Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.
(Clarice Lispector)
Um dos temas mais recorrentes no campo das artes é o amor. Músicas, filmes, livros, por exemplo, quando falam sobre o amor, na maior parte das vezes, é em tom ficcional, especialmente, sobre as possibilidades de um amor romântico que se desenvolve quase como uma fantasia para aqueles que desfrutam do trabalho artístico.
É sobre o amor que a autora norte-americana bell hooks se propõe a refletir na obra Tudo Sobre o Amor: novas perspectivas (2020), livro publicado pela Editora Elefante. Trata-se de um convite à compreensão sobre o tema, para além do que os homens são capazes de falar sobre ele. Sim, bell hooks assumidamente em letras minúsculas. Uma das grandes vozes na contemporaneidade sobre questões como raça, gênero, educação e cultura contemporânea. Ela rompe com a ideia do amor romântico, semelhante a uma fantasia, o qual grande parte das pessoas almejam viver um dia, pautado pela atração física e ao sentimentalismo, o que é denominado de “caxetia”, segundo a escritora. O que hooks quer abordar ao longo do livro é a ideia de amor real, que evoque tanto o crescimento espiritual do indivíduo quanto o do próximo. O amor enquanto ação transformadora, permeando todo e qualquer relacionamento humano, desde a infância. O que ela chama de uma ética amorosa. Quando o indivíduo entende esse pressuposto, ele entende verdadeiramente o amor.
Logo na introdução, a crítica que é levantada recai sobre a falácia desse amor romântico, exigindo um debate mais profundo sobre o significado do amor nas nossas práticas e ações, contra “o cinismo [que] é uma grande máscara para um coração decepcionado e traído.” (hooks, 2020, p. 32). Dessa forma, a dor da decepção já nos torna cínicos em potencial, em relação ao amor.
Pensando sobre o amor no campo teórico, bell hooks nos chama a atenção para a falta de mulheres que se dedicam a essa análise, no campo não-ficcional. Mesmo consumindo mais esse tipo de leitura, elas tendem a ouvir o que os homens tem a dizer sobre o amor. Partindo desse pressuposto, uma das figuras mais conhecidas em fazer uma abordagem sociológica sobre o amor é o filósofo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, publicado no Brasil em 2003. O seu lugar de fala é privilegiado: um homem branco, europeu e acadêmico. Sua perspectiva é completamente diferente de bell hooks, cuja escritora parte de suas experiências pessoais para construir a sua obra: uma mulher negra, teórica feminista e ativista antirracista. Mesmo sendo norte-americana, o livro de hooks compreende os anseios da mulher contemporânea ocidental sobre as pautas amorosas.
Em Tudo Sobre o Amor: novas perspectivas, bell hooks dividiu sua obra em treze capítulos: 1) “Clareza: pôr o amor em palavras”; 2) “Justiça: lições de amor na infância”; 3) “Honestidade: seja verdadeira com o amor”; 4) “Compromisso: que o amor seja o amor-próprio”; 5) “Espiritualidade: o amor divino”; 6) “Valores: viver segundo uma ética amorosa”; 7) “Ganância: simplesmente ame”; 8) “Comunidade: uma comunhão amorosa”; 9) “Reciprocidade: o coração do amor”; 10) “Romance: o doce amor”; 11) “Perda: amar na vida e na morte”; 12) “Cura: o amor redentor”; 13) “Destino: quando os anjos falam de amor”. Vamos analisar brevemente sobre cada um dos capítulos, apontando as ideias centrais proposta pelas autora.
No primeiro capítulo o eixo central é sobre a necessidade de se falar sobre o amor e do que se entende sobre ele, cujas práticas ainda são aprendidas no núcleo familiar durante a infância, quase sempre recheada de abusos e negligências por agentes dessa instituição. Destarte, o significado usual do amor, em especial na sua prática, passa a coexistir com esses tipos de desvalorização do outro e de si mesmo. hooks fala sobre as suas próprias vivências, sobretudo, afirma que “recebia o que estava acostumada a receber – carinho e afeição, geralmente misturados com algum grau de grosseria, negligência e, em algumas ocasiões, franca crueldade” (hooks, 2020, p. 52).
Criamos uma noção de amor deformada, a partir do momento em que a nossa família se comporta de modo abusivo. A palavra amor se torna banalizada, uma vez que a prática violenta se esconde em detrimento do excesso de sentimentalismo.
A família se transforma na primeira escola do amor, onde as punições duras são aplicadas e naturalizadas pelos adultos, criando sentimentos confusos que oscilam entre a recompensa e a punição. Amor e violência, nesse sentido caminham lado a lado, em atos que se perpetuam por toda a vida dos indivíduos. Nesse sentido, a autora aponta para o processo terapêutico da compreensão e aprendizagem acerca do significado do amor, questiona ainda, a literatura que, segundo ela, “encoraja todo mundo a se adaptar às circunstâncias em que falta amor” (hooks, 2020, p. 52).
No segundo capítulo, hooks retoma o assunto inicial, das relações familiares que, através das negligências, prejudicam as experiências amorosas até a vida adulta. A intelectual chama a atenção dos pais que não oferecem uma disciplina totalmente amorosa aos seus filhos, em especial aos homens3 que são feridos durante a infância e ensinados a reprimirem os seus sentimentos e os dos outros. Nesta parte da obra, a autora toca em outra questão de extrema relevância, para pensarmos na abordagem da própria infância, a construção da ideia de amor, a partir de uma disciplina positiva, não àquela baseada no modelo de educação voltado para a punição. Reconhecer nossas ações, por intermédio do amor, garante os direitos das próprias crianças, pois segundo hooks: “sem justiça, não pode haver amor” (hooks, 2020, p. 72).
Não apenas as questões familiares são um grande empecilho para desenvolver as práticas amorosas, como também a importância das relações de gênero que a autora aborda ao longo de todo o seu livro, nos mostrando que o problema tem um vínculo com o histórico do patriarcado e, consequentemente, com a cultura machista.
Ainda sobre as práticas familiares, no capítulo “Honestidade: seja verdadeira com o amor”, as mentiras que aprendemos desde a infância, como uma forma de nos safarmos de problemas, também são praticadas na vida adulta, sobretudo nas relações amorosas. A mentira é encarada como uma forma de escapar da dor e obter poder, além de ser erroneamente visto como uma forma de não ferir o outro. Mais uma vez os homens são os principais prejudicados nessa relação, em que geralmente são pressionados a esconder e mentir sobre os seus sentimentos. Segundo a autora:
[…] A partir do momento em que os meninos pequenos são que não devem chorar nem expressar mágoa, solidão ou dor, que devem ser duros, eles aprendem a mascarar seus sentimentos verdadeiros. Na pior das hipóteses, aprendem a nunca sentir nada. Essas lições muitas vezes são ensinadas a meninos por outros homens e por mães machistas. (hooks, 2020, p. 80)
Entretanto, não é só para esconder as suas vulnerabilidades que os homens são ensinados a mentir. Ter domínio sobre o outro, sobretudo mulheres, também é pautada pela mentira, onde se revela os privilégios masculinos, cujas mentiras são toleradas pela sociedade patriarcal. Com a inserção da mulher no mercado de trabalho, nas últimas décadas, o homem se apropriou da mentira dentro dos relacionamentos como uma forma de dominação e omissão de suas responsabilidades, segundo a autora. Todavia, o ato de mentir na relação não é uma característica predominantemente masculina. As mulheres se utilizam da mentira como forma de manipulação ou elevar a autoestima masculina, cuja prática bell hooks chama de “feminilidade patriarcal”: Os homens sempre mentiram para evitar confrontos ou ter que assumir as suas responsabilidades por comportamentos inadequados.
[…] Homens aprendem a mentir como forma de obter poder, e mulheres não apenas fazem o mesmo como também mentem para fingir que não têm poder. (hooks, 2020, p. 78-79)
Dessa forma, a mentira é prejudicial para ambos os sexos, e é tratada pela autora como um problema de gênero, uma vez que reforçamos velhos estereótipos e práticas machistas, além de que a mentira nos afasta cada vez mais do amor. bell hooks finaliza o capítulo chamando a atenção para as mulheres que na teoria não querem mentiras nos relacionamentos, mas, que na pratica se recusam a escutar a verdade para se sentirem melhores, ao passo que encaram o amor como uma grande fantasia. Ou seja, aprendemos a mentir para agradar aos outros e quando a verdade se faz presente é vista como punição.
No próximo capítulo, a autora se debruça em um dos temas mais tratados no mundo contemporâneo: a busca pelo amor próprio que, segundo hooks, é uma junção de “confiança, compromisso, cuidado, responsabilidade, conhecimento e responsabilidade” (hooks, 2020, p. 94). Sobretudo, o amor próprio não se desvencilha do compromisso de se dizer a verdade.
Partindo dos pressupostos acima, só recuperamos o nosso amor-próprio se vivermos conscientemente e de modo crítico, a fim de bloquear a desvalorização e os pensamentos negativos. Essa é uma tarefa árdua, uma vez que o machismo mina as mulheres perante a sua autoafirmação para garantir a dos homens. A autora inclusive traz a questão do amor para o mundo do trabalho e como ele deve estar presente em todas as esferas de vida das pessoas, fortalecendo o amor-próprio. Ambientes de trabalho pautados em abusos de ordem moral são capazes de minar esse amor-próprio e, por isso, se estende para a vida particular do indivíduo. Assim, ela cita a violência doméstica, como uma espécie de compensação dos homens à exploração, desumanização e dominação a que são submetidos no mundo do trabalho, esperando que também nas relações íntimas lhes restaurem a equiparação do senso de poder com a noção de masculinidade, esse debate também se encontra no capítulo 09, da obra Teoria Feminista: da margem ao centro (Perspectiva, 2019).
No quinto capítulo, de Tudo sobre o amor, Espiritualidade: o amor divino – bell hooks nos alerta para a prática do new age e dos livros de autoajuda. Nesse processo de construção do amor, essas ferramentas devem ser adotadas criticamente uma vez que tanto no processo de autoestima quanto no crescimento espiritual, o foco adotado é sempre a individualidade. E o amor precisa florescer nas práticas coletivas.
Outro aspecto importante, quando se fala sobre o crescimento espiritual, é o fanatismo religioso que muitas vezes corrobora com a manutenção de práticas machistas, racistas e homofóbicas. Para a autora, a vida espiritual é a força interna que nos guia e nos direciona, além de partir do pressuposto de que o amor é tudo e, na condição de construção, não se desmancha no ar.
Nesse aspecto, o amor também é uma ética livre de obsessões e dominações, conforme a autora prega em “Valores: viver segundo a ética amorosa.” Nesse sexto capítulo, que é a chave central do livro, a ética amorosa combate a falsidade e alimenta a vida espiritual, cujas culturas de dominação nos faz sentir medos o tempo todo. A autora começa dizendo que “Despertar para o amor só pode acontecer se nos despegarmos da obsessão pelo poder e pela dominação” (hooks, 2020, p. 123). Como isso seria possível na atual sociedade em que vivemos? A autora aponta para um esforço coletivo de mudança, citando Eric Fromm, quando ele diz que são necessárias mudanças em nossa estrutura social para que o amor se torne um fenômeno social e não individualista. Neste capítulo, ela faz um breve apontamento sobre a questão racial, como um problema a ser enfrentado sob a égide do amor, que possibilita aos indivíduos o enfrentamento da uma vida a serviço da justiça e da liberdade. Ainda sobre a violência doméstica, sobretudo contra as mulheres, hooks traz uma questão importante, levantando o fato de que é fácil se dizer contra a violência doméstica, porém é preciso agir além dessa posição, hooks afirma que, para lutar contra essa dimensão da violência, é necessário desafiar o patriarcado, apontando sempre que homens não devem ter mais direitos e privilégios que as mulheres, especialmente por fatores calcados em justificativas biológicas. Sim, é preciso quebrar a ideia de dominação e controle para compreender a ética amorosa. Pois, o medo vem como forma de dominação e controle, e devemos ser resistentes para poder nos conectar ao outro. Somente o amor é capaz de aniquilar o dominado e o denominador, para minimizar e extinguir os danos de uma sociedade patriarcal.
Em “Ganância: simplesmente ame”, um dos capítulos mais importantes da obra, a autora trata do narcisismo e do materialismo como impossibilidades de se chegar até o amor. Este último é substituído pelas práticas de posse, como uma forma de satisfação imediata, em que somos subjugados à própria ética do consumo.
Para compreender esse imbróglio, hooks percebe que a sociedade norte-americana teve uma mudança de percepção e de valores na passagem da década de 1960 para a de 1970. O movimento hippie pregaria a harmonia das relações, a coletividade e a atmosfera de paz e amor em um caráter efêmero e hedonista. Além disso, começam a eclodir os movimentos feministas, negros e dos homossexuais para subverter a ordem patriarcal da sociedade, porém, muitas vezes, sem discutir o amor como instrumento de emancipação e promotor da justiça social. Contudo, com a abundância econômica e o fim da Guerra do Vietnã e dos movimentos hippies, fortaleceram a adoração do materialismo e o sentimento de posse. O amor passa se reafirmar fragmentado e instrumento da fugacidade e do consumo: é necessário possuir o outro e se satisfazer rapidamente:
Essa mesma política da ganância está em jogo quando as pessoas buscam o amor. Com frequência, elas querem satisfação imediata. O amor verdadeiro raramente é um espaço emocional em que as necessidades são recompensadas instantaneamente. Para conhecer o amor verdadeiro, temos que investir tempo e compromisso. (hooks, 2020, p. 147)
A ganância nos faz encarar o amor como algo rápido, sem precisar em investir tempo e compromisso. Na prática capitalista ninguém quer se doar para o amor, queremos satisfação imediata, além de desumanizar o outro, uma vez que se o relacionamento está com problemas é melhor buscar um outro parceiro do que procurar entender o que está acontecendo. Fazemos parte então, em especial mulheres, de uma cultura de trocas.
Este capítulo se aproxima do texto de Bauman, em Amor Líquido, ao pensar em como lidamos com o amor na modernidade. A liquidez das relações se sobrepõe à solidez das instituições amorosas: as incertezas, o hedonismo e o prazer rápido pautam as relações contemporâneas:
Compromissos do tipo “até que a morte nos separe” se transformam em contratos do tipo “enquanto durar a satisfação”, temporais e transitórios por definição, por projeto e por impacto pragmático – e assim passíveis de ruptura unilateral, sempre que um dos parceiros perceba melhores oportunidades e maior valor fora da parceria do que em tentar salvá-la a qualquer – incalculável – custo. […] laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. (BAUMAN, 2003, p. 187)
Bauman também enxerga o capitalismo como responsável pela fluidez das relações, assim como acontece com bens e mercadorias. É a satisfação do “eu” que importa nas relações gananciosas, onde existe a substituição do narcisismo saudável (construção e valorização do amor-próprio) para o narcisismo patológico, segundo bell hooks.
Esse narcisismo patológico, a satisfação cega e facilmente obtida na descaracterização e alienação do outro, e a extrema valorização individual esfarela o senso de comunidade, aspecto este que é fundamental para se criar uma cultura amorosa, conforme trabalhado no capítulo “Comunidade: uma comunhão amorosa”. A autora afirma que no âmbito familiar todos devem desempenhar um papel importante, mas o que ocorre é que as famílias são autocráticas, espaço social no qual o protagonismo recai sobre a figura masculina.
Não só a família representa a noção de comunidade, mas as nossas amizades também são terrenos férteis para a prática do amor. Contudo, esses laços de amizade são enfraquecidos sobretudo com a chegada de um parceiro amoroso, que é erroneamente considerado como a forma mais importante das relações. Para hooks, isso é danoso para a prática do amor, pois temos mais facilidade de perdoar o parceiro amoroso, mas não temos a mesma atitude com as nossas amizades. Por fim, a ideia de amar deveria ser além das relações românticas.
Nos dois próximos capítulos, intitulados de “Reciprocidade: o coração do amor” e “Romance: o doce amor”, a autora analisa o amor no campo da fantasia, já criticado na introdução do livro. O primeiro capítulo se dedica a falar sobre a “Síndrome Peter Pan”, ou seja, a recusa do homem em crescer e adotar um relacionamento que a parceira faz o papel de mãe. Nesse caso, o sujeito também é fruto de práticas machistas, pois estes não recebem o apoio do patriarcado, carregando até mesmo problemas durante a infância, por supostamente demonstrar fraqueza quando decidem não esconder os seus sentimentos.
A autora nos convoca a concentrarmos nossa atenção a um dos elementos essenciais do amor: a reciprocidade, que consiste na capacidade de escutar o outro, o que favorece a conexão. Também devemos entrar em contato com a nossas próprias dores e saber expressá-las.
Sobre a fantasia do amor romântico, ela ocorre justamente porque construímos nosso self durante a vida adulta, como ressonância de uma infância problemática, conforme explica bell hooks:
Muitas pessoas que buscam o amor foram ensinadas na infância a se sentirem indignas, a sentirem que ninguém poderia amá-las como realmente eram, construíram um falso self. Na vida adulta, elas conheceram pessoas que se apaixonam por esse falso self. (hooks, 2020, p. 199)
Portanto, não criamos fantasias apenas no amor. A construção desse self acaba gerando decepções entre os parceiros, quando a verdadeira construção de si aparece com o tempo. Reside-se assim a diferença entre paixão e amor, sobretudo quando levamos em conta o velho clichê do “amor à primeira vista”, onde a atração física é confundida com sentimentos mais profundos e se transformam em um catalizador de conexões íntimas.
Em “Perda: amar na vida e na morte”, o luto é encarado como tragédia, mas na prática do amor deveria ser uma celebração, pois “o amor nos empodera para viver plenamente e morrer bem” (hooks, 2020, p. 227), ou seja, o luto visto como categoria ético-política, para além da dimensão clínica (cf. RODRIGUES, 2021). O luto é usualmente visto como um sentimento negativo, onde se arrepende por aquilo que não foi feito em vida, porém, o luto nos prepara para a despossessão, amor não é posse.
hooks nos mostra que as possibilidades do amor são amplas e se estendem não só na morte, mas pela cura. O amor vem da comunhão. Este afeto, de construção progressiva, não pode se constituir de forma solitária que nos transforma em pessoas egoístas e narcisistas. Se o medo de amar nos torna cínicos em relação ao assunto, a fé e a esperança podem nos livrar desse sentimento e que impede a traçarmos o caminho do amor. Temos que desfazer a naturalização social que nos faz sentir medo, tormento e angústia. Além de almejar sempre ter o controle sobre os nossos sentimentos e sobre o outro. A vulnerabilidade não deve ser tratada de forma vergonhosa. Essas questões são tratadas no penúltimo capítulo “Cura: o amor redentor”.
Para encerrar o seu percurso do enfrentamento acerca do tema do amor, a autora fala sobre a ideia do anjo na nossa sociedade, cuja imagem criada é de um ser inocente e que não carrega culpa, além de nos entregar notícias que acalentam o coração. Os anjos são ligados nos sentimentos de amor, pois nos auxiliam do crescimento espiritual e estimula a nossa fé. Os anjos, conforme hooks explica, não estão apenas ligados às figuras religiosas. Eles são encontradas em livros, amizades e até mesmos nas nossas vozes internas que falam ao coração. O amor é o nosso verdadeiro destino e não devemos nos considerar indignos para vivenciar esse sentimento.
Tudo sobre o amor atinge um público mais amplo e não tem nenhum capítulo destinado exclusivamente a relação do amor e a negritude, onde este último tema é intrínseco as obras de bell hooks. Entretanto, a autora já dedicou um artigo que parece ser uma continuação do livro, para trabalhar essa questão. Em Vivendo de Amor, a escritora fala sobre a distância da mulher negra com as práticas amorosas e que elas acontecem desde o período colonial, através da agressão e da dominação que dificulta o processo de crescimento espiritual:
O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. (hooks, 2010, p.1)
Durante o próprio processo colonial as mulheres negras passaram por violências que as fizeram resistir ao amor, o que ressoa até os dias de hoje. Esse artificio, a repressão emocional, foi por elas apropriado, como uma forma de resistência. A busca por suprir as necessidades materiais colocou em segundo plano a dimensão emocional.
Vivendo de amor se transforma em uma espécie de capítulo de Tudo sobre o amor. Não existe formulas e tampouco segredos para se conhecer os caminhos do amor. O que precisa ser feito é subverter certas dinâmicas sociais extremamente danosas, como o patriarcado, o capitalismo e o racismo. O caminho é árduo. E o amor, conforme bell hooks nos mostra, é uma construção longa e coletiva, que deve ser pensado criticamente, pois ele, o amor, é sim uma arma poderosa capaz de transformar todos os aspectos da vida, seja no âmbito coletivo, da comunidade, político, social, o mundo do trabalho, e mesmo na vida privadas, das relações familiares, domésticas e as relações mais intimas. Sim, “O amor é o que o amor faz”, se partirmos, conforme ela demostra em todo o livro da ideia de liberdade e justiça. Lutemos!
Nota
3 A participação da mídia, através de programas de televisão e filmes, reforça a ideia de amor e punição nas relações familiares, atesta bell hooks, em seu segundo capítulo. A autora afirma que esse vínculo ressalta um modelo de comportamento inapropriado. Entretanto, a título de curiosidade, citamos aqui um documentário produzido pela Netflix, chamado The Mask You Live In (2015), dirigido por Jennifer Siebel Newsom. O enredo da série exibe a toxidade presente na sociedade patriarcal, seja através das relações familiares, nas vivências escolares e com os amigos. Esse tipo de vínculo e seus desdobramentos são prejudiciais nas formações sociais dos homens, sobretudo no tocante ao psicológico e a capacidade em lidar com os próprios sentimentos.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
HOOKS, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.
HOOKS, bell. Vivendo de Amor. Portal Geledés, São Paulo, 9 mar. 2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor . Acesso em: 20 out. 2021.
RODRIGUES, Carla. O luto entre a clínica e a política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
Resenhista
Grace Campos Costa – Mestra em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil, na linha Linguagem, Estética e Hermenêutica. Membro do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (Nehac). Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3230047528753742. E-mail: gracecamposcosta@gmail.com
Leilane Oliveira – Graduada, mestre e doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil. Atualmente é professora concursada da Secretaria Estadual de Ensino de Minas Gerais e da Prefeitura Municipal de Uberlândia, atuando nesta última como Gestora Escolar. É pesquisadora no Núcleo de Estudos em História Social da Arte da Cultura (NEHAC). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4712467144718875. E-mail: leilaneoap@gmail.com
Referências desta Resenha
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020. Resenha de: COSTA, Grace Campos; OLIVEIRA, Leilane. O amor é uma construção: considerações acerca de “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” (2020), de bell hooks. Albuquerque. Campo Grande, v. 13, n. 26, p. 194- 201, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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