Travelling Trough Education: uncertainty, mathematics and responsability – SKOVSMOSE (Bo)

SKOVSMOSE, O. Travelling Trough Education: uncertainty, mathematics and responsability. Rotterdam: Sense Publishers, 2005. Resenha de: APPELBAUM, Peter. Sobre Incerteza, Dúvida, Responsabilidade e Viagens: um ensaio sobre dois livros de Ole Skovsmose*. Revista  Bolema, Rio Claro (SP), v. 26, n. 42A, p. 359-369, abr. 2012

A natureza crítica da educação matemática representa elevada incerteza. Naturalmente, é possível tentar ignorar esta incerteza. Isto, por exemplo, pode ser feito assumindo que a educação matemática, de alguma forma, pode tornar-se “determinada” a servir algumas funções sociais atrativas quando organizadas em, digamos, um currículo nacional coroado por alguns objetivos bem escolhidos. Mas acho que isso seja uma ilusão. A função da educação matemática não pode ser determinada (ou re-determinada) pela mera introdução de alguns princípios orientadores explicitados no topo do currículo. Mudar o “indeterminismo” da educação matemática não é tarefa fácil. Não existem procedimentos diretos para a “determinação”. As funções da educação matemática dependem dos múltiplos e particulares contextos nos quais o currículo é chamado a agir. Reconhecer a natureza crítica da educação matemática, incluindo nisso todas as incertezas relativas a ela, é uma característica da educação matemática crítica. (SKOVSMOSE, 2005, p.44).

Esta citação de Travelling Through Education, de Ole Skovsmose, é um excelente resumo de muitos de seus trabalhos mais antigos e, ao mesmo tempo, um bom exemplo do que Skovsmose chama, em In Doubt – outro livro recente –, de um conceito explosivo. A Educação Matemática Crítica é, ela mesma, um conceito explosivo, pois algumas tentativas de clarificação dessa expressão frequentemente mostram-se mais complexas e amplas e, talvez, menos claras que a concepção original. Como em inúmeras de suas outras publicações e apresentações, Skovsmose tenta responder ao potencial explosivo desta abordagem a partir de relatos sobre contextos específicos de sala de aula. Outros conceitos explosivos – para ficarmos apenas em alguns exemplos – são reflexão, intenção e ação política. Skovsmose frequentemente vale-se da abordagem filosófica para clarificar esses termos, visando melhor entender o que é possível falar sobre eles, e o que é possível concluir a partir deles. Por conta disso, esses seus livros servem como que para uma introdução à história da filosofia e do pensamento social, tanto quanto como uma provocação para compreender mais profundamente as possibilidades para a educação matemática, em particular, e para a educação, de forma mais geral. A Educação Matemática, durante muito tempo, foi tida como um campo, política e eticamente, neutro, distante de temas como o da justiça social. A concepção hegemônica global sobre matemática torna extremamente difícil introduzir uma educação matemática crítica genuína.

O conjunto das obras de Skovsmose prestou um grande serviço, ajudando as pessoas a questionar seus pressupostos sobre como a matemática funciona em sua estrutura hegemônica. Antes, sequer poderíamos pensar sobre uma educação matemática crítica, que servisse à democracia, à justiça social, ou alguma outra dessas suas intenções, e, mesmo agora, quando essa abordagem pode ser mais profundamente compreendida, ainda esbarra-se no problema de criar uma audiência na qual e a partir da qual este esforço ressoe. A maioria dos educadores matemáticos parece seguir sem pensar muito sobre a forma como os seus esforços podem ou não ser coerentes com suas convicções pessoais. Os dois últimos livros de Skovsmose nos permitem conhecer a trajetória histórica da filosofia e do pensamento social que, por sua vez, nos possibilitam questionar o papel da matemática no projeto de perpetuar concepções muitas vezes equivocadas. Assim, eles nos ajudam a caminhar com Skovsmose na estrada da educação onde “a clarificação de ‘algo’ nos leva a considerar ‘tudo’1” (SKOVSMOSE, 2005, p. 216).

Tendo nos auxiliado a juntar ferramentas e formar um vocabulário que nos permite articular a matemática e a educação matemática em suas potencialidades tanto problemáticas quanto revolucionárias, Skovsmose nos leva a outra discussão. A educação matemática não é mais assumida como tendo uma essência, e a educação matemática crítica pode preocupar-se com as diferentes possibilidades de papéis que a educação matemática desempenha num cenário sócio-político particular. Por exemplo, a educação matemática crítica pode nos ajudar a compreender os modos como a educação matemática estratifica, seleciona, determina e legitima inclusões e exclusões. Ela pode, também, falar sobre si mesma, e indicar os diversos caminhos que o processo de globalização nos leva a percorrer. Além disso, a educação matemática crítica pode tratar da natureza daquelas competências que a educação matemática deve desenvolver. Conhecimento e poder estão conectados, também no que diz respeito à matemática. A aprendizagem, em especial a aprendizagem matemática, pode significar poder, o que facilmente pode passar a significar poder para alguns, já que o processo educativo produz inclusão e exclusão. A esse respeito, Skovsmose argumenta que a educação matemática crítica deve estar atenta à situação do estudante, e considerar o background dos estudantes (Background é outro conceito explosivo). A educação matemática crítica, praticada por educadores matemáticos críticos, deveria, também, estar atenta sobre as possibilidades para o futuro que uma sociedade em particular pode permitir a diferentes grupos de alunos. Um modo de estabelecer uma consciência sobre essas perspectivas é considerar não apenas o background dos estudantes, mas também seus foregrounds. Isto pode nos levar a considerar, mais diretamente, como diferentes sociedades proveem oportunidades (ou dificuldades) para os diferentes grupos, dependendo do gênero, idade, classe, etnia, recursos econômicos e cultura.

A maioria dos educadores concebe a matemática como um conteúdo da prática escolar, mas, concebida como uma disciplina escolar e como um conjunto de práticas culturais, essa matemática torna-se um tópico a ser tematizado pela educação matemática crítica. A matemática em si deve ser considerada – e não apenas de uma perspectiva de ensino, mas também de uma perspectiva filosófica e sociológica – pois ela representa um importante aspecto do desenvolvimento da racionalidade ou da razão, uma enorme variedade de técnicas culturais integradas ao artesanato, às rotinas da vida diária, às ciências, às tecnologias, à economia, ao comércio, à indústria e às conquistas militares em todo o mundo. Mas, além disso, a própria matemática parece representar um aspecto particular da globalização, aquele segundo o qual algumas práticas operam para reduzir ao status de conhecimentos nativos ou indígenas, o que não for conhecimento escolar ou conhecimento legitimado, reforçando, assim, as desigualdades sociais que circunscrevem local versus global. Skovsmose refere-se a estes processos como de segregação2.

Para agir mais diretamente sobre a complexidade da matemática e da globalização, e para responder ao estado atual de práticas de segregação, Skovsmose introduz a noção de matemática em ação, querendo significar uma variedade de técnicas e tecnologias que, em combinação, definem nossa sociedade da informação e estabelecem os espaços nos quais é possível discutir as estruturas de saber-poder em nossa sociedade contemporânea. De um lado, quereremos repensar a natureza da matemática e do pensamento matemático; de outro, podemos identificar os pontos mais significativos da matemática e do pensamento matemático e usá-los quando contestamos a concepção de modernidade e pós-modernidade a partir de um ponto de vista teórico, wittengensteiniano, da matemática-no-uso3. Este trabalho, por sua vez, pode, fundamentalmente, definir a matemática em ação como sendo a matemática. Por exemplo: por meio da matemática podemos representar algumas coisas ainda não existentes e sermos, neste sentido, capazes de identificar alternativas para uma dada situação. Isso não ocorre apenas com a matemática, mas essa é uma característica muito particular dela. A matemática nos permite uma certa liberdade para imaginar possibilidades, gerando conjuntos de situações hipotéticas. Nesse sentido, a matemática é, muitas vezes, um recurso para a inovação tecnológica e para os processos de planejamento tecnológico que desenvolvem algoritmos para tomada de decisão, estando, assim, subjacente a muitos aspectos da sociedade contemporânea. Aqui, temos tanto uma característica definidora da matemática como praticada normalmente por muitas pessoas no mundo, como, implicitamente, uma característica experienciada diariamente, via tecnologias, por ainda mais pessoas no mundo. Esta característica da matemática nos permite considerar um dos focos da educação matemática crítica: o questionamento das práticas sócio-culturais da matemática e o modo como essas práticas se relacionam ao nosso trabalho profissional, em termos dos nossos compromissos com a igualdade, além de servir como base para o desenvolvimento curricular. Quanto ao enfoque teórico, não deveríamos questionar os modos como a tecnologia – como os gabaritos de leitura ótica, os smartphones pessoais, os sistemas de diagnóstico médico, os algoritmos de bem-estar social e qualquer outro uso cotidiano das tecnologias – perpetuam concepções sobre o papel da matemática na definição de conhecimentos e em relação à neutralidade das aplicações tecnológicas? Quanto à base para o desenvolvimento curricular, Skovsmose nos dá exemplos interessantes de maneiras pelas quais os alunos podem aprender ambas, a matemática tradicional e a matemática crítica, ao mesmo tempo, questionando e explorando as tecnologias e os sistemas tecnológicos de tomada de decisão.

Embora alguns possam julgar os exemplos como mera defesa da abordagem das investigações por projetos, os exemplos concretos são bem mais do que meros exemplos possíveis de práticas para as salas de aula: eles nos ajudam a compreender como os alunos podem desenvolver uma compreensão crítica da matemática pautada no currículo vivido4, pautado no desenvolvimento de habilidades e conhecimentos conceituais inseridos numa perspectiva crítica que é radicalmente distinta daquela que poderíamos chamar de educação matemática acrítica ou não crítica. Quando Skovsmose discute a matemática em ação, ele quer que analisemos como as concepções matemáticas são projetadas na realidade. Quando usamos a matemática como base para a tecnologia, criamos dispositivos que, de alguma forma, só são possíveis por meio da matemática.

Em certo sentido, isso já havia sido antecipado no mundo da matemática, mas, agora, essa constatação nos vem de modo muito claro. No entanto, Skovsmose é consciente de que não é possível atribuir à imaginação sociológica as atraentes qualidades atribuídas frequentemente à imaginação tecnológica. Qualquer projeto tecnológico tem implicações que não podem ser identificadas a partir de um raciocínio hipotético. Este é um problema próprio a qualquer tipo de investigação baseada em simulações matemáticas. As implicações das situações realizadas (que são certamente distintas de p), devem ser muito diferentes de q, as implicações calculadas de p. Qualquer raciocínio hipotético pode perder sua credibilidade se tropeçar nos degraus da similaridade, que são construídos no mesmo momento em que a matemática é posta em funcionamento. (É só na bem protegida sala de aula de matemática, onde a realidade virtual dos exercícios define totalmente os problemas a serem resolvidos, que esses problemas não aparecem). O que tendemos a fazer, vivendo em nosso mundovida matematicamente influenciado, matematicamente gerado e matematicamente transformado, é responsabilizar um modelo quando ele falha, ao invés de apreciar o modelo e, ao mesmo tempo, entender os modos pelos quais modelos e representações passam a fazer parte da nossa realidade: “A matemática fundamenta a modulação e a constituição de uma ampla gama de fenômenos sociais e, desse modo, torna-se parte da realidade.” (SKOVSMOSE, 2005, p.90). Vivemos em um ambiente em que interagem, de modo magnífico, modelos baseados numa realidade virtual e uma realidade já construída. Assim, muita tecnologia de informação se materializa em pacotes que podem ser instalados e operar em conjunto com outros pacotes. Todos esses pacotes têm a matemática como ingrediente decisivo. O racional torna-se real, embora nada indique que o real se transforma em racional. Os criadores de modelos parecem justificar-se quanto aos modelos que criam, mas podem alegar não ter nada a ver com as decisões políticas tomadas com os modelos, ou por conta dos modelos.

Quem cria e gerencia o modelo não pode ser responsabilizado pelas decisões políticas tomadas com base no modelo, e os que, do ponto de vista político, são responsáveis pelas tomadas de decisão, afirmam, sempre, ter consultado os especialistas. E assim, em muitos casos, as operações do modelo podem ser mantidas a uma distância conveniente das implicações das ações tomadas com base no e/ou a partir do modelo. As implicações das ações tomadas a partir do modelo dissipam-se do ponto de vista da visibilidade moral. Este é, também, um dos aspectos a ser considerados sobre o modo como a matemática funciona no panorama da tomada de decisão.

Quando consideramos a matemática em ação, consideramos ações. E as ações não podem ser vistas como tendo um valor especial, qualidade, confiabilidade ou credibilidade apenas porque a matemática está nelas envolvida.

Isso leva Skovsmose a considerar o paradoxo da razão: por um lado, a matemática, como uma parte da ciência, parece representar a forma mais refinada de conhecimento. Concebemos a história da matemática como intimamente ligada aos mais impressionantes desenvolvimentos do conhecimento humano e compreensões sobre a natureza. Skovsmose sugere que não devemos considerar a matemática meramente como uma estrutura ou um sistema adequado para processos de modelagem, mas sim como parte de um sistema mais complexo de recursos. Se queremos entender como a ciência opera na sociedade de hoje temos que considerar como o mecanismo da razão opera. Ampliar a visão de tal modo pode não resolver o paradoxo da razão, mas nos ajuda a iluminá-lo. Se não pudermos confiar na razão, uma crítica à razão parece ser necessária.

Paradoxo é outro conceito fundamental no trabalho de Skovsmose. Ele tem falado muito sobre aporia, um conceito recuperado de alguns excertos de Aristóteles e das análises de Platão sobre a irredutibilidade e indecidibilidade de uma ideia. Como parte dessa tradição intelectual, a aporia não é um estado a se superar, visando a recuperar a certeza (seja pela razão, pela força, ou por outros meios), mas uma oportunidade para fazer novas perguntas, para ver as coisas de modos diferentes, e criar novas maneiras de entender a nossa situação, como nos sentimos realizando algo importante, útil, significativo, de forma eficaz e pessoalmente gratificante. No In Doubt, Skovsmose escreve que não é tanto que já não podemos encontrar verdades; o “problema”, ele diz, é que “podemos facilmente ser sobrecarregados com verdades” Na verdade não fazemos nada quando simplesmente estabelecemos uma verdade. “Verdade” é uma coisa muito desinteressante … Verdades interessantes surgem apenas de um processo de busca ou em resposta a alguma preocupação. As verdades interessantes estão vinculadas a uma certa perspectiva. A verdade sem uma preocupação ou uma perspectiva não é, realmente, algo que valha a pena mencionar. (SKOVSMOSE, 2009, p. 103).

Em seus mais recentes livros, Skovsmose está preocupado com o modo como nosso mundo-vida é fabricado pela educação matemática. Considerando a matemática como uma performance, ele indica que devemos nos preocupar com o modo como a matemática organiza as coisas para nós, como a matemática pode estar contaminada por concepções: nosso modo de ver, de ignorar e de acessar o nosso mundo, estando nele, são – no mínimo – parcialmente estruturados pela matemática e pela educação matemática. Nesse sentido a matemática nos dá estratégias, constitui parte dos processos para a tomada de decisão e desempenha papéis significativos na aprendizagem cultural que define nossos gostos e valores relacionados à realidade e ao modo como criamos sentidos, estabelecendo contingências e produzindo objetividades. Assim, parece curioso que alguém possa questionar essa poderosa influência global da matemática e da educação matemática, ao mesmo tempo em que questiona práticas de segregação e estratificação, de inclusão e exclusão, que levam muitas pessoas a ser completamente alijadas de muitos dos conceitos e modelos de raciocínio que a matemática nos promete. Isto é, naturalmente, parte da aporia a que Skovsmose se refere; ao mesmo tempo em que levanta a questão sobre estarmos ou não nos autovalorizando com nossas afirmações sobre a importância da educação matemática. É isso que Skovsmose observa no final do Travelling.

Há a noção foucaultiana de que as práticas profissionais, tais como educação matemática, se autoperpetuam, criando problemas e práticas retroalimentadas numa constante necessidade de especialização profissional.

No entanto, supondo que nossos fazeres têm alguma importância, ao menos para nós e para as pessoas com as quais interagimos, e havendo indicações de que a educação matemática deixa algum tipo de marca no nosso mundovida, devemos aceitar que ela tem condições de dar poder e subtrair poder. Ela tem a capacidade de enrijecer-se e alimentar aspectos problemáticos do desenvolvimento social, mas pode, também, por outro lado, contribuir para a criação de uma cidadania crítica e, deste modo, apoiar ideais democráticos. Os papéis sócio-políticos da matemática não são fixos nem determinados. É nesse sentido que Skovsmose pensa a educação matemática como sendo crítica, e é também neste sentido que ele vê a educação matemática como um conjunto de aporias. A educação matemática crítica não é – nunca foi, ainda que alguns equivocadamente pensem assim – um campo que busca guiar-se pelo progresso ou identificar-se cientificamente com redes de excelência, com as melhores práticas, com os meios mais adequados para se atingir determinada finalidade.

Para trabalhar em educação matemática como educador matemático crítico é necessário preocupar-se com os desafios evocados pela natureza crítica da educação matemática. Desta forma, aqueles que trabalham como educadores matemáticos críticos conduzem seus esforços a partir de um ponto de vista particular, um ponto de vista que, direta ou indiretamente, examina as formas com que os processos de globalização e segregação contaminam a educação matemática, exploram o significado de ir além da modernidade e da pósmodernidade, constroem a matemática como uma matemática em ação, e incluem nessa construção a necessidade de uma preocupação em relação ao poder e ao conhecimento. Estas características do ponto de vista crítico refletem, além disso, a aporetica incerteza em relação às possíveis funções sócio-políticas da educação matemática, que compõem a própria natureza crítica da educação matemática. E esta é, aparentemente, uma dupla aporia – uma qualidade recursiva, auto-reflexiva e aporética dos conceitos explosivos em geral e, em particular, do conceito explosivo que é a educação matemática – que configura a verdadeira complexidade com a qual estamos envolvidos: como uma forma hegemônica de estruturação, a educação matemática não só define o nosso mundo e fabrica a nossa objetividade como é, na verdade, o nosso mundo-vida.

Trabalhar com estas questões é como saltar para fora da Terra a fim de melhor entender o que é a vida na Terra. Mas podemos não ser capazes de sobreviver a um tal processo de investigação… Então, o que devemos fazer? Skovsmose sugere que tomemos a natureza aporética da educação matemática crítica como foco: o Iluminismo presumia uma conexão entre o conhecimento e o progresso, criando a expectativa enganosa de que nosso trabalho, de certo modo, faz diferença. Seríamos capazes de avaliar nossos esforços a partir de critérios pautados no progresso. A situação aporética implica que nenhuma fundamentação, nenhuma crítica da razão (na forma de um apparatus da razão) é suficiente, ainda que não possamos escapar às exigências de uma tal crítica.

Skovsmose afirma que é isso que o leva à pergunta “Como é possível construir uma sensibilidade conceitual para o funcionamento sócio-político da educação matemática e às operações da razão em geral?” (SKOVSMOSE, 2005, p. 214). No Travelling ele sugere nove elementos que deveriam ser temas de nossas preocupações: a matemática, o conhecimento, a reflexão, o aprendizado, os alunos, os conflitos, a matemacia, a segregação e a globalização5. No In Doubt ele se volta para a própria linguagem, sugerindo que estes nove (e outros) termos deveriam pesar significativamente num sistema semiótico de práticas cotidianas, concluindo que esclarecer qualquer um desses termos é uma empreitada explosiva, pois a análise de algo exige considerarmos esse algo em seu contexto, no todo. A aparente impossibilidade de tal trabalho torna-se menos avassaladora ao final do In Doubt, quando Skovsmose evoca o conceito de epoché da fenomenologia, visando a suspender as formas de conhecimento e presunções, dando suporte à percepção direta a fim de estudar a percepção em si. Se tomarmos a matemática e os modos matemáticos de ser e de pensar como características significativas do nosso mundo-vida, podemos, em termos fenomenológicos, reconhecer o desejo aparente de buscar fundamentações, mas, também, de projetar formas de trabalho que exigem refletirmos sobre aspectos particulares de nosso mundo-vida, estando imersos nesse mundo-vida.

E, aqui, podemos começar nossa jornada com Ole Skovsmose: no estudo de nossos mundo-vida, que são tão ricos em incertezas. Skovsmose afirma que nosso mundo-vida está inundado de incertezas, e discute como essa inundação nos leva à questão da responsabilidade. Na verdade, a pergunta existencial evocada pela incerteza é: o que vamos fazer?. Estamos condenados a agir face à incerteza, ou seja, devemos assumir a responsabilidade por aquilo que fazemos, dado o que sabemos e podemos pensar.

Conheci Ole Skovsmose em Berlim, em 1989. Ele era um pesquisador relativamente jovem, com ideias provocativas, e tinha vindo à Alemanha para um seminário de Christine Keitel, apresentar alguns dos seus primeiros trabalhos sobre matemática, tecnologia e democracia. Viajar e compartilhar suas ideias através das culturas já era, então, um aspecto-chave de seus esforços intelectuais.

Eu também era um viajante, um norteamericano vivendo em Berlim enquanto realizava meu doutorado sobre o discurso da educação matemática. Imediatamente percebi a importância da educação matemática crítica e tenho acompanhado de perto o trabalho de Skovsmose ao longo dos anos. Recomendo seus últimos livros e os vejo como uma introdução acessível a muitas das suas ideias. Naquele nosso primeiro encontro, o que me impressionou, enquanto tomávamos café sentados no gramado da Technische Universität, foi a humildade e curiosidade penetrante de Skovsmose; ele não estava interessado em mostrar-se como alguém especial, muito pelo contrário, ele motivava os diálogos interculturais e deles participava, fazendo autocríticas. Na época, senti como se eu, finalmente, tivesse entendido o que alguns antropólogos querem significar com a noção de antropologia como crítica. Nossa conversa não levou nenhum de nós a se tornar um objeto de estudo do outro, mas fomos imediatamente apanhados numa teia de interações Eu-Tu, pensando a matemática e a educação matemática num processo de desenvolvimento. Acredito que os textos de Skovsmose trazem um sabor de diálogo, como aqueles que tive com ele em Berlim. Cada um desses dois livros, dos quais agora apresento a resenha, estende a metáfora da viagem em e pela Educação, enquanto viajamos no e pelo mundo.

Depois de lê-los, o leitor interessado pode, valendo-se das bibliografias, buscar artigos e livros anteriores, escritos durante suas viagens pelo mundo, passando pela Europa, África e América Latina.

Há algo a ser dito sobre os resultados de uma nova educação matemática pós-colonial, que surgiu graças a estudiosos como Skovsmose, acadêmicos preocupados com questões relativas à equidade e ao imperialismo, que dispensaram significativa parte de seu tempo colaborando para além das fronteiras nacionais e culturais. Permanece, na maioria das comunidades nacionais de educação matemática, um forte olhar para dentro, que ignora os tipos de ideias que poderiam resultar de um esforço global em educação matemática crítica.

Mesmo alguns pesquisadores e participantes de conferências internacionais como o ICME (International Congress on Mathematics Education), o CIEAEM (International Commission for the Study and improvement of Mathematics Education), o PME (Psichology of Mathematics Education) etc., em suas apresentações e debates nessas conferências, estão presos nos pântanos de ideologias iluministas e discursos progressistas que, geralmente, ignoram questões relativas à globalização, à segregação, à matematização implícita. Na verdade, desprezam a maioria dos nove nós do discurso da educação matemática crítica que estão no cerne da vida profissional de Skovsmose. Essa constatação, entretanto, não significa que seu trabalho tem tido pouca importância, mas que apenas ele e alguns poucos têm se esforçado para criar o campo da educação matemática crítica. Recebo, então, esses dois livros como uma celebração de sucesso. As histórias que eles trazem são exemplos de comparações internacionais e interculturais, e da reflexão pessoal e analítica que pode acompanhar ou surgir dessas comparações. Os dois livros aqui apresentados são um excelente começo para um cânone deste subcampo, registrando um conjunto de tradições intelectuais, reflexões pessoais e histórias de uma prática que podem ser úteis aos que pretendem aproximar-se da educação matemática crítica. Os que viajam com Skovsmose há mais tempo também têm muito a ganhar com essas novas obras. Esses dois livros são mais acessíveis – financeiramente falando – do que alguns de seus clássicos, como o Toward a Philosophy of Critical Mathematics Education, e incluem novas sínteses de muitas das ideias que o autor tem divulgado em vários textos ao longo dos anos: parece mais fácil pensar sobre essas questões todas se temos à disposição uma atualização tão coerente.

Notas *

Tradução de Thiago Pedro Pinto. Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus Campo Grande e doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência da UNESP de Bauru. E-mail: thiagopedropinto@yahoo.com.br.

Traduzido do original On Uncertainty, Doubt, Responsibility, and Perpetual Journeys. Review Essay of Two Recent Books from Ole Skovsmose por solicitação do autor e revisado pelo editor da Revista BOLEMA.

1 A frase em inglês tem um jogo de palavras impossível de manter na tradução: “a clarification of ‘something’ brings us to consider ‘everything’”.

2 Ghettoizing.

3 mathematics-in-use.

4 Experienced curriculum.

5 Mathematics, knowledge, reflection, learning, learners, conflict, mathemacy, ghettoizing, and globalization.

Peter Appelbaum – Doutor em Educação pela University of Michigan, Professor de Educação Matemática e EstudosCurriculares e diretor consultivo da Arcádia University, Filadélfia, EUA. Autor de On becoming a teacher and changing with mathematics (2008) e Children´s book for grown-up teachers: reading and writing curriculum theory (2007). E-mail: appelbaum@arcadia.edu.

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Itamar Freitas

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