Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro | Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira

Fruto do trabalho em conjunto de dois historiadores, Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro é uma obra que não esconde o desejo de causar desconforto para alguns historiadores. Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, ambos professores da Unesp, tecem uma revisão bibliográfica sobre a história do mais recente herói brasileiro, Zumbi dos Palmares. Seu trabalho problematiza o processo de construção da figura de Zumbi ao longo da historiografia brasileira. E já no título indica, provocativamente, que Zumbi não é um, Zumbi é muitos, e tudo depende de “onde” e de “quem” esta falando.

Não é uma obra escrita para ser lida apenas na academia, seu texto claro e agradável, e até mesmo o cuidado com que as citações são utilizadas, deixam evidente a intenção dos autores de atingir um público “não especializado”. Um livro aparentemente despretensioso – que não chega a atingir 200 páginas – mas que ao organizar sua análise entre três extratos narrativos que enfatizam a descontinuidade das versões sobre Zumbi, coloca em cheque a possível unidade da figura do herói.

No primeiro capítulo os autores desenvolvem uma análise sobre o Zumbi que foi construído durante o Brasil colônia. Análise, que assim como todo o desenvolvimento da obra se confunde com uma revisão bibliográfica. Nota-se uma ênfase na descrição de diários de viajantes pelo Brasil, numa tentativa de apresentar ao leitor um quadro geral do cotidiano da escravidão. Os autores não se detêm numa análise dos documentos produzidos pelo Conselho Ultramarino ou aos demais documentos oficiais da época, seu interesse é como se construiu a narrativa histórica do herói. E o destaque nesse bloco do livro é dado para a narrativa sobre palmares e a figura de Zumbi, produzidas pelo historiador baiano, Rocha Pita, na obra: Historia da America Portugueza (1730).

O que este capítulo nos apresenta é uma figura de Zumbi construída a partir de uma interpretação colonialista do Brasil. Zumbi nesse extrato narrativo é apenas um título de liderança, sinônimo – não por coincidência – de “diabo”. A narrativa sobre a conquista e destruição de Palmares só merecia atenção nos escritos da época, por caracterizar o superior e épico intento de Portugal em colonizar o Brasil. Zumbi como pessoa ou personagem até então não existia e até mesmo a figura de Domingos Jorge Velho era eclipsada em importância pelos nomes das autoridades portuguesas e luso-brasileiras da época.

O segundo bloco da obra realiza uma análise sobre o trabalho de autores que escreveram sobre Zumbi, mas em um Brasil independente. De fato, o que se percebe segundo os autores, não é uma grande alteração quanto ao tratamento dado pelos historiadores no Brasil imperial e republicano à narrativa de Palmares. O que muda, de modo geral, é “quem são os que agora aparecem como vencedores”. E no caso, são os bandeirantes. É período de uma história positivista, onde cada vez mais as palavras: bandeirante, paulista e brasileiro soavam como sinônimos. A figura de Domingos Jorge velho ganhou maior dimensão nas narrativas da época como o herói representante do esforço do brasileiro – e por vezes da raça branca brasileira – na luta de conquista e unificação nacional. Mas o rico período de produção histórica sobre Palmares se inicia de fato após a abolição da escravatura. É quando se destaca os estudos de Nina Rodrigues sobre o “sujeito negro brasileiro”. Troya negra de Rodrigues, apesar de embasada em teorias raciais da época, é o primeiro estudo a tentar pensar Palmares a partir “de dentro”, algo que posteriormente se tornaria regra.

Atenta-se que o estudo de Nina Rodrigues caracterizado por um pragmatismo histórico, marca um momento de descontinuidade com as demais construções narrativas sobre o Quilombo dos Palmares até hoje produzidas. Em quais, em um primeiro momento – profundamente influenciado por um eurocentrismo colonialista – as narrativas sobre Palmares eram pautadas através de um enredo cristão, onde o ímpeto de colonização/construção do Brasil (o bem) era desafiado por uma ação organizada de desordem e destruição (o mal) representada pelos quilombolas. E depois, sobre uma influencia de conceitos marxistas, a inversão desse enredo, onde as narrativas sobre Palmares passaram a descrever um regime de opressão racial, econômico e social (por parte de uma classe branca escravocrata) que foi repudiado violentamente por grupos organizados de escravos.

E assim o último capítulo analisa este Zumbi dos Palmares revolucionário e guardião da liberdade, que hoje é considerado por muitos a versão definitiva da narrativa. É Zumbi construído a partir de uma “história dos oprimidos”, crítica a uma tradição historiográfica positivista e majoritariamente de viés marxista e posteriormente culturalista e racialista. Palmares se tornou então a descrição épica da luta universal pela liberdade (em um primeiro momento em meio à ditadura militar), para uma narrativa que de modo gradual – acompanhando a estruturação de uma democracia no país – dá maior destaque a identidade negra e o conflito de raças sociais no Brasil.

O livro aponta em sua conclusão a construção atual da figura de Zumbi em meio ao jogo de bandeiras políticas da democracia brasileira. Segundo os autores, a falta de pesquisas históricas nas últimas décadas sobre Zumbi, demonstra a fragilidade da própria narrativa que hoje é considerada inquestionável. Haja vista, a oficialização do dia da consciência negra e o dia de Zumbi pelo Estado brasileiro. Mas, infelizmente, os autores não aprofundam sua analise neste ponto. Pois, se pouco se escreveu de novo sobre Zumbi entre os historiadores, o mesmo não acontece entre outras áreas e até mesmo mídias. Concordamos com a crítica de Lilia Moritz Schwarcz ao livro Três Vezes Zumbi, publicada pela Folha de S. Paulo em 08/05/2012, quando esta questiona sobre o desinteresse dos autores em analisar a figura de Zumbi que foi e é construída em outras mídias e formas de arte, além dos textos historiográficos.

E exatamente por esse motivo, os autores também perdem a oportunidade de analisar várias obras produzidas nos últimos dez anos na área de história, que procuraram desconstruir e criticar tanto a figura de Zumbi como a identidade negra contemporânea. Trabalhos tais como o próprio livro de Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira. Obras que surgem em meio a um quadro historiográfico onde não só é cada vez mais desinteressante, como impossível, sustentar um herói nacional histórico como fazem parte de um debate tanto político quanto acadêmico entre teorias multiculturalistas e pluriculturalistas sobre a sociedade brasileira.


Resenhista

Vinícius Finger – Mestrando em Educação Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: vfinger@bol.com.br


Referências desta Resenha

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro. São Paulo: Três Estrelas, 2012. Resenha de: FINGER, Vinícius. Várias vezes Zumbi. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 6, n. 2, p.141-143, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

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