Transformação e Crise na Economia Mundial | Celso Furtado
Em fins de 2006, a Editora Paz e Terra lançou, em forma de livro, dez artigos de Celso Furtado, escritos ao longo dos anos sessenta, setenta e oitenta do século passado, sobre economia mundial. Especificamente, os artigos concentram-se nas modificações do cenário externo após o fim da segunda grande guerra mundial. Sobre o fio condutor destes textos, que contém, de modo geral, as mesmas idéias-força desenvolvidas de modo distinto ao longo dos anos em que escrevia, Furtado escreve:
“A idéia central, desenvolvida ao fio de dois decênios, é simples: as modificações políticas causados pelo segundo conflito mundial conduziram à integração dos mercados das economias capitalistas industrializadas, reduzindo a capacidade reguladora dos estados-nacionais, e aumentando a autonomia de ação das grandes empresas. (p.9-10)”
Os textos mostram toda a maestria de Furtado na discussão do cenário econômico – neste caso, internacional. A narração passa pela descrição de como os Estados Unidos passaram de uma situação, no pós-guerra, de superávits na balança comercial e na conta-corrente, para uma progressiva situação de elevação de suas importações e de exportação de capitais. Deve-se lembrar que naquela situação de “escassez de dólares” e de investimentos domésticos na Europa, os Estados Unidos desempenharam um papel tutelar no sentido de elevar suas importações e de instalar filiais de suas empresas em muitos países europeus. Isso provocou, coloca Furtado, a posterior valorização do dólar, a perda de competitividade das exportações norte-americanas, e uma elevação das importações deste país – que resultaram em desemprego e perda de posições no comércio internacional para os Estados Unidos.
Furtado sempre ressalta que a lógica da nova ordem econômica do pós-guerra é a desregulação das atividades internacionais dos conglomerados multinacionais e dos bancos, para os quais não há uma legislação que regule suas atividades. O resultado, põe Furtado, é a elevação das flutuações, e a perda de poder de atuação dos Estados nacionais em induzir os movimentos das atividades econômicas. Explica-se assim o pano de fundo geral da crise das políticas inspiradas nas idéias de Keynes.
“A partir do momento em que as filiais de uma empresa localizadas no exterior têm acesso ao mercado financeiro internacional, já não é possível submeter a matriz a uma política de crédito de âmbito nacional, ou seja, fundada em equilíbrios macroeconômicos definidos internamente. Se lhe convier contornar as limitações da política local, a matriz poderá, de uma forma ou de outra, obter recursos de suas filiais. A ação das autoridades locais fica circunscrita às empresas que não se transnacionalizam, o que passa a ser forte incentivo a engajar-se nesta direção.” (p. 231)
Podem-se vislumbrar as conseqüências disto no caso de localidades onde se verifica índices de desnacionalização de aproximadamente 40% da estrutura produtiva, como o Brasil.
Furtado não se esquiva, é claro, de descrever como o crescimento da massa enorme de capitais sem aplicação após a elevação dos preços do petróleo nos setenta impactou na periferia do sistema econômico mundial: crescimento com base na importação de capital, endividamento, e tutela do Fundo Monetário Internacional. (Liquidando, “de quebra”, o campo socialista mundial, que também embarcara no endividamento fácil do período.) Critica a utilização deste órgão para a gerência das dívidas do terceiro mundo, função para a qual nunca fora criado. E indica como se transformou numa agência de manutenção dos interesses financeiros dos Estados Unidos.
Celso Furtado, aqui e ali, nestes textos escritos até o fim dos anos oitenta, parecia deixar transparecer um otimismo de que as contradições iam levar a uma resolução positiva dos problemas. Como a criação de mecanismos de regulação internacional, por exemplo. Diferentemente da postura de suas obras nos anos noventa, pessimistas, dado que os Estados Unidos reafirmavam seu poder mundial e a desregulação atingia níveis nunca antes vistos, com crise estendida para toda a periferia, Furtado ainda parecia crer numa possível autonomia do Estado e numa resolução não-conflitiva das disputas globais.
“Existem indícios de que se gesta uma época de convergências para uma concepção do desenvolvimento que implica em um novo projeto de civilização. (p.120)”
Quanto à China, nutria o mesmo otimismo: “Não é de esperar-se que este país, de cerca de um bilhão de habitantes e baixo nível de acumulação, enverede pelo caminho das formas de consumo que são favorecidas pela atual OEI (Organização dos Estados Independentes).” (p.141)
Não importa, porém, que o elemento utópico, que Furtado sempre manteve como norte em seus trabalhos, tenha sido obscurecido pelos tristes rumos que a economia internacional (e brasileira…) conheceu nos anos noventa. A obra é uma descrição histórica exata, crítica e detalhista do contexto 1945-1990. Uma obra de um pensador que nunca se curvou aos modismos e ao falatório fácil típicos dos deslumbrados economistas terceiro-mundistas que freqüentam as universidades metropolitanas.
Resenhista
Vitor Eduardo Schincariol – Doutorando– DH – FFLCH – USP.
Referências desta Resenha
FURTADO, Celso. Transformação e Crise na Economia Mundial. São Paulo: Paz e Terra, 2006. Resenha de: SCHINCARIOL, Vitor Eduardo. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 04, n. 07, p. 116-118, junho, 2007. Acessar publicação original [DR]