Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material – MILLER (T-RAA)

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013. 248 p. Resenha de: BRAGA, Carolina Hoffmann Fernandes. Humanos fazem, e são feitos de cultura material: uma apresentação dos trecos, troços e coisas. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 236-244, jul./dez. 2014.

A melhor maneira para entender, transmitir e apreciar nossa humanidade é dar atenção à nossa materialidade fundamental. Assim, Daniel Miller constrói seu argumento central, com um questionamento da oposição vigente no senso comum, entre pessoa e coisa, animado e inanimado, sujeito e objeto. Sua intenção é de que o livro “possa demonstrar como e por quê uma apreciação mais profunda das coisas nos levará a uma apreciação mais profunda das pessoas” (MILLER, 2013, p. 12).

A palavra “treco” (stuff, na versão original), em sua obra, não tenta delimitar exatamente aquilo que seria excluído do termo: “treco é um e.mail, uma moda, um beijo, uma folha ou uma embalagem de poliestireno” (MILLER, 2013, p. 7). Na verdade, Miller quer falar sobre a diversidade do que podemos chamar de treco. Ao invés de apresentar um definição, apresenta sua perspectiva sobre o estudo da cultura material, a qual ele afirma não ser mais bem-definida que treco.

Com base na interpretação de Mauss acerca dos mitos e objetos do kula, etnografado por Malinowski, destaca-se a ideia de que uma coisa dada e a obrigação de retribuí-la gera uma relação. Na teoria do dom, ou dádiva, o que importa é a circulação de coisas que criam a sociedade, ou seja, “o que chamamos de sociedade ou treco são separações artificiais vindas do mesmo processo” (MILLER, 2013, p. 103).

A idéia de que os trecos, de algum modo, drenam a nossa humanidade corresponde, segundo o autor, à tentativa de preservar uma visão simplista e falsa de uma humanidade pura e previamente imaculada. Ao contrário, os estudos mostram que sociedades não industriais são culturas tão materiais quanto a nossa e não correspondem ao modelo de selvagem nobre, não materialista. Para criticar a suposição de que os povos tribais não possuíam muitos trecos, e portanto seriam menos materialistas, Miller lembra que algumas das mais sofisticadas relações com as coisas podem ser encontradas entre os aborígenes australianos, os índios norte-americanos da costa noroeste, os ilhéus trobriandeses (com sua devoção às proas das canoas) ou o povo nuer, com seu gado. Ressalta ainda o fato de que não ter coisas não significa não querê-las.

Esta obra reconhece e respeita os trecos, expondo- nos à nossa própria materialidade, sem negá-la nem colocá-la em um pedestal. Para alcançar seu objetivo, o autor traz estudos sobre a cultura material com perspectivas que incluem os trecos em vários aspectos, cada qual assumindo a responsabilidade de demonstrar uma perspectiva diferente, mas sempre desempenhando papel relevante na organização das relações humanas e sociais.

A interessante reunião de estudos começa pela pesquisa sobre a indumentária, na qual desmonta a visão popular (por vezes acadêmica) de que objetos nos dão significados ou nos representam como simples signos ou símbolos, trazendo os argumentos que demonstram como os trecos nos criam.

Para repudiar a análise semiótica sobre o estudo da cultura material, Miller serve-se do exemplo da indumentária, vista como uma pseudolinguagem que nos permite “dizer” quem somos. Nesta condição, a cultura material acaba sendo relegada ao estudo da linguagem, uma comunicação não falada, em que os trecos, inanimados, são interpretados de modo limitado e superficial, com pouca consequência. O problema da semiótica, segundo o autor, é presumir certa exterioridade do objeto em relação aos seres humanos, como se o que somos estivesse situado profundamente dentro de nós, em contraposição direta à superfície. Para demonstrar como esta é uma explicação de apenas um ponto de vista, Miller traz o entendimento dos trinitários acerca do tema e um fantástico estudo etnográfico sobre o Sari, traje feminino indiano, em contraposição à percepção de indumentária em Madrid e Londres. A análise comparativa entre as sociedades de Trinidad, Índia e Inglaterra traz o valor que a indumentária assume na definição do ser, seguindo significados próprios nas respectivas culturas, para demonstrar como aquilo que presumimos como universal é, de fato, particular: no caso, o contraste entre “ser superficial” e “ser profundo”, enquanto sujeitos humanos, em cada situação social apresentada na obra. Em Trinidad, as pessoas usam roupas para descobrir quem são, de acordo com o momento particular. Na Índia, a experiência de ser mulher é diferente, considerando que se espera que a pessoa mude constantemente de aparência, em função de cada circunstância. Em Madri, a indumentária ajudou a preservar o ideal cosmológico da cidade como centro da civilização; já em Londres, ela é fonte de ansiedade, precisamente pelo aumento da pressão sobre os indivíduos para exprimirem-se a si próprios, combinado à dificuldade crescente de a pessoa determinar seu próprio gosto individual.

As pressuposições que fazemos sobre onde estaria situado o “ser” fazem parte de uma definição muito mais ampla da cultura material em nossa sociedade ocidental, onde o próprio materialismo é percebido de modo superficial. O objetivo é modificar nossa percepção sobre superficialidade, começando por demonstrar como coisas – tais como roupas – não representam pessoas, mas constituem-nas. Em cada estudo apresentado no livro, o autor demonstra que o vestuário desempenha papel considerável e atuante na constituição da experiência particular do “eu”, de modo que a contraposição entre “ser superficial” e “ser profundo” pode inverter-se de acordo com as relações sociais, demonstrando a vasta gama de relações possíveis, que são radicalmente distintas em tempos diferentes e em lugares diversos. Pela indumentária, então, traz a questão da superficialidade e, com sua análise, demonstra como as vestes e as pessoas constituem-se reciprocamente umas às outras.

Lembrando o leitor de que a teoria da representação pouco nos diz sobre a verdadeira relação entre pessoas e coisas, tendendo a reduzir as ultimas às primeiras, Miller atesta a necessidade de se desenvolver uma teoria das coisas irredutível às relações sociais. Assim, após afastar a ideia de que pessoas fazem coisas que as representam, o autor deixa claro que, ao contrário, através da cultura material, queremos perceber, na mesma medida, como as coisas fazem as pessoas. Para tanto, apresenta a cultura material a partir da teoria dos objetos e desenvolve, no segundo capítulo, uma teoria da objetificação, para levar à perspectiva da indistinção entre sujeitos e objetos, baseada no exame das consequências de nossas crenças sobre as propriedades do material.

Sua conclusão é de que “os objetos são importantes, não por serem evidentes e fisicamente restrinjam ou habilitem, mas justamente pelo contrário. Muitas vezes, é precisamente porque nós não os vemos” (MILLER, 2013, p. 78). Assim, o primeiro entendimento das coisas acontece a partir da propriedade oposta ao que esperaríamos dos trecos. “Funcionam porque são invisíveis e não mencionados, condição que, em geral, alcançam por serem familiares e tidos como dados” (MILLER, 2013, p. 79). Essa capacidade que a cultura material têm de sair de foco, sempre de forma periférica à percepção humana, mas mesmo assim determinar nosso comportamento, ajuda a entender porque tantos antropólogos consideram os objetos, de algum modo, triviais.

A contribuição de Daniel Miller ao estudo da cultura material traz seu precedente nos estudos de Pierre Bourdieu que, por sua vez, necessita do entendimento da ideia central do estruturalismo, de não encarar as coisas isoladamente, mas, em vez disso, perceber a relação existente entre os objetos, afinal os mesmos obtêm sua definição por contraste com o que não são e pelo que são. Exemplo disso está no estudo referido no segundo capítulo, sobre os potes indianos: um pote sozinho é inexpressivo dentro do contexto daquele povoado estudado por Miller. Os potes indianos não tem seu uso justificado por sua função, mas a razão pela qual cinquenta potes diversos são produzidos reflete a complexidade e a elaboração de distinções rituais e sociais simbólicas que constroem um elaborado de formas com dimensões sistemáticas de diferença em relação a todo o sistema de objetos e outros potes. Apesar da constatação, os potes não são o âmago do contexto, mas atuam como cenário e revelam muito sobre o grupo em questão quando os aceitamos. A teoria da socialização de Bourdieu demonstra como essas ideias podem ser usadas para pensar sobre “como as pessoas chegam a ser o que são e a ver o mundo da maneira particular como o fazem” (MILLER, 2013, p. 82), de modo que a cultura material é o que nos torna característicos de nossa própria sociedade. Mas esses trecos não devem ser vistos como entidades desconectadas. Outro estudo de base é a teoria da prática, também de Bourdieu, em que a criança aprende a interagir com uma pluralidade de culturas materiais, não por meio de categorias passivas, mas de rotinas cotidianas que levam a interações consistentes com os artefatos. De modo que esta teoria demonstra que os objetos fazem as pessoas. Todo o sistema de coisas, com sua ordem interna, faz de nós as pessoas que somos, como um processo dinâmico e simultâneo de produções mútuas.

A teoria que dá forma à idéia de Daniel Miller de que os objetos nos fazem enquanto os fazemos é o processo de objetificação ou autoalienação, em substituição à teoria de que representamos através da cultura material, sempre reforçando que não há separação entre sujeitos e objetos. Dentro deste debate de objetificação, o alicerce encontra-se na filosofia de Georg Hegel.

Os argumentos de Georg Simmel também são debatidos pelo autor, que traz a seguinte formulação: o subjetivo só ganha quando consegue assimilar a cultura objetiva em expansão; o que não podemos assimilar, nos oprime, ou possui capacidade para tanto. Sobre essa e outras implicações da materialidade, há um princípio básico encontrado na maioria das religiões sobre a sabedoria atribuída àqueles que afirmam representar o meramente aparente, sob o qual jaz o real. Miller traz esta questão para explicar como a materialidade, seja o que ela for, é algo que, as vezes, não queremos ser. Moralidade e materialidade seguem juntas neste julgamento do senso comum e das religiões que realizam seu ideal de transcendência por meio do repúdio ao material. Dentro deste dualismo, ele apresenta como as religiões são contraditórias em seus argumentos, na medida em que todas elas expressam sua imaterialidade pela materialidade de monumentos, múmias, imagens sacras, ou até mesmo alimento, deixando legados de trecos. Daí surge o paradoxo: quanto mais a humanidade busca alcançar a definição do imaterial, mais importante é a forma específica de sua materialização.

Talvez este caráter moral herdado explique porque a cultura material sempre foi considerada com desdém, mesmo dentro das ciências sociais. Todos os exemplos trazidos nesta obra demonstram a contradição, e a complexidade, como partes integrantes do mundo comum em que vivemos, todas essenciais para o entendermos. Mas devemos nos lembrar que existem alternativas teóricas influentes que nos propiciam o pensamento a respeito da cultura material. Pesquisadores como Bruno Latour, Alfred Gell, Tim Ingold e Christopher Tilley mostram a existência de novas abordagens teóricas que têm em comum a intenção de dar mais atenção e respeito à materialidade e à cultura material, entendendo os artefatos como parte integrante de nossa existência no mundo.

No terceiro capítulo, Daniel Miller apresenta a importância das teorias apresentadas usando estudos sobre casas, de modo que tais teorias são domesticadas pelo processo de “acomodação”, ajudando o leitor a “se sentir em casa” com essas abstrações. Partindo de questões sobre a objetificação, segue com a problematização da agência e da materialidade, em que a decoração se torna a forma de acomodação à estratificação social.

A questão da moradia implica contornos de poder e traz questões íntimas, como relacionamentos pessoais, que dependem de forças maiores, pois embora as pessoas sejam construídas por seu mundo material, com frequência não são elas os agentes por trás deles. Na análise sobre as habitações, surgem ainda questões relativas a gênero e relacionamento humano, dentro de histórias que dizem respeito à moradia, mas que também são histórias de objetificação.

Para descobrir os valores objetificados na habitação, devemos examinar a lógica do próprio treco, a forma e a ordem implícita ao ambiente construído. Para tanto, Miller traz diversas pesquisas, como as de habitações estatais no Reino Unido, onde verificou que as pessoas capazes de decorar e transformar sua relação com essas moradias eram aquelas que tinham boas relações sociais e apoio de outros. Além disso, os estudos mostram que as pessoas que dispunham de boas relações sociais eram as que também tinham relações efetivas e satisfatórias com o mundo material. Essa conclusão importante leva em conta a suposição presente nas acusações de materialismo das pessoas que centram sua atenção em seus relacionamentos com coisas, como se o fizessem às custas das relações com outras pessoas.

O princípio da agência emerge como maneira de pensar na constituição mútua. Quando da impossibilidade de aceitação desta perspectiva, os mitos (no caso, as casas mal assombradas) aparecem como explicação, pois ao invés de dizer que a casa tem agência, é mais fácil persistir com as entidades que, em geral, são percebidas como dotadas de agência: as pessoas, mesmo que estejam mortas. Tudo isso faz parte da nossa necessidade de chegar a um acordo com a agência dos próprios trecos.

Nos diversos estudos trazidos no livro, a dinâmica da casa é soberana, seja no mudar-se de casa, na reforma da casa, fazendo uma bagunça ou apenas movendo trecos de um lado para outro. Em cada caso, as pessoas estão mais uma vez criando a si mesmas por meio dos trecos.

O autor também examina a materialidade ambígua da mídia e da comunicação. Demonstra que trecos não são necessariamente coisas que podemos segurar ou tocar. A mídia é menos óbvia que uma coisa material e é tratada como forma de tecnologia da comunicação, que aparece com toda sua materialidade através do sistema de trocas que organiza a vida econômica das camadas pobres na Jamaica. Os estudos feitos entre os jamaicanos, filipinos e trinitários acerca do uso que fazem de seus telefones com internet e envio de mensagens, revelam uma relação bem mais complexa entre renda e difusão do telefone, fazendo o leitor perceber que o que interessa são as consequências desses produtos para as pessoas.

Depois de explorar as diferentes maneiras pelas quais a proposta de que as coisas fazem as pessoas, tanto quanto as pessoas fazem as coisas, através dos exemplos de indumentária, habitação e mídia, Daniel Miller aborda os trecos como sintomas da vida e da morte: a cultura material que nos traz ao mundo e nos ajuda a deixá-lo. Mais uma vez, percebe-se claramente o modo como os objetos constroem sujeitos e como isso faz parte da compreensão cotidiana do significado de sermos humanos.

Através de sua análise, pontuada por diversos tipos de estudos entrelaçados por sua teoria, o autor mostra novamente como a reflexão sobre as questões da vida e da morte fazem do estudo da cultura material, um caminho efetivo para a antropologia dos relacionamentos, sendo uma via indireta para compreender as pessoas e suas relações sociais.

Ao abranger a ampliação da particularidade e da universalidade para definir o mundo moderno, Daniel Miller serve-se de Hegel como fundamento filosófico que dá suporte a seu trabalho, afirmando que esses dois processos estão ligados e que a antropologia deve trazer um diálogo entre ambos: o particularismo do trabalho de campo, descortinado pela observação participante e seu relativismo cultural e, ao mesmo tempo, as teorias universais, como o estruturalismo, o princípio da dádiva, entre outras. Justamente pela vantagem do “compromisso simultâneo com esses dois extremos, particularidade e generalidade, a antropologia pode dar sua contribuição para a compreensão da humanidade ao conectá-los, sem perder o compromisso com cada um deles” (MILLER, 2013, p. 16). É comum que bons trabalhos antropológicos revelem o particular como manifestação do universal.

Defino o antropólogo como alguém que busca demonstrar as consequências do universal para o particular e do particular para o universal mediante devoção igual à compreensão e à abrangência empáticas de ambos (MILLER, 2013, p. 18).

Este livro busca desenvolver tanto a interpretação quanto o discernimento, baseado em etnografia, evitando reducionismos e o rebaixamento as coisas como meras representações simbólicas de pessoas e da sociedade. Reivindica a valorização das coisas proporcionalmente ao lugar que elas ocupam em nossas vidas.

A busca de explicações do nosso mundo material contemporâneo tende a girar em torno de estudos do capitalismo, sistemas de produção e distribuição que proliferam os trecos na vida cotidiana. Mas o autor conclui que o papel da antropologia, sempre comprometida em aprender a partir de estudos comparativos da humanidade, não foi diminuído pelo capitalismo e a modernidade global. As análises de Daniel Miller sobre os estudos de indumentária, casa, carro, nascimento e velório trazem um caminho possível pelo qual a cultura material é estudada como processo de objetificação de valores, considerando que sujeitos e objetos só existem por este processo de objetificação, no qual um constrói o outro, dissolvendo assim as oposições entre pessoas e coisas.

Referências

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013.

Carolina Hoffmann Fernandes Braga – Mestranda em Antropologia Social e Cultural na Universidade Federal de Pelotas. E-mail:carol@carolhoffmann.com.br

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Itamar Freitas

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