Os cinquenta anos do golpe de 1964 têm assistido a um verdadeiro boom de publicações e estudos acadêmicos sobre a Ditadura Civil-Militar. Surpreendentemente, no entanto, os trabalhadores, personagens decisivos naquela conjuntura, têm sido razoavelmente negligenciados nas análises sobre o período. Nos numerosos eventos e atividades sobre o cinquentenário do golpe esta ausência é notável. Contudo, a presença pública e a luta por direitos, crescentes desde o final do Estado Novo, atingiriam um ápice justamente no início da década de 1960, mobilizando sindicatos, partidos, associações de moradores e outras formas de associação, como clubes de bairros e grêmios culturais. No campo e na cidade, os trabalhadores estavam no centro do cenário político.
A derrubada de João Goulart pelos militares representou a interrupção deste processo de ascensão da mobilização da classe trabalhadora brasileira. A elaboração de uma nova política trabalhista encetada pelo governo de Castello Branco (1964-1967), aplicada em conjunto com as medidas repressoras, assim como as intervenções nos sindicatos, possibilitou uma verdadeira revanche patronal. A aliança entre empresários e a polícia tornou-se ainda mais sólida e disseminada. Um clima de medo e perseguições passaria a dominar o interior das empresas. No campo, um número ainda não calculado de trabalhadores rurais foi expulso de suas terras e muitos foram mortos. Uma política econômica antitrabalhista proibiu greves, comprimiu salários, acabou com a estabilidade no emprego, facilitando demissões e a rotatividade da mão de obra. O deliberado enfraquecimento dos sindicatos facilitou em muito a superexploração dos trabalhadores, uma das marcas do regime autoritário, elevando o número de acidentes e mortes nos locais de trabalho.
A mesma Ditadura que tanto reprimiu e tutelou os trabalhadores chegaria ao fim, em grande medida, pela força e mobilização popular. Fruto de uma resistência cotidiana, as grandes greves que, a partir do ABC paulista, tomaram conta do país, clamaram novamente por justiça social e democracia. Ao mesmo tempo revitalizaram o sindicalismo e o sistema partidário, o que se vê, até hoje, em nossa vida política e social.
A produção emergente e suas características
Apesar do relevo do papel dos trabalhadores, tanto para o cotidiano e a economia do país, quanto para as lutas que atemorizaram os partidários do golpe, ainda sabemos pouco sobre sua história durante 1964 e o regime ditatorial. Este quadro, felizmente, já começou a mudar. Aproveitando a ocasião dos 50 anos do golpe civil-militar, a revista Mundos do Trabalho apresenta o dossiê “Trabalhadores e Ditadura” a fim de reunir, realçar e divulgar alguns resultados de pesquisas que permitem conhecer a presença e o protagonismo dos trabalhadores em nossa História.
Em sintonia com os últimos desdobramentos da pesquisa sobre os trabalhadores brasileiros, este dossiê reafirma a perspectiva ampla que a História Social no Brasil tem tido nos últimos anos. Aqui, para além da resistência da militância, o leitor terá acesso às investigações sobre trabalhadores rurais e urbanos, de variados lugares, atestando o interesse sobre a experiência e a ação dos “de baixo”. Nesse sentido, destacamos a relevância dos artigos que tratam da região Norte do país (Guimarães Neto e Meyer), áreas ainda pouco exploradas pela História do Trabalho. Assim como não poderia deixar de ser, a forte tradição interdisciplinar da História Social do Trabalho também se encontra presente neste dossiê. Observe-se, neste caso, que dois balanços bibliográficos que atualizam parte do debate põem Sociologia e História lado a lado. Se Roberto Véras e Mario Ladosky fazem uma atualizada resenha sobre a ampla produção acadêmica a respeito do “novo sindicalismo”, por sua vez, Clifford Welch faz uma análise bibliográfica sobre o mundo do trabalho rural e a História Social do Campo no Brasil.
As fontes da Justiça do Trabalho – documentação que tem inspirado estudos inovadores em nossa área nos últimos anos – revelam novamente seu valor para a análise da experiência dos trabalhadores e trabalhadoras durante a Ditadura. Elas dão o suporte para as análises de Antônio Torres Montenegro e José Pacheco dos Santos Júnior. Além disso, as fontes orais revelam-se mais uma vez um método privilegiado para os estudos do tempo presente, como mostram os artigos de Regina Beatriz Guimarães Neto, José Ricardo Ramalho e Neide Esterci, e Clifford Welch. A partir da coleta e análise das memórias daqueles que sofreram e vivenciaram os “anos de chumbo”, esses artigos compartilham a preocupação em abordar os trabalhadores como sujeitos históricos. Todos somados, esses estudos revelam conexões notáveis entre os anos 1960 e 1970 para além dos marcos tradicionais que norteiam a historiografia sobre o período.
Em alguma medida, o dossiê também reflete a abertura de novas fronteiras de pesquisa, em especial no ainda pouco estudado período do chamado “milagre econômico”, o que se pode ver no artigo de Pacheco sobre o trabalho do menor de idade e no de Frank Meyer, em que cadeias produtivas e análises transnacionais combinam-se com a História ambiental e novos atores dos mundos do trabalho, como os quilombolas. Já o artigo de Clifford Welch contribui para diminuir a distância entre os estudos sobre os trabalhadores rurais e urbanos. Ademais, o autor chama a atenção para o impacto das políticas sociais e econômicas implantadas pelos governos militares no campo. Por meio das análises dos primeiros resultados das investigações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), Welch mostra como se deu a repressão e a violação dos Direitos Humanos no campo, tendo como objeto de estudo os trabalhadores rurais da região de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo. Nesse sentido, este dossiê também evidencia como as investigações que vêm sendo conduzidas pelas Comissões da Verdade de âmbito regional e nacional têm inspirado os pesquisadores na inclusão e problematização de novos temas, além de abrir a perspectiva de acesso a fontes ainda inéditas.
“Velhos” objetos não deixam de se fazer presentes, mas ressurgem abordados de maneira inovadora, como no caso da greve dos metalúrgicos de Osasco em 1968, vista sob o prisma de gênero e das relações comunitárias, a partir das memórias dos trabalhadores e seus familiares analisadas por Marta Gouveia de Oliveira Rovai. Da mesma forma, o tema das Ligas Camponesas é retomado tendo como pano de fundo o início dos anos 1970, período de forte violência no campo e repressão ao movimento dos trabalhadores.
É ainda o caso dos operários navais do Rio de Janeiro analisados por Elina Pessanha, que recupera a experiência dessa categoria de trabalhadores a partir de dois contextos político-sociais bastante diferentes, o pré e o pós-1964. Elina revela como os marítimos reagiram à intervenção militar e observa o impacto da Ditadura, bem como as consequências da política antitrabalhista, na categoria. As intensas e tensas relações entre intelectuais e trabalhadores são abordadas no artigo de José Ricardo Ramalho e Neide Esterci. Os autores mostram como durante os anos 1970 os órgãos de assessoria, ONGs e atividades de formação política e educação popular constituíram-se em novos espaços de interação entre os setores médios intelectualizados, militantes políticos e os trabalhadores de base.
Os artigos reunidos neste dossiê mostram um campo de estudos bastante promissor, com potencial comparativo e transnacional (em particular no que se refere a outras ditaduras na América Latina). Outro traço marcante é a sua descentralização regional, temporal e temática. Todo um universo ainda pouco explorado do mundo do trabalho durante o “milagre” – o ingresso de milhares de trabalhadores em expansivas atividades econômicas – ainda pode ser desenvolvido por intermédio de diversificadas fontes, manuscritas ou orais. Por fim, mas não em último lugar, ainda podemos conhecer melhor os vários e múltiplos fluxos migratórios, dentre outros temas.
Evidentemente, há problemas a serem enfrentados principalmente em relação à preservação das fontes históricas, como a perda de grande parte do acervo arquivístico de várias delegacias estaduais da polícia política, os Dops, as dificuldades de acesso aos acervos empresariais e a sistemática incineração, descarte ou reciclagem dos processos trabalhistas. Da mesma forma, os poderes públicos, a começar pelo federal, deveriam dar o exemplo e abrir os seus arquivos, a começar pela documentação do Ministério do Trabalho. Este último vem sofrendo a pressão dos pesquisadores da CNV e demais representantes da sociedade civil para que organizem e disponibilizem a sua documentação ao público. Portanto, esperamos que a Comissão Nacional da Verdade consiga desobstruir caminhos ou apontar atalhos que levantem mais pistas de investigação e localizem novos arquivos e acervos, a serem não só percebidos por uma pesquisa ampla e renovada, mas também pelas publicações e pela sociedade.
O resgate e a preservação dos documentos que retratam a história dos trabalhadores têm sido essenciais para a compreensão de “velhos” e “novos” temas que abrangem as relações internacionais do sindicalismo para além da resistência e da mobilização, incluindo, portanto, os variados aspectos de consentimento, e mesmo colaboração, de entidades sindicais com o autoritarismo. É óbvio que, também, seria interessante se empresas, como as multinacionais da indústria automobilística, entre outras, tivessem a honradez de reparar parte dos danos causados, abrindo, também elas, os seus arquivos. Para tal, quanto maior for o diálogo entre os historiadores do trabalho e os pesquisadores que têm explorado as variadas dimensões das relações entre a sociedade civil e o regime de 1964, melhores resultados teremos. Por fim, esperamos que este dossiê do cinquentenário do golpe ajude a colocar em questão a necessidade de nutrir o revelar de outras memórias: aquelas anteriores à intervenção militar de 1964, as que, em particular, nos fazem pensar que o golpe foi contra os trabalhadores, por causa de sua presença e ação.
Organizadores
Antonio Luigi Negro – Professor de História da Universidade Federal da Bahia e pesquisador do CNPq.
Larissa Rosa Corrêa – Bolsista Faperj de pós-doutorado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da FGV (Cpdoc) e pesquisador do CNPq.
Referências desta apresentação
NEGRO, Antonio Luigi; CORRÊA, Larissa Rosa; FONTES, Paulo. Apresentação. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 6, n. 11, p. 5-9, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]
Trabalho, Política e Experiências Indígenas | Mundos do Trabalho | 2014
Trabalho, Política e Experiências Indígenas | Mundos do Trabalho | 2014, MOREIRA Vânia Maria Losada (Org d), JONG Ingrid de (Org d), POPINIGIS Fabiane (Org d), Trabalho (d), Política (d), Povos Indígenas (d), Mundos do Trabalho (MTd)
Organizadores
Vânia Maria Losada Moreira – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Ingrid de Jong – CONICET, Universidade de Buenos Aires.
Fabiane Popinigis – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Referências desta apresentação
MOREIRA, Vânia Maria Losada; JONG, Ingrid de; POPINIGIS , Fabiane. Introdução. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 6, n. 12, p. 5-8, jul./dez. 2014. Acesso apenas pelo link original [DR]
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