O livro que será apresentado nas páginas seguintes é, antes de tudo, um abraço. Falo nesses termos porque, enquanto mulher e pesquisadora feminista, vejo reverberar, nesse monumental trabalho, um rompimento de fronteiras que me impedem de olhar unicamente através da lente acadêmica, pois ele também toca no ponto de minha própria experiência. É nesse sentido que o pessoal e o político convergem para se tornarem faces de um mesmo evento, permitindo-me dizer às mulheres que se fazem críticas das desigualdades sociais, assim como eu, que é sempre e cada vez mais necessário que leiamos sobre nós mesmas, que sejamos todas ouvidos e olhos e bocas em coletividade.
É por isso que brindo ao lançamento da antologia Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010) (2017). Nesse abraço de mais de 800 páginas, reflete-se o trabalho coletivo de sete anos de grandes mulheres pesquisadoras dos vários cantos do Brasil. A partir do extenso e colaborativo processo de seleção, em que foram traduzidos para o português 21 ensaios – originalmente publicados em inglês, francês e espanhol, a maioria em traduções inéditas para o português –, evidencia-se o cuidado e a abrangência desse projeto que, além do trabalho de tradução, comporta um lado crítico em forma de comentário com as vozes de muitas pesquisadoras nacionais e internacionais. Tudo isso se faz presente desde a capa. A tradução gráfica da tela No jardim elétrico da artista plástica alagoana Marta Emília, que compõe sua exposição Acrilírika (2015), ilustra coerentemente a relação simbiótica entre natureza e artifício, tema bastante teorizado no contexto do pensamento feminista. Aliás, a proposta interdisciplinar que comunica arte e cultura não é pura casualidade, se considerarmos o fato de que suas organizadoras estão imersas nos terrenos dos Estudos literários e linguísticos, tecendo conexões teórico-críticas com as mais variadas esferas do conhecimento, dentre as quais, os muitos feminismos, os Estudos de gênero, os Estudos pós- e de- coloniais, os Estudos queer, entre outras variações.
Por meio da tradução enquanto processo de deslocamentos e cruzamentos de diversas culturas, a antologia surge também para suprir uma lacuna epistemológica do contexto crítico brasileiro no que concerne aos textos feministas mais clássicos, assim como, em perspectiva diacrônica, permitir-nos visualizar melhor os percursos e desfechos, sempre provisórios, das discussões em torno da “classe social, geração, raça/etnia e sexualidade, bem como questões da ecologia e das mobilidades dos sujeitos”, conforme descrevem as organizadoras na apresentação do volume (Brandão et alii, 2007:17).
Neste momento de truculenta renovação fundamentalista pelo qual tem passado a cultura e a política brasileiras, a publicação dessa coletânea soa como uma das faces de uma contranarrativa de resistência povoada por membras/os da sociedade acadêmica interessadas/os na construção de um sentimento de não mais temer as ontologias pretensamente inquestionáveis. Sob a organização das Profas. Dras. Ana Cecília A. Lima, Claudia de Lima Costa, Ildney Cavalcanti e Izabel Brandão, o trabalho coletivo de mapeamento, seleção e tradução, que constitui a antologia Traduções da cultura, torna-se marco para a abertura de portas a outros projetos que visem à democratização do conhecimento, do ponto de vista dos feminismos, dos Estudos de gênero e queer; e à criação de espaços de trânsito e coalizão em escala transnacional.
Se, por um lado, a organização dos textos segue a uma coerência cronológica que perpassa as décadas de 70, 80, 90 e 10, por outro, ela não se reduz a uma linearidade no âmbito da crítica, pois cada um dos ensaios se entrecruza em diversas nuances epistemológicas. Talvez não seja ao acaso que o primeiro deles, a encenar as rotas de entrada dos anos de 1970, “Quando da morte acordamos: a escrita como re-visão”, de Adrienne Rich, traga à tona a necessidade de retorno crítico ao passado como forma de reescrever a história numa perspectiva anti-opressora. Em menor ou maior escala, esse é o fio condutor que une as diversas partes dessa antologia: o exercício contínuo de re-visão da história, entendida como “o ato de olhar para trás, de ver com um novo olhar, de entrar em um texto a partir de uma nova direção crítica” (2017:66). Esse ato, além de político, implica também um ato de sobrevivência do ponto de vista da experiência das mulheres, ainda que, no panorama histórico atual, possamos estender essa ideia à reflexão da categoria do humano, por compreender que a re-visão das bases fundadoras dessa instância ontológica deve contribuir para um avanço ético no modo como pensamos acerca de nós mesmas/os e nas relações intersubjetivas e interespécies que nos atravessam.
A divisão da antologia em blocos que abarcam décadas serve ao público brasileiro, de modo mais geral, como um guia de leitura crítico, pois viabiliza a compreensão da trajetória do pensamento feminista, desde os interstícios setentistas, quando a preocupação estava mais voltada à tomada de voz das mulheres e ao questionamento da estrutura social hierárquica, até os desdobramentos interdisciplinares posteriores. O primeiro impulso tomado pela crítica foi, assim, buscar outros caminhos para entender as disparidades entre homens e mulheres e, consequentemente, denunciar a origem dessas diferenças como forma de atenuá-las. Nesse contexto, a re-visão histórica ganhou contornos diversos mesmo tendo se projetado mais fortemente com a polêmica dialética entre natureza e cultura, como é expresso por Sherry B. Ortner em um dos textos que integram a coletânea, “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?”, publicado pela primeira vez em 1972. Ele reverbera um sentimento bastante comum a várias feministas da época que, assim como Ortner, desafiaram a presumida situação de “desvalorização universal das mulheres” e engajaram-se na luta por direitos básicos, seja no âmbito ativista ou acadêmico. A reinvindicação de que as mulheres não deveriam mais serem reduzidas às funções bio e fisiológicas do corpo, cujo efeito era a submissão doméstica e política, marcou esse período. Desse modo, passou a não ser mais aceita por um grupo de pensadoras e ativistas a ideia de que a inferiorização da mulher no âmbito familiar e sua exclusão do setor público acontecia em decorrência de uma propensão natural do corpo e da psique que se traduzia numa deficiência cultural. Em outras palavras, aspectos naturalmente irrefutáveis atrelados ao corpo das mulheres, como a menstruação e a maternidade, por exemplo, eram sustentados para reforçar o esquema patriarcal que, com a mesma intensidade, atribuía aos homens a função social de sujeito público dotado de capacidade intelectual diferenciada e racional por natureza. É sobre essa realidade hierarquizada que Ortner questiona de forma arguta e conclui:
Logo, é claro que a situação deve ser discutida de ambos os lados; os esforços dirigidos unicamente à mudança das instituições sociais, por exemplo, por meio do estabelecimento de quotas salariais ou por meio da aprovação das leis de igualdade de trabalho e salário não podem ter efeitos de longo alcance se a linguagem e as figuras culturais continuam a fornecer uma imagem relativamente desvalorizada da mulher (Ortner, 2017:122).
Note-se que a autora coloca a possibilidade de mudança social como condição e consequência de uma transformação que deve ocorrer primeiramente no contexto da linguagem. Vai se tornando cada vez mais evidente que o sistema de representação vigente, ao operar nos domínios do discurso, é o principal elemento de uma economia patriarcal que oprime as mulheres, definindo-as como não sujeitos e localizando-as rigidamente fora dos limites da linguagem e, assim, fora também da história. Nesse sentido, para que a realidade social fosse modificada, era necessário que houvesse o que Hélène Cixous definiu, em célebre ensaio intitulado “O riso da medusa”, como uma “tomada da palavra” (Cixous, 2017:136). Para ela, ainda que a história da escrita esteja muito próxima à história da razão, fato que nos permite constatar a equivalência entre a exclusão presumida das mulheres e a colonização falocêntrica do pensamento, é na escritura que reside a “própria possibilidade da mudança” (grifos da autora, p. 134). Publicado pela primeira vez em 1975, o tom exclamativo que perpassa todo o ensaio, aproximando-o, em certa medida, de características presentes em manifestos, exprime os caminhos que seguiu o ativismo e a crítica feminista da época, sempre em luta contra o silenciamento da mulher. A partir das teorizações de Rich, Ortner e Cixous, que integram, juntamente com Laura Mulvey, Sandra Gilbert & Susan Gubar, a primeira parte da antologia Traduções da cultura, somos capazes de reconhecer os impactos iniciais do pensamento feminista norteamericano e europeu, assim como restabelecer um pouco da atmosfera que serviu de base para as muitas ramificações da crítica que ocorreram mais fortemente em meados da década de 90 em decorrência das questões referentes à interseccionalidade.
A parte da antologia que compreende os anos de 1980 está concentrada, assim, na época em que o processo de re-visão se estendeu às práticas feministas e possibilitou uma crescente interdisciplinaridade com áreas como a antropologia, a psicanálise e a filosofia, o que contribuiu para fortalecer esse campo de estudos em perspectiva cultural, política e subjetiva. Seguindo a lógica corrente de que a superação das desigualdades entre mulheres e homens deveria acontecer primeiramente por meio da linguagem, em uma enfática “transformação política dos conceitos-chave” (Wittig, 2017:271), como reforça Monique Wittig no ensaio “O pensamento straight”, originalmente publicado em 1978, a necessidade de extrapolar os limites impostos por uma estrutura de saber construída pela concepção de sujeitos invariáveis e ditada pela heterossexualidade normativa levou algumas feministas à consideração das questões concernentes aos movimentos de liberação gay e lésbica.
A tomada de voz, antes pensada sob o guarda-chuva da homogeneizada categoria “mulher” passou a fazer parte de uma ação mais ampla que atingiu outros grupos sociais desprivilegiados, incitando reflexões que desmistificassem a ideia de coerência identitária tão presente em cada uma dessas instâncias.
Além disso, ao longo da década de 80, a preocupação com a complexidade histórico-cultural das diferenças se mostrou um passo inevitável da crítica, pois uma prática feminista que não levasse em conta outros marcadores sociais, como a classe e a etnia, por exemplo, os contextos sócio-culturais específicos e, além disso, o desejo enquanto elemento fugidio e não presumidamente heterocêntrico, corria o risco de reproduzir a mesma lógica binária opressora a qual propunha subverter. Chandra Talpade Mohanty, em “Sob os olhos do ocidente: estudos feministas e discursos coloniais” (1988), outro texto que integra em versão traduzida a antologia, tangencia essas questões quando discute sobre as relações entre a autorrepresentação discursiva das feministas ocidentais e a representação das mulheres do terceiro mundo.
A autora aponta para o cuidado ético em se evitar metodologias de análise que, ao conceberem as mulheres como um grupo homogêneo, sustentam certa “unidade a-histórica” (2017:330) que restringe suas experiências, ao mesmo tempo em que pressupõe uma relação hierárquica entre mulheres estabelecida pela dialética do sujeito e do objeto, na qual as mulheres do “terceiro mundo” são geralmente vistas como o outro da cultura, em comparação as dos países mais desenvolvidos economicamente. É preciso reiterar que a linearidade cronológica encenada pelos textos não pressupõe uma compartimentalização no campo do conhecimento, apenas ilustra de forma diacrônica e metodológica os passos do pensamento feminista, de modo mais amplo, e suas intersecções.
Os ensaios que estão presentes na terceira parte, cujo subtítulo é “do gênero às suas intersecções”, correspondem ao recorte temporal da década de 90. Dentro desse espaço, observa-se que os rumos da (auto)crítica são cada vez mais favoráveis a uma verticalização feminista, no sentido de promover uma amplificação das outras vozes silenciadas, assim como considerar a complexa e nem sempre coerente formação das subjetividades. A rotulação identitária é tomada sob rasura e isso se deve à insuficiência ética de uma crítica que nega a polifonia humana, como se pode depreender do emblemático texto de Gloria Anzaldúa, “Queer(izar) a escritora – Loca, escritora y chicana”, publicado originalmente em 1991. Refletindo acerca do seu lugar de fala, Anzaldúa revela os paradoxos do ato de nomear quando ele serve à reiterada exclusão das pessoas advindas de contextos culturais não centralizados. A autora aponta para o uso do termo “lésbica”, comumente relacionado às mulheres brancas e de classe média e, assim, por vezes não aplicável a mulheres que, como ela, auto-rotulada “chicana mestiza de classe operária”, trazem experiências culturais que excedem os critérios embutidos nessa nomenclatura, assim como em tantas outras. No entanto, Anzaldúa não nega por completo o rótulo. Aliás, expõe a força contida no ato metafórico de plantarmos os pés no chão e falarmos do lugar de nossas próprias vivências, enquanto leitoras/es do mundo que nos cerca, sem que isso signifique um solapamento das partes que nos constituem por formas que homogeneízem negativamente nossas diferenças. Além disso, a postura de alerta compartilhada por muitas escritoras nos anos de 1990, como é o caso de bell hooks (1992) e Gayatri Spivak (1999), também incluídas na coletânea Traduções da cultura, é um meio útil para a construção de metodologias de análise mais justas histórica e culturalmente.
Susan Stanford Friedman explicita bem essas questões quando traz à tona em seu ensaio ““Além” do gênero: a nova geografia da identidade e o futuro da crítica feminista”, publicado primeiramente em 1996, os aspectos possíveis das novas geografias da crítica que ela classificou como “feminismo localista” (2017:523), no qual a identidade é compreendida como múltipla, contraditória, relacional, situacional e híbrida, afastando-se, com isso, das abordagens da ginocrítica e da ginesia das décadas de 70 e 80 que tomavam o gênero como “pressuposto apriorístico” (2017:556) na formação de identidades estáveis. Os anos de 1990 foram, assim, férteis na elaboração interdisciplinar das novas vertentes feministas que se desenvolveram com mais impacto no atual milênio, em que figuram alguns trabalhos pontuais de nomes como Donna Haraway (2003), Judith Butler (2004) e Greta Gaard (2010). É indispensável mencionar que essas pensadoras produzem desde meados da década de 70, no caso de Haraway, e de 90, em se tratando de Butler e Gaard. A inserção dessas escritoras na última parte da antologia “Anos 2000: novas topografias teórico-críticas” parece uma necessidade especificamente metodológica de situar melhor, no contexto histórico da seção, as temáticas mais discutidas.
O questionamento da primazia do gênero na constituição do pensamento feminista, possibilitado desde 90 com os Estudos queer, suscitou mais recentemente uma crítica profunda do humano em sua presumida autoevidência e a relação que estabelece com o entorno. O pós-humanismo, a ecocrítica e o que vem sendo classificado como “antropoceno” ganham cada vez mais espaço enquanto dispositivos de reconfiguração social – poderosos do ponto de vista histórico-cultural, político, epistemológico e acadêmico – que nos permitem pensar e, quem sabe, materializar sociedades mais justas. Nesse sentido, a organização de Traduções da cultura e a recepção por parte do público leitor brasileiro do amplo corpus de ensaios feministas mais clássicos que comportam a antologia certamente irá acrescentar em muito ao cenário da crítica “local”, contribuindo para investigações acadêmicas no campo das humanidades, e, como efeito, ajudando a fortalecer nossa luta diária contra a grande onda de fundamentalismos que assolam o país.
Referências
ANZALDÚA, Glória. Queer(izar) a escritora – Loca, escritora y chicana. Tradução de tatiana nascimento. In: BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Tradução de Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne. In: BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
FRIEDMAN, Susan Standford. “Além” do gênero: a nova geografia da identidade e o futuro da crítica feminista. Tradução de Alcione Cunha da Silveira & Sandra Regina Goulart Almeida. In: BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
MOHANTY, Chandra Talpade. Sob os olhos do ocidente: estudos feministas e discursos coloniais. Tradução de Maria Isabel de Castro Lima. In: BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
ORTNER, Sherry B.. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?. Tradução de Cila Ankier e Rachel Gorenstein. In: BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
RICH, Adrienne. Quando da morte acordamos: a escrita como re-visão. Tradução de Susana Bornéo Funck. In: BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
WITTIG, Monique. O pensamento straight. Tradução de Ana Cecília Acioli Lima. In: BRANDÃO, Izabel (org.) Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis, EDUFAL, Editora da UFSC, 2017.
Resenhista
Fabiana Gomes de Assis – Doutora em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil. E-mail: deassis.fabianagomes@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-3377-6804
Referências desta Resenha
BRANDÃO, Izabel et alii (Org.). Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC, 2017. Resenha de: ASSIS, Fabiana Gomes de. Feminismo em foco: uma leitura crítica sobre a antologia Traduções da cultura. Cadernos Pagu. Campinas, n.58, 2020. Acessar publicação original [DR]
GEORGE I. P. H. (Aut), SANTOS Y. G. Dos (Aut), As novas políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência: produção local do serviço e relações de gênero (T), Fino Traço (E), MARTINS Barby de Bittencourt (Res), Cadernos Pagu (CP), Políticas Sociais, Saúde, América – Brasil, Relações de Gênero
O que há de novo nas políticas sociais brasileiras? Em que a discussão de gênero pode contribuir para pensar essa novas políticas? Mercantilização da pobreza, privatização e terceirização dos serviços na saúde e na assistência? Em que medida a experiência paulistana contribui para pensarmos o contexto de emergência e popularização de políticas voltadas a programas de transferência condicionada de renda? Ao lermos o título e o sumário do livro, surgem essas questões, que nos fazem avidamente percorrer cada página em busca de novos olhares e discussões sobre o tema. E, de fato, as autoras conseguem discutir cada um desses pontos ao longo desta obra, que é resultado de uma extensa pesquisa de caráter etnográfico na periferia da maior cidade da América Latina.
A zona leste da cidade de São Paulo representa um lócus emblemático devido ao seu histórico de lutas por acesso a direitos sociais. Apesar disso, atualmente, a área é considerada uma das zonas mais socialmente vulneráveis da cidade. É nesse local, mais especificamente em três bairros periféricos da região, que as autoras buscam analisar a presença do Estado por meio de observações participantes e entrevistas semidiretivas com profissionais que atuam ao longo da cadeia dos serviços da saúde e da assistência, bem como com as usuárias destes.
Isabel Georges e Yumi Garcia dos Santos realizam a pesquisa juntas a partir de 2010 até 2012, mas anteriormente, ambas já haviam atuado na zona leste em pesquisas distintas – Georges, por meio dos projetos As novas configurações do trabalho e trajetórias de inserção de populações de baixa renda, A nova gestão da questão social no Brasil e as lógicas territoriais: entre oferta institucional e formas de apropriação dos(as) atores(as) e A nova gestão da questão social no Brasil: entre participação e mercantilização; Santos, por meio de sua pesquisa de pós-doutorado pelo Centro de Estudos da Metrópole. Santos é socióloga e professora do Departamento de Sociologia da UFMG, atua como pesquisadora nas áreas de relações sociais de gênero, políticas públicas, família, trabalho e migrações. Georges, também socióloga, é pesquisadora do Institut de recherche pour le développement/França e professora credenciada do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UFSCar; suas áreas de interesse são as novas configurações do trabalho, informalidade, relações de gênero, atividades de serviço, formas de mobilização e políticas sociais latino-americanas.
Saber sobre o contexto em que as autoras costuram suas pesquisas e sobre seus interesses de trabalho é importante para compreendermos as questões que atravessam a obra. As relações de gênero e raça, bem como as configurações de família e do trabalho feminino, são questões fundamentais e que nos conduzem a pensar as desigualdades sociais de forma multidimensional, considerando o viés da interseccionalidade adotado pelas autoras.
O livro está dividido em três partes. A primeira compreende uma radiografia do perfil das políticas incentivadas pelos organismos internacionais e um resgate histórico da proteção social no Brasil (cap. 2). Além de uma revisão bibliográfica de perspectivas teóricas que possibilitam compreender e discutir acerca da emergência de um novo modelo de políticas sociais dentro de um novo contexto de políticas desenvolvimentistas (cap. 1). Nesse contexto, há uma convergência para políticas familistas por meio de uma gestão sexuada do social, em que ocorre um processo de funcionalização da mulher, o qual estimula sua atuação nas esferas produtiva, reprodutiva e comunitária. Cabe destacar a concomitância dos discursos de empoderamento feminino e igualdade de gênero com a reprodução da divisão sexual do trabalho hierarquizado por meio de programas que centralizam na mulher o papel do cuidado e da manutenção da integração social da família – esfera reprodutiva.
No Brasil, a lógica de participação comunitária nas políticas surge com o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), e ela ainda permanece na história das políticas públicas brasileiras. Tanto a Estratégia Saúde da Família quanto o Serviço de Assistência Social às Famílias (São Paulo) atendem essa lógica e alocam na ponta da cadeia de seus serviços a mão de obra de mulheres e de homens que moram nos territórios de atuação dessas políticas. É essencial salientar que as mulheres são em maior número. Apesar de ser um trabalho precário e mal remunerado, ser agente comunitária em saúde e/ou agente de proteção social representa a inserção da mulher na esfera produtiva e comunitária, bem como uma via de acesso a melhores condições de vida.
A segunda parte do livro aborda a mercantilização da pobreza e como as mulheres atuam e se mobilizam nesse sentido. Primeiramente, as autoras relatam como se deu a constituição das políticas em São Paulo para, assim, entender a privatização existente no município (cap. 3). No município de São Paulo, a prática de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada para políticas sociais e de saúde é frequente. As organizações sociais parceiras que executam os serviços na cidade tornam-se aliadas na execução não apenas de políticas nessas áreas, mas nos mais variados setores – as chamadas privatizações cruzadas, identificadas pelas autoras. Nesse sentido, as políticas sociais surgem como nicho de negócios para essas organizações que atuam na capital paulista.
Nos capítulos seguintes (cap. 4 e 5), as autoras analisam a atuação das operadoras dos serviços em saúde e assistência, com o objetivo de compreender a operacionalização do serviço em âmbito local e os contornos das entidades responsáveis por ele.
As agentes comunitárias de saúde aparecem como uma categoria profissional mais acessível para as mulheres nos territórios pesquisados. Tanto agentes comunitárias de saúde quanto as agentes de proteção social, bem como os profissionais em nível de chefia são categorias ocupadas, em maior número, pelas mulheres. Ser uma agente significa acessar renda e ao mesmo tempo ter condições de permanecer cuidando da família e do lar – a autonomia da mulher aparece de mãos dadas com a permanência nos campos tradicionalmente femininos. Cabe destacar que o fato de serem mulheres, assim como terem origem social semelhante às usuárias, confere maior legitimidade à atuação profissional dessas atrizes.
Quanto às organizações sociais, apesar de terem seus discursos apoiados em diferentes frentes (religiosa ou política), elas partilham de uma moral dos pobres, a do pobre bom e a do pobre mau, daquele que é merecedor dos serviços e daquele que não é. Por meio da análise das trajetórias das atrizes, as autoras apontam para a confluência do discurso moralizador e meritocrático. As trajetórias de sucesso delas, considerando suas origens sociais, as conduzem para a lógica do esforço individual e do merecimento, o que só reforça o discurso do “empreendedorismo de si” contido nas novas políticas sociais.
Esse discurso está alinhado ao processo de despolitização das políticas sociais e da saúde que tem ocorrido na cidade de São Paulo (cap. 6). As parceiras do poder público em São Paulo adquirem um caráter de empresa, para o qual o serviço é visto de forma tecnicista e racional, com aspecto de demanda. A escolha do território e a classificação dele (mais participativo ou menos participativo) são um exemplo de elementos que alimentam essa faceta de mercado, que adquire a relação entre as entidades e o poder público.
As autoras tomam emprestado de Becker (2008) a noção de empreendedoras morais para explicar a atuação das agentes comunitárias e a relação delas com as usuárias dos serviços (cap. 7). O governo moral dos pobres perpassa pelo discurso meritocrático reproduzido pelas operadoras dos serviços – ascender socialmente depende de esforços próprios, apenas assim é possível realizar transformação social, como elas mesmas fizeram.
Por fim, a última parte tem o foco na análise das trajetórias das atrizes, tanto as trabalhadoras em saúde e em assistência quanto as usuárias desses serviços. Observou-se que a vida dessas atrizes e desses atores estão permeadas pela violência doméstica, pelo racismo, pela pobreza e pelas desigualdades, de diversas formas. O acesso a empregos na ponta da cadeia de serviços da saúde e da assistência ocorre como uma brecha, uma saída para situações de dominação, e o emprego se apresenta como meio de ascender, apesar de se tratar de um trabalho precário e mal remunerado (cap. 8). As mulheres também o utilizam como forma de conciliar o trabalho doméstico com a geração de renda; os homens, como forma de enfrentar uma situação de dominação e discriminação racial.
As usuárias, por sua vez, podem ser classificadas como boas usuárias ou como desviantes, de acordo com o “governo moral dos pobres” (cap. 9). Nesse sentido, a religião possui grande importância na vida dessas usuárias, atravessando-lhes as trajetórias e as ajudando a organizar suas vidas conforme o esperado pelas agentes moralizadoras – parte do dispositivo de governo e controle social dos pobres. Entretanto, não só a religião atua no cotidiano das famílias atendidas pelas políticas sociais; outras instituições estão presentes no território, e estas, por sua vez, possuem sistemas próprios de valor.
Nesse sentido, o último capítulo (cap. 10) busca compreender como o Estado se configura nesses territórios, onde ele disputa espaço com outros códigos morais e de conduta. Por meio da trajetória das atrizes que vivenciam esses lugares, sob o ponto de vista das mediadoras entre o Estado e a população, as autoras lançam olhar para o trabalho permanente de tradução dos códigos entre os diferentes sistemas de moral e conduta que é realizado por essas mulheres. Esse trabalho é invisibilizado, assim como a gestão dos conflitos que emergem a partir do entrelaçamento do público e do privado.
A abordagem das autoras foi capaz de apontar algumas conclusões a respeito das “novas” políticas sociais. Como característica geral, é razoável assumir que se apoiam, fundamentalmente, na divisão sexual do trabalho e na disposição feminina para o cuidado. Além disso, no Brasil, essas políticas estão permeadas pela lógica do mercado e da redução de custos através da contratação de mulheres e de homens (em menor número) oriundos do local de execução dos serviços.
A transformação da pobreza em mercadoria política faz parte de um processo de privatização e despolitização das políticas públicas ( Lautier, 2014 ). Políticas essas que, ao trazer a mulher como figura central, não possuem o compromisso de romper com a desigualdade de gênero, mas acabam por reforçar estereótipos de gênero. Destacam-se a maior carga de funcionalização das mulheres que estão na ponta da cadeia dos serviços e das usuárias e o ganho pífio delas, se comparado aos ganhos das organizações sociais, das entidades religiosas, de agentes do Estado e do próprio Estado. Por fim, não existe um enfrentamento da pobreza como um problema estrutural e, a partir disso, se transfere aos atores sociais a responsabilidade individual de superar a situação de “vulnerabilidade” em que vivem.
Ao fim da leitura, é necessário que tenhamos claro que a pesquisa das autoras foi realizada na cidade de São Paulo, e quaisquer generalizações devem ser evitadas, considerando o caráter qualitativo do estudo. No entanto, a contribuição dela para pensarmos as configurações do trabalho na operacionalização das políticas sociais e da desigualdade de gênero é inegável. Resta o questionamento: políticas de combate à pobreza e à desigualdade conseguem ser efetivas quando invisibilizam o trabalho feminino?
Referências
BECKER, Howard. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio: Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 231 p.
LAUTIER, Bruno. O governo moral dos pobres e a despolitização das políticas públicas na América Latina. [ 2009 ]. Cadernos CRH , Salvador , v. 27 , n. 72 , pp. 463 – 477 , set./dez ., 2014 [ http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792014000300002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt – acesso em 17 jan 2018 ].
» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792014000300002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
Resenhista
Barby de Bittencourt Martins – Professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, RO, Brasil. E-mail: barby@unir.br http://orcid.org/0000-0002-7117-6260
Referências desta Resenha
GEORGE, I. P. H.; SANTOS, Y. G. Dos. As novas políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência: produção local do serviço e relações de gênero. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. Resenha de: MARTINS, Barby de Bittencourt. (In)visibilidade das mulheres nas “novas” políticas sociais brasileiras. Cadernos Pagu. Campinas, n.58, 2020. Acessar publicação original [DR]
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