos o que faz surgir novas maneiras de se ver o mundo.

O que se pode dizer dessas novas correntes – Positivismo, Annalles, marxismo – é que todas se preocupavam em estabelecer teorias globais, explicando a sociedade através daquilo que lhe fosse comum, demonstrando a inexistência de fronteiras estritas entre as ciências sociais e respeitando a especificidade histórica de cada período. (Cardoso, 2005, p. 147).

Quanto a História Cultural, Cardoso a denomina como passageira, pois o mesmo que contribuiu para o seu fortalecimento, o caráter unilateral, será ingrediente para o seu enfraquecimento. A crítica segue mais além, pois o autor afirma que a História Cultural exclui várias visões para atender interesses individuais esquecendo-se do coletivo, fazendo com que o historiador se comporte como um “avestruz”.

Na última parte da obra, diferentes temas são abordados. Inicia-se traçando uma discussão em torno de questões como “identidade” e “nação”, apontando o que ambas poderiam ser e também o que diferentes pesquisadores vêem. Na etnografia aponta as divergências entre oralidade/escrita/leitura. Ao afirmar que a escrita precedeu a leitura, o autor estabelece uma relação entre o escrito e o oral, pois a escrita e as práticas a ela ligadas não passam de uma parte de algo mais geral: o conjunto dos mecanismos de controle que algum foco de poder trata de exercer sobre a sociedade, ou sobre parcelas dela (Cardoso, 2005, p. 202).

Na religião, devido à escassez de fontes, dois tipos de definições são estabelecidos: uma religiosa e outra funcional. Atualmente, o autor afirma não existir uma “verdade” com relação à religião, somente crenças. Estas organizam as massas devido ao caráter de “ideologia orgânica” que possuem. Assim,

A religião – um sistema simbólico orientando a ação com referência a supostos fins últimos e a uma também suposta realidade de ordem superior – define-se como uma ideologia, em conjunto com o sistema simbólico e institucional em que ela é partilhada e comunicada. (Cardoso, 2005, p. 229).

Nas artes, a hermenêutica não restringe sua preocupação com a obra, apenas no sentido de objeto, pois demonstra a relação íntima e necessária entre sujeito e objeto, transformando a prática artística numa totalidade em processo, em devir (Cardoso, 2005, p. 232). A ascensão da obra se dará na verdade do próprio diálogo.

O visado não é a verdade resultante duma argumentação, nem a verdade num sentido da correspondência entre o real e a ficção (ou entre o real e a representação), menos ainda a verdade científica: trata-se de um “jogo de verdade”, no qual só se determina a verdade quando e enquanto seja jogado. (Cardoso, 2005, p. 232).

Nesse jogo a linguagem ao ultrapassar a função de denominar coisas – metaforicamente falando -, assume definitivamente o caráter de quase-sujeito e quase-objeto, ao permitir novas visões de mundo.

Embora a hermenêutica se preocupe com os elementos “estéticos”, tratando a arte em geral, sua influência é notável na Psicanálise, na qual o foco é o processo de criação, o qual não procura dar sentido à obra, mas sim compreender como tal sentido pôde produzir-se. A interpretação histórica também tece o mesmo caminho, pois enfatiza a contextualização necessária ao entendimento da obra de arte. (Cardoso, 2005, p. 234).

Ao teorizar as noções de sociedade e cultura, Cardoso demonstra como estas se relacionaram em diferentes perspectivas, para só depois apontar a sua própria definição. Entre os marxistas, tais noções não tinham o mesmo significado, porém suas relações eram próximas. Antropólogos e sociólogos se propuseram a dividi-las, onde os primeiros abarcariam os estudos referentes à cultura, enquanto os segundos se restringiriam apenas ao social. Quanto aos historiadores, as divergências só apareceram a partir do momento em que se criaram visões holísticas, primeiramente com a História Social e depois com a História Cultural, esta por sua vez, na tentativa de sobrepor-se a anterior dividindo-a em partes.

O autor admitindo não ser uma tarefa nada fácil se coloca contra esta última postura, pois tomar apenas os aspectos culturais como referência, delimita o campo das pessoas pensarem e se comportarem com o que fazem. (Cardoso, 2005, p. 259).

Traçando uma linha evolutiva do termo “cultura”, pode-se observar que primeiramente seu sentido era normativo. Depois de adquirir um caráter descritivo e de ser considerada por Kroeber como um discurso coletivo do tipo simbólico (Cardoso, 2005, p. 270), Cardoso a chamará de um conceito-obstáculo, o qual se auto-explica. Para ele,

(…) pode ser útil usar o conceito de cultura para designar os objetos materiais, as normas de comportamento e os processos de pensamento (bem como as produções deles resultantes) que reúnam certas condições: 1) serem elementos de um patrimônio social, historicamente produzidos por sucessivas gerações, assimilados e selecionados pela comunidade humana que os transmite de geração em geração; 2) terem um nível que ultrapasse o individual e cuja dimensão se torne efetivamente social (a descoberta de algum pensador ou cientista, guardada numa gaveta e não dada a público, enquanto permanecer assim não será parte integrante da cultura); 3) serem duráveis, o que é garantido pelo controle, sanção e pressão sociais, mais ou menos institucionalizados segundo os casos, o que de modo algum significa que sejam imutáveis. (Cardoso, 2005, p. 277).

Apesar dos avanços que esses estudos têm proporcionado e de alguns momentos focar elementos que a constitui, Cardoso crítica incessantemente a História Cultural. Não abre mão de sua postura marxista, pois a idéia de restringir a História somente a casos particulares, não deve sobrepor aquela de valorizar as estruturas.

É de extrema importância que todos possam ter conhecimento de como resultou o processo de evolução historiográfica. É nesse sentido que a obra se sustenta, pois é possível compreender como a linguagem pôde ser utilizada na construção do relato histórico, e também como o autor eleva o homem a um “ser” pertencente a uma classe social. Assim, acredito que sua contribuição não se restrinja apenas aos interessados na área de teoria e metodologia, mas sim, a todos que se iniciam num curso de História.


Resenhista

Fabrício Sant’Anna de Andrade – Acadêmico em História da Universidade Estadual de Goiás – UnU Itumbiara.


Referências desta Resenha

CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru, SP: Edusc, 2005. Resenha de: ANDRADE, Fabrício Sant’Anna de. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 3, n. 5, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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