Tragédias, batalhas e fracassos: as derrotas brasileiras nas Copas do Mundo (1950-1982) | Leonardo Pacheco Turchi
Não são apenas as vitórias que compõem o imaginário futebolístico. “Instrumento de renovação da vida” e o “começar de novo”, tal como afirmou Carlos Drummond de Andrade – oportunamente citado por Leonardo Pacheco na introdução do seu livro “Tragédias, Batalhas e Fracassos” – as derrotas têm um papel essencial dentro do universo esportivo. Publicado com base em seu doutorado defendido no Departamento de História da UFM, o livro de Leonardo tem como objetivo pensar as derrotas brasileiras nas Copas do Mundo entre 1950 e 1982 a partir das narrativas, discursos e imagens dos períodos pesquisados que, em sua maioria, centravam as análises nas questões ligadas à masculinidade e ao envelhecimento2. Para isso, relacionou estes dois temas principais para analisar o universo futebolístico, aqui compreendido por meio de seu principal momento ritual: a Copa do Mundo de Futebol.
Dividido em seis capítulos, cada dedicado a uma Copa do Mundo, o livro permite evidenciar que embora as questões e elementos vinculados às derrotas variem a cada evento, assinalados por um caráter multifacetado, que alternam concepções valorativas ora positivas e ora negativas, tais discursos relacionados às masculinidades e envelhecimento são marcados por certas permanências. A compreensão hegemônica de masculinidade é problematizada e reelaborada ao longo do trabalho, visto que é possível pensar a existência de múltiplas masculinidades em um mesmo contexto. Nesse sentido, faz-se importante o estudo do masculino em relação a outros conceitos e marcadores (geracional, de classe, corporal, racial etc.), decisivos para uma compreensão relacional do que é ser homem em determinados contextos socioculturais. Nesse sentido, o autor pensa o gênero como um conceito plural e relacional, construído e reconstruído socialmente, que abarca múltiplas experiências e marcado por diversas relações de poder.
O segundo conceito que permeia toda a obra, o geracional, também é construído socialmente e marcado por relações de poder, bem como heterogêneo, visto que os discursos geracionais são marcados por uma pluralidade de experiências. Em sua análise, o autor evidencia as relações de dominação entre juventude e envelhecimento, compreendidos opositivamente por meio dos aspectos positivos atrelados à primeira e negativos à segunda. Uma relação necessária, como lembra o autor, pois se “não é possível analisar a masculinidade sem fazer referências à feminilidade, também não é possível analisar o processo de envelhecimento sem mencionar o seu outro, a juventude, que deixa de ser vista como uma categoria etária, e passa a ser encarada como um estilo de vida” (p.21).
Porém, vale apontar que o autor acerta ao não restringir as investigações sobre as derrotas a estas questões, pois também retoma outras dimensões abordadas com freqüência em outras pesquisas, a saber: o debate sobre futebol-arte e futebol-força; os discursos sobre raça e miscigenação; as disputas políticas e regionais em torno das seleções brasileiras etc. Questões essências para problematizar espaços rituais como a Copa do Mundo, principal evento de um fenômeno social de grande amplitude e relevância, e por isso, momento privilegiado dentro da sociedade por “dramatizar” valores, relações e comportamentos sociais, como bem já apontara os ensaios pioneiros de Roberto DaMatta.
As Copas não são apresentadas de forma linear, mas sim por meio de três agrupamentos. O primeiro aborda o que o autor denominou de “Tragédias”, iniciando pela que é considerada a maior derrota brasileira, conhecida como Maracanazzo, na Copa de 1950, disputada no Brasil, que gerou inúmeras considerações sobre diversos temas, como nacionalismo, modernização, raça etc. Leonardo Pacheco acerta ao retomar, a partir das várias e destoantes informações produzidas, alguns destes debates, confrontando os muitos pontos de vista e relacionando-os com as questões sobre masculinidade e envelhecimento. A segunda tragédia, vivida no estádio espanhol do Sarriá em 1982, aborda os discursos que destacavam o resgate do consagrado estilo brasileiro de jogar, embora fosse cobrado do treinador Telê Santana um futebol-arte eficiente, menos bailarino (feminino) e mais decisivo (masculino). Deste modo, se o envelhecimento não foi questionado, a masculinidade era uma questão em pauta, com acusações sobre as atuações, ora delicadas e ora desengonçadas. Acusações que faziam emergir um tipo de masculinidade hegemônica e provocava “a marginalização de outros tipos de masculinidades e de outras sexualidades” (p.80).
A segunda parte, denominada “Batalhas”, traz o capítulo dedicado à Copa do Mundo de 1954, cujo foco central foi a derrota da Seleção Brasileira contra a entrosada, disciplinada e vertiginosa equipe húngara, cujas ações foram narradas como uma batalha – conhecida como a “batalha de Berna”. Os discursos após a derrota destacavam uma seleção brasileira marcada ora pelos excessos (uso da força em defesa da honra) e ausências (nervosismo e descontrole emocional) de masculinidade. Assim, a análise empreendida traz as distintas percepções sobre a masculinidade, bem como uma mudança no entendimento do uso da violência e agressividade na partida travada em Berna. No capítulo 4, o autor analisa as narrativas e imagens sobre a derrota na Copa do Mundo de 1978, centradas principalmente na idéia de “jogador polivalente”, discussão que permite ao autor esquadrinhar a crise da masculinidade dos brasileiros no universo futebolístico. Para o autor, a “categoria homem polivalente instaura uma crise de identidade na maneira como se pensava a autoimagem masculina na esfera esportiva no Brasil” (p.142), pois distorceria o modelo masculino inventado e consolidado pelas atuações dos brasileiros nos títulos anteriores.
O quinto capítulo sobre a derrota na Copa do Mundo de 1966 abre o último segmento do livro, dedicado aos “Fracassos”. Nesta Copa, os discursos e as representações da derrota se voltam para as acusações de desorganização estrutural do selecionado. Diversas questões logísticas foram criticadas: o número de convocados na primeira lista (44 jogadores); falta de planejamento da preparação física, que resultou em contusões; o desentrosamento e a demora na definição de um padrão de jogo etc. Este fracasso provocou percepções negativas da masculinidade e envelhecimento da equipe (formada por alguns veteranos das duas conquistas anteriores), principalmente quando comparadas com as expectativas criadas a partir dos títulos e vitórias, quando uma autoimagem vencedora fora elaborada, masculinidades renegociadas e um jeito brasileiro de jogar reinventado. Por fim, no último capítulo dedicado à Copa da Alemanha em 1974, destacam- -se nos discursos as acusações de desorganização; envelhecimento; falta de agressividade e virilidade; e um esquema tático defensivo, diferente do estilo brasileiro de jogar. Assim, a “ousadia jovial e a raça, aliadas à vontade e à hombridade, características que haviam marcado a conquista anterior, foram substituídas pela cautela, pelo acovardamento e pela desmotivação” (p.201). Elabora-se uma nova crise da masculinidade a partir da mesma estratégia discursiva utilizada em outros períodos, decorrente da desconstrução de um “jogar à brasileira” consolidado com os títulos.
Deste modo, se as derrotas compõem com a vitória o “jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo”, como frisou o poeta Carlos Drummond de Andrade, elas precisam ser pesquisadas, tal como propõe o livro aqui resenhado, que teve como objetivo principal compreender a (des) construção de masculinidades no universo esportivo, bem como da questão geracional envolvendo as categorias de juventude e envelhecimento, por meio dos discursos, narrativas e imagens elaborados nas derrotas brasileiras entre 1950 e 1982. Portanto, este estudo das narrativas e imagens das derrotas desnuda estratégias, diferenças e identidades que perpassam o campo esportivo e que são fundamentais para a compreensão do mesmo. O que aponta a necessidade de novos trabalhos que contemplem outros períodos e as Copas mais recentes, eventos que podem trazer novas e antigas questões para debate.
Nota
2 O autor utilizou como fontes de pesquisa imagens e narrativas produzidas por veículos da mídia impressa, entre eles: as revistas Placar, Realidade, O Cruzeiro e Manchete Esportiva; e o jornal Estado de Minas. Além do material de imprensa, o autor também teve como referência livros e relatos de jornalistas sobre as Copas do Mundo, bem como algumas biografias de atores do universo futebolístico (notadamente jogadores), além de material de vídeo e documentários sobre a participação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo.
Resenhista
Enrico Spaggiari – Doutorando em Antropologia Social pela USP.
Referências desta Resenha
PACHECO, Leonardo Turchi. Tragédias, batalhas e fracassos: as derrotas brasileiras nas Copas do Mundo (1950-1982). Goiânia: Canône, 2010. Resenha de: SPAGGIARI, Enrico. As derrotas e suas múltiplas experiências. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.12, n.22, p.205-208, jul./dez. 2010. Acessar publicação original [DR]