O livro Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile, do historiador italiano Piero Brunello, publicado em 2020 pela Editora Cierre Edizione, tem muito a nos dizer sobre Santa Catarina, a imigração dos italianos no Sul de nosso estado (mais precisamente nas colônias de Urussanga, Grão-Pará, e Nova Veneza), o rapto de crianças indígenas e as expedições que massacraram a população dos Botocudos/Laklãnõ-Xokleng na região, durante o final do século XIX e início do século XX. Mas, essas não são afirmações genéricas do nosso passado, na tentativa de buscar responder ausências no que tange à região e que, muitas vezes, foram compartimentadas em temáticas pela nossa historiografia. A ideia aqui se apresenta muito mais do que fazer uma história da colonização, da imigração italiana ou da história de como os Botocudos/Laklãnõ-Xokleng foram perseguidos durante a colonização de Santa Catarina; já que é o encontro entre todas essas dinâmicas e temáticas que dá o tom do livro.
Piero Brunello é um historiador italiano e professor aposentado de História Social da Università Ca’ Foscari di Venezia. Durante sua trajetória profissional, pesquisou sobre diversos temas: emigração/imigração, escrita, história urbana, cultura popular, música e anarquismo. Entre as diferentes publicações de sua carreira, encontram- -se, principalmente, Pionieri: gli italiani in Brasile e il mito della fronteira (1994), Storie di anarchici e di spie: polizia e politica nell’Italia liberale (2009) e Colpi di scena: La rivoluzione del Quarantotto a Venezia (2018). Apesar de ter estudos sobre o Brasil e a emigração/imigração de italianos no nosso país, nenhuma de suas obras foi traduzida para o português. Por esta via, o interesse de um historiador italiano por Santa Catarina pode suscitar críticas, positivas ou desfavoráveis, uma vez que um olhar estrangeiro pode trazer tanto uma contribuição interessante às questões que não foram pensadas ou ditas pela historiografia catarinense, quanto assustar, por poder representar mais uma perspectiva europeia interessada no “excepcional”.
De qualquer modo, Trofei e prigionieri não é a única produção que coloca como aspecto principal o contato entre os indígenas e o movimento de colonização em Santa Catarina. Sobre essa história, há destaque os livros de Luisa Tombini Wittmann, O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no vale do Itajaí/SC (2007), e de Silvio Coelho dos Santos, Índios e brancos no sul do Brasil (1973). O livro de Pierro Brunello distingue-se da primeira obra pelo seu recorte temporal (últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX), espacial (sul de Santa Catarina), do grupo étnico: colonizadores e imigrantes (italianos) e do enfoque, a partir da fotografia reproduzida em livro na Itália. Da segunda, por sua vez, distancia-se pelo seu objetivo historiográfico e preocupações explícitas com a fonte fotográfica à qual busca oferecer respostas.
Também se diferencia das produções provenientes da história da presença indígena dos Botocudos/Laklãnõ-Xokleng em Santa Catarina, como nas pesquisas de Silvio Coelho dos Santos (1973, 1997), Rodrigo Lavina (1999) e Jackson Alexsandro Peres (2014), entre outras, uma vez que seu objetivo não é o modo de vida, as práticas culturais e sociais, as invisibilidades e as experiências deste povo no passado. Por outro lado, apesar de não ter como escopo a presença indígena, de certa forma, expõem a existência da população Botocudos/Laklãnõ-Xokleng na colonização da região, registra a situação das crianças raptadas, busca informações ou questionamentos acerca de uma dessas crianças, e demarca as narrativas sobre as violências cometidas.
Partindo de uma fotografia (que as narrativas dizem ter circulado na região), esta é a primeira pesquisa de fôlego que aborda a perspectiva do processo de colonização nas colônias de imigrantes do sul do estado em relação aos Botocudos/Laklãnõ- Xokleng. De certa forma, o livro nos faz pensar sobre a necessidade de realizarmos pesquisas historiográficas aprofundadas, tendo como recorte espacial essas colônias, as reproduções fotográficas sobre as violências acometidas e o fato, assinalado pela historiadora Cristina Scheibe Wolff, e apontado no livro aqui resenhado, de que precisamos confrontar o discurso oficial de um estado que quer se mostrar branco, homogêneo e (adiciono aqui) com a história de uma colonização pacífica.
O livro começa a partir de perguntas e questionamentos colocados pelo autor em função da fotografia a que teve acesso durante os anos de 1980 (quando escreveu a sua tese de doutorado sobre o mito da fronteira no sul do Brasil)1 e que, muitos anos depois, foi considera por alguns historiadores como uma fotomontagem. Trata-se da fotografia publicada em 1904, no livro Colonos e Missionários Italianos na Floresta do Brasil, do Padre Luigi Marzano,2 que se encontra na capa do livro de Brunello, e que adiciono adiante. Na fotografia, é possível ver dez homens em pé com objetos indígenas nas mãos e três crianças indígenas (uma no colo e duas em pé na frente dos homens). As perguntas colocadas são muito simples, mas bastante pertinentes, e nos fazem pensar sobre os aspectos sociais das interações entre colonos (em sua maioria italianos) e autóctones, como: “É possível que alguém se reconhecesse naquela fotografia? Existem informações sobre as crianças?” (BRUNELLO, 2020, p. 9, tradução nossa).3
O texto é claro e de fácil leitura. Feito em camadas, de modo que a cada nova página se descobre um detalhe a mais sobre a fotografia e “os troféus e os prisioneiros” (que intitula tanto o livro resenhado aqui, quanto parte da legenda de uma das reproduções da fotografia realizada em 1978, no livro de Agenor Neves de Marques). Porém, como nos lembra o autor “as coisas acontecem mesmo que não haja fotógrafos à mão” (BRUNELLO, 2020, p. 37, tradução nossa).4 Por isso, para além da fotografia e da discussão a que se propõem em torno dela (como se ela é uma montagem ou não), o historiador nos lembra sobre os bugreiros,5 as práticas de conflito, as expedições para “afugentar índios”,6 a participação ativa dos colonos e dos proprietários de empresas colonizadoras em massacres, o rapto das crianças indígenas e as suas respectivas “adoções”, entre outras coisas.
São onze capítulos sintéticos (com no máximo 15 páginas cada), permeados por fotografias (tanto de livros de memórias, quanto de situações similares) e mapas, que narram de maneira cronológica o que apresento aqui: a história do livro do Padre Luigi Marzano; a reprodução da fotografia registrada no livro de Marzano e de outras fotografias do livro; a prática de ataque às vilas dos Botocudos/Laklãnõ-Xokleng no sul de Santa Catarina; o projeto de conversão dos indígenas por meio da catequização e a participação dos padres italianos nesse projeto; as crianças “adotadas”, levantadas por meios de registros de batismos e de morte; Francisco Topp Xavier (uma das crianças adotadas) com sua pequena trajetória e ausências; as narrativas da fronteira e as justificativas das violências muitas vezes apresentadas pelos memorialistas; a identificação escrita em um livro de memória (por um membro da família) de uma das pessoas da fotografia; o debate sobre a autenticidade (ou não) da fotografia; os detalhes e a possibilidade de se tratar de uma fotozincografia;7 e algumas digressões a respeito de um possível fotógrafo.
Em um trabalho de micro-história, o local (mais especificamente as colônias já anunciadas previamente, do sul de Santa Catarina), o transnacional (trânsitos locais e globais como, respectivamente, a circulação na região e a imigração italiana do século XIX), e os jogos de escalas (entre o que acontecia na região e o que era possível também ser encontrado em Santa Catarina) estão presentes. Estas dimensões permitem tanto a atenção à especificidade do sul de Santa Catarina durante o período (que é o grande destaque da obra) quanto pensar uma dimensão ampliada das interações (de violência com as expedições ou com o rapto de crianças indígenas) entre a colonização e a população autóctone; que, em outras palavras, estão presentes no subtítulo do livro “uma foto de lembrança da colonização no Brasil”.8
Também são muitos os personagens da história catarinense que “aparecem” e “fogem” aos olhos do historiador, como o Padre Luigi Marzano (padre italiano de Urussanga entre 1899 e 1908), Padre Francisco Topp (pároco de São Ludgero, Tubarão e Florianópolis entre o final do século XIX e início do século XX), Michele Napoli (administrador da Colônia de Nova Veneza), Natale Coral (imigrante italiano e bugreiro), Acary e Francisco Xavier Topp (indígena botocudo capturado nas expedições), Luigi e Pietro Baldessar (imigrantes italianos que aparecem como partícipes de expedições), Etienne Stawiarski (diretor da colônia de Grão-Pará, de 1895 a 1942), Bernardino de Sena Campos (telegrafista em Araranguá), entre outros. Mas, como as fontes nem sempre oferecem respostas aos questionamentos que colocamos, ora o historiador consegue assinalar suas existências ora apenas nos lança perguntas a partir de suas ausências; neste aspecto, têm destaque as informações acerca de Francisco Xavier Topp.
As fontes utilizadas são distintas e significativas, o que assinala um laborioso empenho em diferentes arquivos e países, como Brasil,9 Itália e Alemanha. As fontes contemplam desde livros de memórias da família, registro de batismos e morte, livros tombo das colônias de Grão-Pará, Urussanga e Tubarão, texto datilografado de Cesare Sartori, diários (como aqueles de Bernardino de Sena Campos), periódicos (de Florianópolis, Laguna e Rio de Janeiro), fotografias (reproduzidas em livros ou encontradas em arquivos italianos), correspondências, processos de adoção da Comarca de Tubarão, registros de chegadas de imigrantes, entre outras. Principalmente, tem notoriedade o levantamento elaborado pelo autor a partir dos registros de batismos e mortes, nos quais é possível visualizar o registro de “adoção” das crianças indígenas raptadas nas expedições. Este levantamento encontra-se, precisamente, nos capítulos Bambini Rapiti e Cagonh, diventato Francisco Xavier. Além disso, a discussão sobre as fontes também traz um elemento importante acerca do debate sobre a verdade (simbólica e factual) e o conhecimento técnico sobre a reprodução de fotografias, desenvolvido pelo autor a partir da colaboração técnica de amigos historiadores de fotografias.
É incontestável que se trate de uma obra de história social que apresenta também diversos pontos da história cultural. Nesse sentido, dois aspectos merecem destaque: o cuidado de lembrar das masculinidades, ao falar sobre a justificativa dada por um descendente em relação às expedições para “afugentar índios”, e a situação de violência (por meio das pesquisas das historiadoras catarinenses Cristina Scheibe Wolff e Luisa Tombini Wittman) sofridas pelas mulheres indígenas “pegas ao laço” (BRUNELLO, 2020, p. 69 e p. 106). Em outras palavras, o autor não só se preocupa com as violências contra as mulheres (muito comumente associada com pesquisas em gênero), como também lembra dos modelos de virilidade presentes ao associar que “um massacre indígena e o sequestro de crianças poderia ser justificado, mas não igualmente admitido sem uma dúvida sobre a descendência paterna” (BRUNELLO, 2020, p. 106, tradução nossa).10
Como historiadora, minha crítica à obra reside na falta de indexação das notas de rodapé, que são apenas colocadas no final de cada capítulo e sem uma vinculação direta às frases, trechos e fontes citadas. A não indexação deixa o texto mais fluído, o que é uma boa característica do livro, mas, por outro lado, não dá muita chance ao(a) leitor(a) da possibilidade de pesquisa e vinculação direta das falas às suas fontes. Nesse sentido, algumas vezes, ficamos com dúvidas se as frases utilizadas se constituam opiniões do autor ou impressões retiradas a partir das fontes; tais questões seriam facilmente resolvidas pela indexação das notas de rodapé. Também considero que faltou um aprofundamento maior (ou seus respectivos questionamentos) acerca da maneira como os padres Luigi Marzano e Francisco Topp viam os Botocudos/Laklãnõ- -Xokleng, e de como o estado de Santa Catarina se colocava diante da violência contra as populações indígenas.
Por outro lado, o livro Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione di Brasile é uma importante leitura sobre a história da colonização em Santa Catarina durante o final do século XIX e início do século XX, traz significativas contribuições quanto às relações estabelecidas entre os colonos (imigrantes) e a população indígena e para a historiografia do nosso estado. Além disso, abre tanto a possibilidade de novas perguntas concernentes à região estudada pelo historiador, quanto sobre novas pesquisas que coloquem em debate as temáticas escolhidas. Nesse sentido, o livro Trofei e prigionieri é uma leitura indispensável para quem busca entender a colonização no sul do Brasil e se interessa em saber sobre a interação entre colonos e indígenas.
Notas
1 Trata-se de pesquisa que deu origem à publicação do livro Pionieri: gli italiani in Brasile e il mito della frontiera em 1994.
2 O livro foi publicado na Itália em 1904. A primeira publicação em português foi feita em 1985, por meio de tradução de Padre João Leonir Dall’Alba, pároco em Orleans (um dos municípios criados a partir da Colônia de Grão-Pará).
3 No original: “ È possibile perciò che qualcuno si sia riconosciuto in quella foto? Si sa qualcosa di quei bambini?
4 No original: “le cose accadano anche se non ci sono fotografi a portato di mano”.
5 Bugreiros era o nome dados aos sujeitos contratados (pelo estado ou pelas empresas colonizadoras) para atacar e exterminar indígenas no sul do Brasil.
6 “Afugentar índios” era o termo utilizado como forma de pagamento dos bugreiros. Está entre aspas, porque, certamente, como retratado pelo historiador, os bugreiros faziam muito mais do que afugentar, já que na maior parte das vezes assassinavam vilas inteiras de indígenas.
7 Fotozincografia é o processo de impressão com matrizes em relevo em chapa de zinco, obtido por meio da fotografia dos originais. Conforme o autor explica, utiliza-se uma impressão fotográfica ou um negativo fotográfico no qual são feitos retoques necessários para melhorar a imagem semelhantes aos feitos em uma impressão tipográfica (BRUNELLO, 2020, p. 116).
8 No original: “una foto ricordo della colonizzazione in Brasile”.
9 A minha posição não é neutra diante deste livro. Colaboramos com algumas das pesquisas realizadas no estado de Santa Catarina, com o envio de materiais, a fim de tentar responder algumas das perguntas colocadas pelo historiador Piero Brunello. Também lemos a primeira versão do texto. No entanto, a escrita, a elaboração do conjunto de peças desse grande quebra-cabeça, a demanda de pesquisas em arquivos específicos, e, principalmente, as perguntas foram elaboradas pelo autor da obra.
10 No original: “un massacro di indigini e il rapimento di bambini potevano essere giustificati, ma non altrettanto facilmente ammesso um dubbio sulla legittima discendenza paterna”.
Referências
BRUNELLO, Piero. Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione di Brasile. Verona: Cierre Edizione, 2020.
BRUNELLO, Piero. Pionieri: gli italiani in Brasile e il mito della frontiera. Roma: Donzelli Editore, 1994.
LAVINA, Rodrigo. Indígenas de Santa Catarina: História de Povos Invisíveis. In: BRANCHER, Ana (org.). História de Santa Catarina, estudos contemporâneos. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1999. p. 73-82.
MARQUES, Agenor Neves. Imigração italiana. Criciúma: [s.n.], 1978.
MARZANO, Luigi. Colonos e missionários italianos na floresta do Brasil. Florianópolis; Urussanga: Editora da UFSC; Prefeitura Municipal, 1985.
PERES, Jackson Alexsandro. Entre as matas de araucárias: cultura e história Xokleng em Santa Catarina (1850-1914). Recife: Ed. da UFPE, 2014.
SANTOS, Silvio Coelho dos. Índios e brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis: EDEME, 1973.
SANTOS, Silvio Coelho dos. Os índios Xokleng: memória visual. Florianópolis: UFSC, 1997.
WITTMANN, Luisa Tombini. O vapor e o botoque: migrantes alemães e índios Xokleng no Vale do Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres indígenas na construção etno-histórica de Santa Catarina: memórias de um esquecimento. In: ANAIS ELETRÔNICOS DO II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS: IDENTIDADE, DIFERENÇAS E MEDIAÇÕES, Florianópolis, 2003.
Resenhista
Eloisa Rosalen – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis.
https://orcid.org/0000-0001-5125-9969 E-mail: rosaleneloisa@gmail.com
Referências desta Resenha
BRUNELLO, Piero. Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile. Verona: Cierre Edizione, 2020. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. “Trofei e prigionieri”: a colonização e os indígenas em Santa Catarina a partir de uma fotografia. Esboços. Florianópolis, v. 27, n. 46, p. 610-616, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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