Trabalho e Migração- Parte 1 /Tempos Históricos/2020

Este Dossiê que entregamos aos leitores é também, em nossa compreensão, um documento histórico a respeito de assuntos, de abordagens, de métodos e de questões que ajudam a problematizar o Trabalho e a Migração. Os artigos selecionados ocupam dois volumes deste número da Tempos Históricos, fato que atesta o interesse pelo tema. Em boa medida, ele caracteriza o estado da discussão nas duas primeiras décadas do século XXI. A sua qualidade, como sempre, estará sob o julgamento criterioso do público interessado. Por isso, não resenharemos cada um dos artigos, como de praxe. Ao invés disso, apresentaremos uma visão dos pontos aludidos pelos autores. Fazemos um destaque especial a duas traduções inéditas publicadas neste número, os textos de John Steinbeck e Michael Merrill, que são precedidos de introduções específicas que dispensam comentários nesta apresentação.

No período de 2010 a 2019, houve aumento de 51 milhões de imigrantes, de acordo com ONU. Em 2019, os imigrantes representaram 3,5% da população mundial. Em 2000, eles eram 2,8%. Se somarmos as migrações inter-regionais e interestaduais de países onde for possível medi-las, o resultado fortaleceria o argumento de que trabalhadores migram o tempo todo. Sobre imigrantes ilegais (sem documentos), conforme a OIT, atualmente estima-se que há 258 milhões de imigrantes, incluídos nesses números 19 milhões de refugiados. Os imigrantes trabalhadores (a partir de 15 anos de idade) constituem 234 milhões desse grupo, representando 4,2% da classe trabalhadora mundial (também a partir de 15 anos de idade). Na Europa, cerca de 1/4 dos trabalhadores são imigrantes. Esses dados, embora estimados, atestam a presença significativa de imigrantes na Europa.

Há mais de 100 anos, Lenin explicou essa movimentação de trabalhadores como sendo resultante de enorme pressão do desenvolvimento imperialista do capitalismo. Inicialmente, ele argumentou que o capital busca ampliar a mais-valia e obter lucros maiores, barateando o custo da força de trabalho por meio da abertura de empresas em países considerados economicamente periféricos. Assim, apoiado no capital financeiro, existiria uma tendência de o capitalismo expandir as suas fronteiras para explorar trabalho barato onde houvesse. A avaliação de Lenin apontou para mercados de países menos desenvolvidos. Ao mesmo tempo, nesse plano do desenvolvimento econômico, a indústria e a lavoura recrutariam força de trabalho de outros lugares para suprir necessidades urgentes e formar um excedente disponível. Lenin entendeu e explicou esse processo histórico na década de 1910, mostrando como é que a mobilidade dos trabalhadores estaria cada vez mais influenciada pelo capital. É uma hipótese cuja validade empírica e teórica só fez crescer desde então.

Embora importantes, as estatísticas e as estimativas sobre as migrações seriam mais elucidativas se cotejadas e enriquecidas por investigações que consigam abordar e expor a condição do imigrante nos termos de como eles lidam com as experiências de migrar, de trabalhar e de viver em um tipo de exílio voluntário. Nessa direção, muitos estudos têm avançado para questões ligadas aos motivos da imigração, à estratificação dos imigrantes em faixa etária, gênero, condição social, escolaridade, à renda e remessa de dinheiro para familiares, às formas de entrada no país, o acolhimento, a legislação responsável pela concessão de vistos e outros assuntos pautados pelo dinamismo da realidade social.

Resultado ou causa disso são os grupos organizados institucionalmente no Brasil com interesse de estudar especificamente a migração em espaços e temporalidades diversos, alguns deles com certa articulação internacional. A intervenção acadêmica, principalmente, tem induzido a produção de dissertações e teses que já não só mapeiam permanentemente a migração, mas auscultam os trabalhadores que migram. Quando isso acontece, saímos de uma superfície relativamente segura para mergulhar em águas incertas, para as quais nem sempre estamos inteiramente equipados para sobreviver. Ouvir o que os imigrantes desejam falar, sem abandonar as indagações de nossos roteiros, requer o que os historiadores e demais estudiosos denominam de método, de paciência e de alguma sensibilidade.

A respeito dessas iniciativas, queremos sublinhar dois pontos. Greve na Fábrica, de Robert Linhart, publicado em 1977 (L’Etabli), ainda é uma das melhores referências de estudo sobre trabalhadores imigrantes reunidos em uma indústria. Encontramos nessa obra chaves de análise atuais para a pesquisa histórica e sociológica que esclarecem como a pesquisa pode compreender as relações de trabalho, a constituição da identidade, a formação de redes de solidariedade e a organização política e sindical, examinando de perto os diversos modos que os trabalhadores tratam suas experiências. O que temos a ganhar com Linhart é a possibilidade de tratar o trabalho e a migração (voluntária e involuntária) também em seus termos históricos, os quais são expressão de sentimentos como o medo, a solidão e a dignidade, por exemplo. De um ponto de vista geral, isso representa um esforço para investigar quais sentimentos movem ou imobilizam os trabalhadores em situações históricas específicas e, ao mesmo tempo, conectadas estruturalmente ao capitalismo. Isso nos leva ao segundo ponto.

Sendo a migração um tipo de mobilidade forçada pelo capital, é preciso identificar e analisar o processo de expropriação vivido pelo trabalhador que decide buscar outra região ou país. A noção de expropriação assumiu nos estudos de Marx um sentido continuado. Em apertado resumo, a história é a seguinte. Os camponeses haviam perdido muitos de seus direitos à terra desde os séculos XIV e XV na Inglaterra, e seguiram lutando e resistindo contra todo tipo de investida sobre seus modos de vida e de trabalho. O desenvolvimento do capital pressionou os camponeses (e artesãos) a subordinarem seu trabalho, sua forma de produção, seus modos de vida e a desbaratar a organização econômica e social dos camponeses que possibilitava resistir dentro desse processo. É uma história bastante conhecida e detalhada em diversos aspectos, principalmente por Edward Thompson, em A Formação da Classe Operária Inglesa e Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo industrial, por Eric Hobsbawm e George Rudé, em Capitão Swing, por Raymond Williams, em O Campo e a Cidade, e por Peter Linebaugh, em Karl Marx, the Theft of Wood.

Uma dimensão atual da dinâmica de expropriação se dá quando o imigrante não tem a roupa certa, o corte de cabelo certo, não fala a língua certa, não tem o comportamento certo. Seu corpo inteiro, seus costumes e sua cultura tendem a ser estigmatizados de modo que pesa sobre eles uma pressão para expropria-los econômica e culturalmente. E semelhante aos camponeses que Marx estudou em pleno processo de luta contra a expropriação de seus direitos consuetudinários sobre a terra, trabalhadores imigrantes na atualidade enfrentam esse problema cotidianamente. E se reconhecermos uma dinâmica de expropriação de longo tempo que chega aos nossos dias, significa que é necessário pensar o trabalho e a migração como uma relação social tensa, conflituosa, contraditória e, portanto, como elementos históricos da luta de classes.

Esta ainda é a principal chave de análise para identificar e explicar a condição dos trabalhadores imigrantes.


Organizadores

Antônio de Pádua Bosi – Unioeste.

Sérgio Paulo Morais – UFU.


Referências desta apresentação

BOSI, Antônio de Pádua; MORAIS, Sérgio Paulo. Apresentação. Tempos Históricos, v. 24, n.1, p. 14-17, 2020. Acessar publicação original [DR/JF]

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