Travestis: carne, tinta e papel | Elias Ferreira Veras

Em sua segunda edição, o livro “Travestis: carne, tinta e papel” de Elias Ferreira Veras, nos aproxima do “universo trans” sob a ótica do pesquisador/ator/sujeito. Essa aproximação é feita por meio das narrativas das travestis entrevistadas, das revistas Manchete e Playboy e de periódicos cearenses. O objetivo de Veras é problematizar as condições de emergência do sujeito travesti na capital do Ceará, Fortaleza. De forma admirável, o autor cita a passagem do tempo das perucas para o tempo dos hormônios-farmacopornográficos (evocando Paul B. Preciado), o que demanda um processo de subjetivação, quando ser travesti passa a significar ser um novo sujeito, e não apenas uma prática clandestina e privada.

Para chegar a esse resultado, há uma travessia: o autor inicia sua jornada no curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), torna-se mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É a tese de doutoramento de Elias que faz esse retorno às origens, temporal e geograficamente, saindo do Sul para voltar ao Nordeste e incidindo sobre a temática para então culminar no livro.

A obra conta com prefácios de Durval Muniz de Albuquerque Júnior (UFRN) e Helena Vieira, que enfatizam o poder trangressor do trabalho, ao dedicar-se a história das sexualidades dissidentes da matriz heterossexual. Logo após, a introdução nos guia pelos meandros de Veras. O autor cita os deslocamentos teóricos de Michel Foucault e a teoria queer, como discutida por Guacira Lopes Louro, Judith Butler e o já mencionado Preciado para partir de um ponto que se torna evidente ao longo da obra: é na performatividade de gênero e na materialidade que se produzem os corpos, e a emergência do sujeito travesti é exemplo disso.

Porém, não é apenas de carne que se constituem os sujeitos. Veras sinaliza a importância da divulgação de eventos como o carnaval e repercussões da mídia a respeito do “fenômeno Roberta Close” para criação de discursos de fascínio a respeito das travestis. Por outro lado, os jornais cearenses da mesma época estampam as travestis nas colunas policiais e associadas à criminalidade. Nos dois casos, esses discursos contrastantes foram responsáveis por dar sentido às experiências de subjetivação das travestis nas décadas de 1970 e 1980. Com isso, o autor afirma que “as travestis não se constituíram apenas de hormônios, silicones, roupas e adereços associados ao feminino, mas, também, de tinta e papel”.

O livro é dividido em três capítulos que sustentam o percurso sinuoso da constituição da travesti enquanto sujeito, processo mediado pelas referências externas e individuais do que é ser/estar travesti, marcado pela inflexão da passagem do tempo das perucas para o tempo dos hormônios-farmacopornográfico. O primeiro capítulo trata justamente dessa passagem que, para Veras, é a inauguração de uma nova temporalidade e subjetividade. Desse processo, emerge o sujeito travesti, fruto das condições da “crescente visibilidade das homossexualidades […], o surgimento de novas tecnologias corporais, as novas maneiras de vivenciar os espaços da cidade e a crescente presença dos meios de comunicação no cotidiano das pessoas”. Veras nos convida a acompanhar a genealogia desse processo histórico, a qual conduz com sagacidade ao dialogar com as fontes orais e documentais, situando-se enquanto pesquisador e ouvinte na complexa tarefa de examinar trajetórias de vida.

Do que Veras chama de tempo das perucas, ou “quando não existia o sujeito travesti”, conhecemos Amorim-Samorim-Ilca e seu romance homônimo. A obra discorre sobre o encontro de dois jovens, numa época quando “bichas e bonecas” encontravam “bofes” e reproduziam dinâmicas de passivo-ativo que eram regra dominante à vivência homossexual do início dos anos 1970. César/Ilca encarna a “boneca”, transformada para concursos de beleza, também comuns nesse período. Para esses concursos e festas, antes clandestinos mas cada vez mais difundidos, as bonecas fazem uso de artefatos femininos, que Elias chama de “tecnologias de gênero”, a exemplo de maquiagem, perucas e roupas idealmente femininos. As referências evocam as artistas estadunidenses: sua estética e seus maneirismos representam, para as travestis que as emulam, um conjunto de signos de identificação.

Outra interlocutora é Bianca, introduzida também no primeiro capítulo, e cuja trajetória evidencia a “complexidade e o caráter provisório, processual, múltiplo e histórico presentes nas performances de gênero”. Bianca travestiu-se sem assumir uma identidade travesti como conhecemos contemporaneamente, afirmando ter sido “veado que gostava de usar roupa de mulher”, em contraste com a “travesti de peito” que ela associa ao trabalho sexual nas ruas.

O autor analisa, então, a passagem das perucas para os hormônios a partir de eventos como o carnaval, de forma a analisar a emergência de uma nova “identidade sexual”, na qual o “virar travesti” substitui o “ir de travesti” das bonecas descritas anteriormente. A ampla gama de sociabilidades do carnaval, bem como as possibilidades de inversão de gênero que ele propiciava era espaço vital para as vivências homossexuais do período. Veras recorre à revista Manchete para evidenciar o papel central do carnaval e os discursos produzidos a respeito das “bonecas, enxutos e ‘alegres rapazes’”. O autor enfatiza o quanto a visibilidade dada pela mídia nesse período contribui para que o “uso do travesti” ganhe dimensão pública, o que certamente influencia no trato do caso de Roberta Close nos anos 1980.

A mídia aparece não só como testemunha desse processo de subjetivação e constituição do sujeito travesti, mas atua de forma a também participar desse processo, visto que passa a tratar mais abertamente e documentar com imagens os novos corpos produzidos com silicones e hormônios. Cria-se, nesse contexto, o “ser travesti” também nos meios de comunicação, que têm a travesti Rogéria, oriunda dos espetáculos teatrais com travestis e transformistas, como símbolo paradigmático. O discurso da mídia ainda evidencia a ambiguidade desse sujeitos, Rogéria estava sempre em oposição a Astolfo, suas características femininas sempre em contraste com o que seria a “essência” masculina dentro do espectro sexo-gênero.

A partir daí, o autor introduz outra duas interlocutoras, Rogéria (uma clara homenagem à “travesti mais talentosa do Brasil”) e Thina, que narram suas trajetórias e o projeto de “virar travesti”, que assume um novo significado com o surgimento de novas tecnologias de gênero. Nesse sentido, ganha destaque a modificação dos corpos por meio da ingestão de hormônios, uso do silicone para criar seios, entre outras intervenções responsáveis pela construção da corporalidade feminina e de uma performatividade de gênero particular, que passa a diferenciar gays, transformistas e bonecas das travestis. A narrativa de Thina é quem nos guia por esse intricado processo de “virar travesti”, sinalizando para a importância das bombadeiras que esculpiam os corpos com silicone. Veras aponta que “esse novo sujeito, invenção da mídia e da ciência, constituído por atos de repetição estilizada […], será definindo como sujeito fascinante-desejável […]. Mas, também, como sujeito anormal […] e monstruosidade, ambiguidade de gênero e excesso de sexualidade”.

No segundo capítulo, Veras analisa extensamente o “fenômeno Roberta Close” como paradigmático do novo tempo dos hormônios e da sociedade que a ele se adapta. Paul B. Preciado retorna à discussão empreendida por Veras para compreendermos a dimensão ocupada pela sexualidade nesse novo tempo. A era farmacopornográfica, como Preciado preconiza, abarca tecnologias responsáveis por (des)construir as sexualidades impostas. O autor transpõe o debate de Preciado para o contexto brasileiro, ao associar o início do regime farmacopornográfico com o período da redemocratização, no qual abundavam questionamentos, incertezas e cresciam os movimentos feminista, negro e homossexual. Veras concatena essas questões à maior presença e visibilidade dos discursos a respeito das sexualidades nos veículos midiáticos. Como Foucault, o que o autor percebe é que se proliferam toda a sorte de discursos, sejam de censura ou incitação à uma nova sexualidade espetacularizada, na qual Roberta Close aparece como símbolo dessa- ambiguidade.

O fenômeno La Close é o “grande enigma” que permeia os discursos das revistas Playboy que Veras analisa, e que, enquanto buscam aproximá-la da representação de “mulher de verdade”, também buscam afastá-la da travesti nos moldes da famosa Rogéria. O “mito” Roberta Close confunde e desafia a associação direta entre gênero e sexo, “assim como o destino da masculinidade e da feminilidade orientado pela genitália passou a ser criticado”. A feminilidade, portanto, deixa de ser produto óbvio da natureza e da biologia, mas passa a ser legitimada através dos dispositivos tecnológicos de construção de gênero que possibilitam acessar esse terreno antes apenas tangenciado pelas bonecas e enxutos.

O “enigma” de Roberta Close, porém, também produz discursos estigmatizantes. Esse é um dos pontos altos da obra de Elias Veras. Enquanto podemos, num primeiro olhar, pensar o universo de Roberta Close como radicalmente contrário ao discurso do estigma da violência e da criminalidade que assolava as “sexualidade periféricas”, Veras relaciona-os como parte de um mesmo dispositivo. Também La Close foi acusada de “usurpação da feminilidade” um ponto de inflexão na obra, onde o autor nos guia pelo caminho que vai das capas da Playboy às páginas policiais que reforçam o discursos de estigmatização das travestis.

O capítulo 3, “Dispositivo do estigma e os contra-discursos travestis”, nos leva a um mundo menos idílico do que o do glamour dos carnavais e o da projeção nacional de Roberta Close. O autor compreende o dispositivo do estigma como “estratégia normativa que constitui a economia dos mecanismos de poder, saber e produção de subjetividades no tempo farmacopornográfico”. Veras aponta como esses discursos e práticas encontram maneiras de enunciar antigas associações entre homossexualidade-patologia e travesti-disfarce-criminalidade, sendo o próprio estigma inseparável da emergência do sujeito travesti.

Assim, procede às fontes da grande imprensa de Fortaleza para evidenciar os discursos produzidos sobre a população travesti. Impossibilitadas de falar, sempre referidas no masculino, ser travesti torna-se sinônimo de ser marginal. Em contraste com as imagens enaltecedoras de Roberta Close e das travestis nos bailes e shows, Veras analisa a fotografia policial como tecnologia de regulação que contribui para estigmatizar a população travesti.

Com dificuldade de inserirem-se no mercado de trabalho, muitas travestis recorrem ao trabalho sexual como forma de sobrevivência. A movimentação na rua atrai os olhares da mídia e da polícia, reforçando a ideia de criminalidade e verdadeira ameaça das travestis e sua presença pública à sociedade fortalezense. A Aids termina de compor o dispositivo estigmatizante, noticiada como “câncer gay”. O depoimento de Thina também dá suporte ao evidenciado por Veras, com seus testemunhos de violência policial e de como a epidemia aprofundou o preconceito e marginalização da população travesti.

Ao invés de permanecer nesse lugar obscuro da narrativa, porém, Veras avança ao ver além do estigma. Os “contra-discursos travestis” abrem espaço para o outro lado da prostituição: os ganhos financeiros e o “glamour” narrado por Thina e Rogéria. Também a visibilidade tem seus benefícios, com a denúncia público-midiática das violências que sofriam e da construção de uma militância travesti, da qual Thina participa ativamente. As resistências culminam na organização de um movimento institucional, ponte para o acesso à cidadania das travestis, que é fruto inclusive do estigma perpetuado ao longo dos anos, visto que os dois produzem discursos de subjetivação, como o autor observa atentamente

A obra de Veras percorre os caminhos da construção do sujeito travesti do tempo das perucas ao tempo farmacopornográfico no Ceará, por meio das fontes de imprensa e dos testemunhos orais. A narrativa permite que o “universo trans” cearense apareça não somente como adendo ao cenário nacional, visto que o destaque dado pelo autor aos discursos produzidos sobre esse universo e as práticas e tecnologias de gênero evidenciam como essa subjetivação acontece de forma complexa e mediada por diferentes referências. O autor também jamais se distancia de sua posição enquanto ator/pesquisador, e nos fornece acesso quase ilimitado a reflexões e experiências de pesquisa, principalmente no que tange às suas relações com as interlocutoras/colaboradoras que aparecem nas entrevistas. “

Travestis: carne, tinta e papel”, nesse sentido, é uma contribuição valiosa para os estudos de história das sexualidades, da produção dos corpos dissidentes e da emergência de novos sujeitos políticos. A segunda edição da obra evidencia sua importância para o campo dos estudos de gênero, e nos dá mais uma chance de olhar o “universo trans” sob a perspectiva de Elias Veras, que nos conduz por essa rico e singular percurso.

Augusta da Silveira de Oliveira – Graduada (2015) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestra (2017) em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da mesma instituição, onde defendeu a dissertação “Tenho o direito de ser quem eu sou”: o movimento de travestis e transexuais em Porto Alegre (1989-2010).

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. 2 ed. Curitiba: Editora Appris, 2019. Resenha de: OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. Das perucas aos hormônios: a emergência do sujeito travesti no Ceará. Crítica Histórica. Maceió, v.10, n.19, p.254-259, junho, 2019. Acessar publicação original [DR]

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