Ubuntu: Educação, Alteridade e Relações Étnicos-Raciais / Ariosvalber S. Oliveira

Com a aprovação da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que tornou obrigatório nas escolas de todo o Brasil o ensino de História da África e cultura afro-brasileira como, a inclusão dos conteúdos de História e Cultura dos Povos Indígenas, além de atender a uma antiga e justa reivindicação; trouxe uma série de consequências para o Ensino de História em sua totalidade. As mudanças ocasionadas pelas respectivas leis ainda estão em processo e não influenciarão apenas educadores. Crianças, adolescentes, jovens, adultos entrarão e estão entrando em contato com o tema. O alcance das transformações pode ser grande – e muito positivo, devendo ser aceleradas ou adquirirem um ritmo mais lento, conforme a capacidade dos setores interessados em intervir no processo (LIMA, 2009, p. 149).

Contudo, vale salientar que o trabalho com História da África e Indígena como conteúdos curriculares dos cursos de graduação, pós-graduação lato sensu e stricto sensu e mesmo na educação básica não nasce no Brasil como resultado da imposição das leis mencionadas anteriormente, havendo histórias de mais longa duração que se relacionam diretamente com o cenário que hoje vislumbramos 1. Os ativistas do Movimento Negro reconhecem que a educação não é a solução de todos os males, porém ocupa lugar importante nos processos de produção de conhecimento sobre si e sobre “os outros”, contribui na formação de quadros intelectuais e políticos e é constantemente usada pelo mercado de trabalho como critério de seleção de uns e exclusão de outros.Ao colocar a diversidade étnico-racial e o direito à educação no campo da equidade, o Movimento Negro indaga a implementação das políticas públicas de caráter universalista e traz o debate sobre a dimensão ética da aplicação dessas políticas, a urgência de programas voltados para a efetivação da justiça social e a necessidade de políticas de ações afirmativas que possibilitem a efetiva superação das desigualdades étnico-raciais, de gênero, geracionais, educacionais, de saúde, moradia, e emprego aos coletivos historicamente marcados pela exclusão e pela discriminação (GOMES, 2011, p.112, 115).

Os negros brasileiros, assim como outros grupos étnicos postos à margem pela sociedade, resistem ao plano de ideais, papeis, condutas que se lhes pretende impingir. Desejam ver confirmadas sua história e sua cultura, tal como as herdaram e vêm reconstruindo em dolorosas relações que lhes são impostas. Pretendem ter reparadas as injustiças de que são vítimas e assim receber as condições devidas a todos os cidadãos de tomar parte da elite intelectual, científica, política. Logo, estas demandas precisam ser entendidas como indenizações devidas, pela sociedade, àqueles a quem ela tem impedido vida digna e saudável, trabalho, moradia, educação, respeito a suas raízes culturais, à sua religião. O pagamento da dívida precisa ser concretizado mediante políticas, organizadas em programa de ações afirmativas, que eliminem as diferenças sociais, valorizando relações étnico-raciais e culturais (SILVÉRIO, 2005, p. 146).

Ao pensarmos sobre os caminhos da introdução de estudos de História da África e História e Cultura dos Povos Indígenas do Brasil, devemos considerar no que tange à formação de professores, que estão lidando com um campo no qual os profissionais não apenas reproduzem, mas produzem reflexões, influenciam posturas e visões de mundo. Portanto, é fundamental estarmos conscientes que a formação de professores – regular e continuada – é item fundamental nesse processo de resgate da história afro-brasileira e dos povos indígenas para os estudantes brasileiros (LIMA, 2009, p. 152).

É comum que as imagens e representações reportadas sobre o assunto mantenham certa reprodução de estereótipos em relação a esses grupos étnicos. Muitas vezes, tais questões são reforçadas e disseminadas pela mídia e, até mesmo, em sala de aula, tornando-se um constante desafio abordá-las e redimensiona-las no ambiente escolar. Sendo assim, o livro Ubuntu: Educação, Alteridade e Relações Étnico-Raciais (2016) foi pensado como espaço de reflexão e como subsídio didático para profissionais da educação básica, estudantes de cursos de graduação, pós-graduação e demais interessados no assunto. Os artigos apresentados na respectiva obra buscam contribuir para a construção de um processo educacional pautado nas relações étnico-raciais.

Estão presentes em Ubuntu, textos que apresentam múltiplas perspectivas, entretanto, a reflexão em torno do processo de ensino de história e da cultura afrobrasileira e indígena perpassa todos eles. Os artigos trazem reflexões em torno da obra de escritores como Lima Barreto, discutindo aspectos sobre a literatura afrodescendente no Brasil, como sobre a obra de Monteiro Lobato, indicando traços de racismo em seus escritos e demonstrando que o aludido escritor era adepto das teorias eugenistas do seu tempo. Refletem sobre a poética negra e estabelecem os usos da mesma em sala de aula como uma possibilidade didática, atendendo as indicações preconizadas pelos temas transversais propostos através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).

Apresenta reflexões sobre os usos da internet e das tecnologias digitais pelos jovens na atualidade, demonstrando que as redes sociais podem se tornar grandes aliadas no processo de uma educação para as relações étnico-raciais, entre outros aspectos.

Vale ressaltar que este livro vem à tona em um delicado período da História do Brasil, marcado por fortes tensões sociais e plena ascensão de forças conservadoras, que compelem duros golpes ao processo democrático. Não obstante, o cenário de violência e desrespeito à dignidade humana do povo brasileiro faz-se presente há décadas no país. Por intermédio deste panorama, os organizadores justificam sua escolha quanto à utilização do conceito filosófico africano “Ubuntu” como título e fio condutor do mesmo:

Esta perspectiva pode ser compreendida como a percepção de que só existimos através do contato com o outro, na medida em que ‘uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas’. Logo, Ubuntu renova a necessidade de (re) pensarmos nossa relação com o outro e de sentirmos que somos afetados quando nossos semelhantes são ofendidos e humilhados. (OLIVEIRA et al., 2016, p. 12).

Ubuntu contribui no processo para uma educação inclusiva e emancipadora, visto que o indígena e o negro não podem continuar sendo identificados e ensinados meramente como o “outro”. Através desta perspectiva, estes são parte integrante de nós mesmos, das nossas vidas, parte constitutiva de nossa formação histórica e cultural, pois herdamos esta história e ela está presente no nosso dia a dia, no que fomos e somos enquanto indivíduos e sociedade.

Por fim, acreditamos que o processo de aprendizagem se dá em grande parte pela via da empatia – condição fundamental para uma mudança de atitude. A empatia é entendida aqui na sua acepção mais ampla, devendo proporcionar ao conhecimento um significado empático, tendo como chave da aprendizagem uma atitude caritativa, de interesse, estimulada, e desafiadora. Que possam agregar valores e contribuir para negar preconceitos e visões deturpadas. Esse é um importante objetivo que todos nós enquanto sociedade temos que atingir. E para abrir os caminhos de um novo tempo é necessário romper com os muros do preconceito, da negação. É preciso Ubuntu!

Notas

1 De acordo com Mônica Lima (2009), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Candido Mendes (Ucam) criaram respectivamente o Centro de Estudos Afro-Orientais em 1959, o Centro de Estudos Africanos em 1965, e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos, em 1973. A Ucam criou em 1996 o primeiro curso de Pós-Graduação lato sensu em História da África. E a UFBA fundou em 2005 o Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos (stricto sensu), com mestrado e doutorado, além de possuir desde longa data, uma linha de pesquisa sobre escravidão e liberdade no Programa de Pós-Graduação em História (LIMA, 2009, p. 150).

Referências

GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação brasileira: desafios, políticas e práticas. In: RBPAE – v. 27, n. 1, p. 109-121, jan./abr. 2011.

LIMA, Mônica. Aprendendo e ensiando história da África no Brasil: desafios e possibilidades. In: ROCHA, Helenice A. B; MAGALHÃES, Marcelo de S.; GONTIJO, Rebeca. (Orgs). A Escrita da História escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009, p.149-164.

SILVÉRIO, Valter Roberto. Ações Afirmativas e Diversidade Étnico-Racial. In: SANTOS, Sales Augusto dos. (Org.) Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: MEC/Secad, 2005, p. 141-163.

Giuseppe Roncalli Ponce León de Oliveira – Universidade Federal de Campina Grande giuseppedeoliveira9@gmail.com.

Marinalva Vilar de Lima – Universidade Federal de Campina Grande marinalva.v.lima@ufcg.edu.br.


OLIVEIRA, Ariosvalber de Souza et al. (Orgs.). Ubuntu: Educação, Alteridade e Relações Étnicos-Raciais. João Pessoa, PB: Ed. CCTA, 2016, 321p. Resenha de: OLIVEIRA, Giuseppe R. P. L. de; LIMA, Marinalva Vilar. Escritas – Revista do Curso de História, Araguaína, v.9, n.2, p.210-213, 2017. Acessar publicação original. [IF]

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